nome
 
 
*
 
                                a Waltercio Caldas
 

um livro com todas as páginas iguais
 
não: um livro com todas as páginas iguais, porém apagadas
 
isto é: um livro com todas as páginas iguais, todas apagadas, mas em diferentes
graus de esvaecimento
 
o grau de esvaecimento é o grau de página
 
ou seja: o livro
 
mais rico quanto maior o esvaecimento
 
mais vário quanto mais idênticas as páginas
 
e maior se de todas escolher uma só
 
 
 
 
 
*
 
perdi a pedra. como fundaria os impérios que antes os antigos divisaram e perderam,
divididos entre a eloqüência e o gesto? perdi a pedra. antes de tomar aos antigos os
domínios, dar corda aos relógios e passar giz nas fronteiras. pois perdi a pedra. os
revoltosos cederam, o Estado já fez circular a subscrição dos privilégios, nada há
que soterre ou esmague a arquitetura da capital encomendada. perdi a pedra.
impossível rolá-la sobre as formas antigas e reduzi-las ao pó de que vieram, bíblicas
como um homem mas não como um livro. perdi a pedra, como nela esculpir a nova
forma na matéria única, das quais nasceria a mão inaugural do homem livre a
moldar-se na própria
 
(quatorze versos fazem um soneto.
quatorze versos não são um soneto.
fazer não faz que seja o que é.
desfeito o soneto em quatorze versos.
 
tem quatro estrofes; eis outro soneto.
são quatro estrofes e não há soneto.
ser não possui o que possuir é.
em quatro estrofes o soneto perde-se.
 
dez sílabas conspiraram um verso.
a palavra que ele diz foge às dez
que ele tem — a que depõe o soneto
 
contra o que o soneto é — depõe
o soneto do que o soneto fez —
e não faz e não é e não tem, diz)
 
liberdade. perdi a pedra. que bom. senão, teria que procurá-la.
 
 
 
 
 
*
 
— a maryln monroe de dois metros não é duas vezes mais verdadeira do que a de
um metro.
— não sou uma garota ambiciosa. nunca achei que o tamanho fosse essencial.
 
— a marilyn monroe morena real não é tão verdadeira quanto a loura virtual.
— claro que o cabeleireiro é uma escola cívica. na guerra, o mais importante é lutar
sob a cor certa.
 
— três marrilins monroes juntas dão uma só.
— a união faz a força, dizem; digo que, na cama, faz a farsa.
 
— quando uma merilyn monroe virtual transa com outra virtual, o resultado é uma
merylin monroe real.
— não posso ser mãe de um só sendo ídolo de tantos.
 
— estranho, aqueles que são marilin monroe, mesmo só por um momento, reclamam
que não conseguem ficar nus.
— os diamantes resumem tudo: no reflexo deles está a filosofia, no preço está o
amor, nas patas o terceiro mundo, no brilho está a liturgia, nas garras deles o
reflexo alheio, na sua filosofia está o preço.
 
— por que precisaria ser uma grande atriz se é algo maior, uma grande maerilim
monroe?
— nunca fui compreendida. jamais fui amada. em instante algum souberam olhar nos
meus olhos como os cães inutilmente reconhecem os de sua espécie sob coleiras,
sendo levados para rumo oposto; foi-me impossível sentir paixão como a da pedra
pela marreta que a devolverá ao inalienável estado de pó. felizmente; ídolos
fazem-se de mil cópias e nenhum semelhante.
 
— mérilin monroe em lata não é mais saudável do que colada na parede dos
mecânicos.
— sei que, por ser a última coisa bela do século, guardarão as minhas unhas e os
meus cílios para criarem um clone meu. sei bem que a ciência avançará muito na
arte de repetir. o que eles não imaginam é que minhas unhas e meus cílios são
postiços.
 
as réplicas são verdadeiras.

