DOIS MOMENTOS COM CAFÉ

 

 

Minúsculo lago

circundado por

porcelana, bem cabe

nesse quase raso

leito o pensamento,

voluntário náufrago

de um rodamoinho

que gira anti-horário

carcomendo o tempo.

 

Na margem oposta,

um rastro de boca

de mulher canhota

lança morno às ondas

negras um dormido

beijo — talvez nade,

talvez chegue à minha ou

apenas bóie e morra em

doce e amarga cova.

 

 

 

 

 

 

A POÉTICA VISTA NUM ARMÁRIO

 

 

Suspensos por esses

ombros finos — qual fumaça

condensada em pano,

 

não por ação de intempéries,

mas pelo domínio

das mãos sobre o bruto — quanto

 

guarda de um conteúdo

já tido? Seu corte fôrma

não é para o aparente

 

vazio. Se me entrego às curvas

e drapeados, deixo

me envolver na trama e ali me

 

posto. Logo, noto o

dom que o fez, paciente e certo,

por metragens que eu que

 

nada sei de seus motivos,

constato em qual corpo

cairia — de pronto me espanto,

 

pois se forma dentro

de mim — mesmo sendo roupa — a

sensação do toque.

 

 

 

 

 

 

NUM ÔNIBUS INDO PARA

 

 

Umas sobre as outras

as carnes assomam  

no aleatório que há de

corpos se tocarem:

a omoplata encontra,

após a cabotagem,  

o porto de um tórax,

se ancora; agora, este

suporta a investida

da escrita das unhas

silente. Irrisório

saber qual porção de

abuso compõe a paz que o

suspiro comporta.

 

 

 

 

 

 

NÃO FAZ FALTA

 

 

Se fechasse a

porta atrás de

si ou se aberta a

mantivesse o

resultado

seria o mesmo,

que fechado

não é estar preso

por paredes

(mundo à parte),

mais têm estas

em sua essência

de apartar o

que é de dentro

do de fora

que fechar o

já fechado —

qualidade

não de coisas

mas de gente em

si chaveada

pela boca

que não fala,

pela mão que

recua ao toque;

qualidade

do invisível

para o aberto —

não o isolado;

gente cuja

pele é a própria

cela, inviável

para passos

entre passos,

que se morta

só se o sabe

pelo cheiro

nunca pela

menor falta

que não causa.

 

 

 

 

 

 

GALILEU

 

 

Sob o silêncio se fez o

relevo lunar da cama,

fruto do lento mover de

tecidos (da lã e das carnes

involuntárias) até se

acomodar como está: Mar da

Traqüilidade de curvas,

prendendo a noite no quarto.

 

 

 

 

 

 

A PARTIR DA TOPOGRAFIA

 

 

Aprende-se muito

com a ausência. Cito a arte

da cartografia, do

paciente desenho

feito olhos a dentro

sem régua ou compasso,

com o qual catalogo, a

posteriori, pintas,

sinais de nascença, e as

(não sem ser expert no

teodolito) marcas

de uma catapora.

 

 

 

 

 

 

VAGAS PARA RAPAZES — AMBIENTE FAMILIAR

 

 

(A planta o pai trouxe

inteira na cabeça —

do piso à cumeeira

sem esquecer detalhes

e cor — de Paris. O

pai queria ser dono

 

de um palácio. Quando

nasci havia mais de

dezena de cópias

nos Campos Elísios,

e mesmo na Barra

Funda. Depois vieram

 

os prédios, o asfalto,

os carros e o pai se

foi. Logo, vendemos

o mármore, os móveis

e um quê de vaidade. A

mãe relutou uns tempos...)

 

Ah, sim, são duzentos

reais o mês num quarto

pra quatro, banheiro: o

do corredor, mas —

aviso — corto a força

após cinco minutos.

 

(Hoje alugo vagas,

a planta ainda é a mesma

que o pai trouxe, as cópias

nos Campos Elísios

e na Barra Funda

 

já nem estão de pé.)

 

 

 

 

 

 

AO PÉ DO RÁDIO

 

O ouvido é elemento

preciso num jogo

sem bola travado

só pelas palavras

na orelha, sua arena.

 

 

 

 

 

 

MANEIRAS DE OLHAR

 

 

Até pouco tempo

garrafas vazias e

panelas sem uso

viravam pintinhos

que nunca cresciam e

minhas rãs tinham lindas

pernas de vedete e

formigas na boca,

dês que muitas, eram

saboroso prato e

minhas pálpebras eram

os interruptores

do sol e... pois veja

que essa infância é coisa

de desocupado.

 

 

 

 

 

 

AINDA BARROCOS

 

 

Todos somos retos,

se não de caráter

ao menos de corpo

(truque conhecido

de com a fachada

limpa escamotear a

sujeira da casa),

por isso na escola

sentamos em filas

e nas ruas andamos

 

ortogonais. Basta,

todavia, ficarmos

sós para buscar o

cômodo equilíbrio

das curvas, o frouxo

das fibras e, dentes

à mostra, comermos

com os cotovelos

simetricamente

plantados na mesa.

 

 

 

 

 

 

PARA NOEL

 

 

Perfeitas em peso e

medida, duas obras

do gênio me tocam:

são as portas sem trancas

que cedem com um simples

toque (ou, se alto o porre,

com um tombo) e essas louças

para mijar. Nossa,

chegar sem sentir as

pernas, dar de testa

com a parede, abrir o

zíper e observar o

dourado no ralo

não têm tradução!

 

 

 

 

 

 

BORRA DE CAFÉ

 

 

O único destino

que vejo na xícara

é uma úlcera — que isso

não se adivinha, sabe-se

pela azia —, se bem que

vendo melhor: (qual a

dose de indução que

tem no olhar?) vai dar

macaco na cabeça.

 

 

 

 

[imagem ©masha reva]

 

 

 

 
 
Paulo Ferraz (Rondonópolis/MT, 1974). Poeta, viveu em Cuiabá até 1995, quando se transferiu para São Paulo, onde se graduou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sendo um dos editores das revistas O Onze de Agosto e FNX. Concluiu mestrado em Teoria Literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Publicou, em 1999, o livro Constatação do óbvio, pelo selo Sebastião Grifo, que fundou com os poetas Matias Mariani e Pedro Abramovay. É também um dos editores da revista Sebastião, pelo mesmo selo e dedicada a fomentar o debate acerca da poesia brasileira contemporânea. Em 2007, lançou os livros De novo nada (poema de quase 600 versos) e Evidências pedestres, também pelo Selo Sebastião Grifo. Tem poemas publicados em diversas revistas literárias, tais como CULT, Magma, Sibila, Cacto, Jandira e Rattapallax, e nas coletâneas Paixão por São Paulo e Antologia Comentada da Poesia Brasileira no Século 21. Em 2007, De novo nada concorreu na categoria "Melhor Livro" ao 3º Prêmio Bravo! Prime de Cultura.