 

©andy warhol
 
*
 
resolveu pichar no próprio corpo o mapa de seu país; o médico viu a impressão na
pele e receitou repouso absoluto por quatorze dias e três bombas
 
I know it. It’s a Mexican map. It’s worth 40 cents.
 
pichou no próprio corpo o seu país; a geomante ao vê-lo previu o fim do mundo e
três filhos
 
I know this image. It was borrowed from my bank, interest rate 18,80%.
 
a amante despiu-o e gritou que também deveria estar contaminada
 
Your skin doesn’t allow you to travel to this country. Dogs!
 
pudesse contaminar o mundo,
ele o faria com mapas
e a dúvida cairia sobre tudo:
 
glória e joio indistintos na safra,
iguais — bênção e inferno,
o duplo ao nada se compara
 
em um mundo por mapas infecto;
a pedra une-se ao traço,
a mesma onda a onda e o deserto,
 
diferença não resta entre o espaço
de criar e o de ser,
criar explode os ventos em cacos
 
e os ventos tornam-se línguas, vê
que a dispersão os une,
vê: cantam algo como a surdez
 
e te lambem e te deixam nu e
te descobres um outro,
te dissolves nisto que refulge
 
da viva saliva onde envolto
gritas: não contamine
o mundo
, inútil, pois teu corpo
 
torna-se no mapa do que vive,
na tua pele manchada
o vírus, leprolífico ourives
 
(e se pichasse o rosto dos mapas,
o faria com o mundo
— da terra só restaria o nada)
 
— Is this a country or a tropical disease?
 
mas, com medo, ele mesmo nunca havia admirado no próprio corpo o mapa de seu
país. pôs-se então diante do espelho e incendiou as linhas do mapa — sabia que nas
chamas invertidas veria a sua terra.
quando o fogo atingiu-lhe os olhos, percebeu, porém, que aquela era a imagem do
mundo
 
 
 
(poemas do livro O palco e o mundo. Lisboa: Edições Culturais do Subterrâneo, 2002)
 
 
 
 
 
Bellum justum (little Bush, great Business)
 
 
I
 
bombas abrem olhos
sob a terra; não vêem a luz,
mas a taxa de juros;
 
bombas abrem olhos
sem a luz; não vêem a terra,
mas a taxa de juros;
 
bombas fecham a luz
sobre a terra; iluminados olhos
da taxa de juros;
 
bombas abrem a taxa de juros;
tempo
sem terra, sem luz, os olhos
 

II
 
a tevê liga o fogo e não vê serpentes nos ossos; a alfândega trafica o fogo
e a pele faz fronteira com as cinzas; o diplomata negocia o fogo e anexa
vísceras à adega; as armas elegem o fogo e fazem a campanha com crânios
ocos; a bolsa e a corte negociam o fogo e do que vive satisfaz-lhes a fumaça.
 
o fogo fuja aos homens para rir dos homens
 

III
 
: os olhos retornam a osso :
 
 
 
 
 
Apoteose, glória e exumação dos monumentos colossais
 
 
I
 
Últimas notícias: o grande escritor
morreu.
 
Desculpem nossa falha: na verdade
ganhou o Prêmio Nobel.
 
A Academia desmente. Parece que o grande escritor
dará uma grande recepção para a imprensa.
 
Ou então desconfiamos que a polícia o investiga pela morte dos pais ou dos filhos, ou
                   por atentados terroristas cometidos hoje ou futuramente, tráfico de
                   drogas, falsificação de moeda, pichamento de muros ou de almas,
ou não o investiga, mas deveria fazê-lo.
 
As editoras deste país acabaram de lançar comunicado conjunto esclarecendo que
                   nunca publicaram livros do grande escritor.
 
A crítica feminista descobriu que ele é uma mulher, mas não sabe; ou que é um
                   homem, e merece ser tão pouco; a outra crítica
aguarda a certidão de nascimento.
 
Nossos repórteres estão atentos à possível chegada do grande escritor ao hospital;
                   logo saberemos se ele já digitou suas últimas palavras e as
                   transmitiremos
depois dos comerciais.
 
Não sabemos ainda qual é o nome do grande escritor, mas prometemos perguntar se
                   ele aparecer.
 
Qual o esporte favorito, para onde vai no fim de semana, o filme preferido, dicas de
                   alimentação e beleza, a marca de desinfetante, logo vocês saberão tudo
                   o que pensaram em perguntar
ao grande escritor.
 
Estaremos entrevistando também as(os) possíveis amantes e descobriremos quais
                   são as últimas notícias sobre ele.
 
Não desligue, logo saberemos o que aconteceu ao grande escritor.
 

II
 
(ele está ligado a tubos de oxigênio)
 
(não posso ouvir)
 
(já não escreve mais?)
 
(escreve ainda. no oxigênio)
 
(vamos desligar para que não sofra mais)
 
(por que ainda escreve?)
 
(agora escreve o oxigênio)
 
(não posso ouvir)
 

III
 
os seus contos não se sustentam. não têm a firmeza das receitas de água.
prefiro latidos.
 
os seus poemas não conseguem ser tão legíveis quanto as rugas da brisa.
opto pelas quatro patas.
 
os seus ensaios não divertem como os sonhos do mofo diante da migalha.
chega de chateação; vou reler o manual de adestramento de animais domésticos.
 
a sua assinatura não consegue singrar o papel assim como a seca nos rios.
é mais instrutivo o atletismo das pulgas.
 
agora sim! ofereceu-nos algo de interessante:
os seus ossos, atiro-os aos cães agora
silenciosos.
 

IV
 
2.1 Os doutores não falam de nós. Logo, os doutores não são capazes de entender
a literatura.
2.2 Ou os doutores falam mal de nós. Eles analisam racionalmente a literatura. Mas
ela não tem relação nenhuma com a razão. Vamos explicar com pormenores:
 
todos sabem que eu sou um gênio;
esse é o meu oxigênio.
mas há dissidentes.
 
todos que sabem sabem que eu sou um gênio.
eu sou o oxigênio.
mas há os que devem ser asfixiados.
 
sou um gênio, sabê-lo
é todo meu engenho. explico-me aos recalcitrantes:
é só uma forma de ser, como a do vento frio após a catástrofe.
 
1. Nós somos contra a crítica.
1.1 Quando falamos mal da crítica não estamos fazendo crítica, e sim
autopreservação.
1.2 Fazemos literatura porque comparecemos a coquetéis, conquistamos patrocínios
e inovamos na publicidade. Todas essas atividades estão acima da crítica.
1.3 Quando tomarmos todos os coquetéis, os patrocínios e a publicidade, somente
nós faremos crítica.
1.4 Mas seremos diferentes: o resultado da nossa crítica não é a razão, mas a
revolução, isto é, a tomada dos coquetéis e patrocínios. Compeliremos o público, por
meio de programas oficiais de incentivo a nós mesmos, a cumprir sua função social:
comprar nossas obras.
 
Esse programa detalhado de mudança social foi descrito em minha obra "Escravidão
mil anos depois", que demonstra que o negro fede mesmo e precisa fazer a
revolução comunista para mudar isso.
A minha arte tem um papel público: consegui que vários jornais fizessem propaganda
dela. Quando aquele rapaz foi dizer que minha escrita era exemplo de alfabetismo
infuncional e minha política era conservadora e escravista, não tive dúvida: liguei
para o patrão dele. Foi demitido, o babaca. E ainda disse que eu não era de
esquerda!
 
3. Os monumentos erguidos para nós não terão cabeça. A mente humana é
irrepresentável.
 

V
 
matei o grande escritor.
claro que foi em legítima defesa.
ele escreveu mesmo alguma coisa?
em primeiro lugar o amarrei. depois é que gozei.
nunca soube que ele era um escritor. e não parecia, de mãos presas.
mas notei que só gozou depois da morte.
não, não bebi. resolvi guardar para inseminação artificial:
quero ter o prazer de abortar seus filhos.
 

VI
 
— Entrevista com o grande escritor.
— As notícias sobre o meu nascimento foram um pouco exageradas. De fato, estou
pensando em apresentar meus pais um ao outro para que possam me conceber. Se
eles não se animarem, poderei escrever um poema que lhes insufle a paixão.
— Faremos uma entrevista. Hoje, com o grande escritor.
— Mas, antes, seria preciso construir a casa onde nasci. O acesso era muito difícil,
por isso minha mãe, quando conseguiu chegar à rua, teria que andar mais um
quilômetro para chegar à linha de trem e finalmente descer na estação do hospital.
Ela teve o azar de descer durante um tiroteio, por isso ninguém a ajudou e ela não
conseguiu chegar; teve-me no meio do caminho, sozinha, exceto por um cachorro
de rua que ficou lambendo a nós dois. Onde uma cidade assim, para que se possa
construir uma casa assim e eu nascer?
— Quando chegar, faremos uma entrevista com o grande escritor.
— Esta manhã, fiquei pensativo com o pão. Fiquei em dúvida se as migalhas caíam
dele ou de mim. Não se assuste, eu tinha mesmo razão para supor que talvez não
fossem de mim as migalhas que caíam. Se fossem minhas, seria sinal de que não
estava sendo completamente consumido, seria sinal de que alguma coisa foge do
império dos dias. Para ter certeza de que era uma parte minha que se salvava,
peguei uma das migalhas para comer. Gostei muito. Perdi a esperança: o gosto não
era meu.
— Tendo em vista as pesquisas simultâneas de audiência, comunicamos a
substituição da entrevista pelo programa culinário "É hora de moer carne".
 

VII
 
abriram o crânio para verificar onde estavam as obras. acharam-nas, pegaram
colheres e começaram a se alimentar. alguns, de tão pobres, usavam as mãos.
outros raspavam com paus as paredes do crânio para que nenhuma migalha fosse
desperdiçada. enquanto se nutriam, aumentava-se-lhes a fome até a translucidez.
alguns mergulharam no crânio para nadar. morreram de seca nas turbulentas águas.
hortas foram cultivadas no crânio dele. as sementes germinavam em outra espécie:
plantavam-se versos, colhia-se cacto. abria-se o cacto, outro crânio aparecia,
dentro do qual plantava-se outro cacto e assim infinitamente. o deserto estava por
toda parte.
assassinos, diplomatas e assessores de deputados tentaram usar as armas
encontradas no crânio. não temiam que o mundo fosse destruído mil vezes. foram
destruídos mil vezes, pois não as souberam usar.
crânio, sim, um osso como outro qualquer. porém os meus cães só comem ração.
abriram o crânio? não? acreditam que o fóssil é falso?
 
Abrimos o crânio para descobrir onde estão as obras.
Descobrimos.
Jogamos fora. É hora de limpeza.
 

VIII
 
(o grande escritor está grávido?)
 
(a sua obra o engravidou?)
 
(não. só o que nunca criou poderia fazê-lo conceber)
 
(ele dará à luz a sua obra?)
 
(não. mas o nunca)
 
(ele não está a engordar)
 
(está. para dentro. no seu ventre cresce o vazio)
 
(leite ou sede prepara-se no seu peito?)
 
(sinto-me pleno como nunca antes,
o mundo prepara-se em mim,
com absoluta certeza
sei que desaparecerei
)
 
(o grande escritor está grávido?)
 
(nasceu)
 
(o pai ou o filho?)
 
(ambos. nasceram mortos)
 

IX
 
Últimas notícias: não há nenhuma em relação ao grande escritor. Ele apenas
escreveu um livro.
 
 
(Poemas inéditos)

 

Pádua Fernandes. Nascido no Rio de Janeiro em 1971, vive em São Paulo, onde é professor universitário. Foi colaborador da extinta revista portuguesa de cultura Ciberkiosk e integra o conselho editorial das revistas Jandira (Juiz de Fora) e Cacto (São Paulo). É autor de O Palco e o Mundo, poesia (Lisboa, Edições Culturais do Subterrâneo, 2002) e é organizador e autor do posfácio da antologia de Alberto Pimenta, A Encomenda do Silêncio (São Paulo, Odradek Editorial, 2004).

Mais Pádua Fernandes em Germina

>> Correio em seco: Ricardo Domeneck e a poesia de Carta aos Anfíbios, por Pádua Fernandes