Wilmar Silva - Sendo um dos poetas mais cantados na música popular brasileira, como descobriu a música nas palavras de seus poemas?

 

Antonio Cicero - Descobri a música, primeiro de tudo, na poesia alheia. Ainda quando garoto, na de Gonçalves Dias; depois, quando adolescente, fui morar nos Estados Unidos, e me apaixonei pela música da poesia de língua inglesa. Lá também descobri Bob Dylan. Voltando ao Brasil, descobri a música da poesia brasileira, tanto na poesia dos livros quanto na das canções: Vinicius era a ponte entre ambas.

 

 

WS - Se "eu é um outro" a exemplo das iluminuras em Arthur Rimbaud, há muitas vozes no solo da paixão de Cicero?

 

AC - Muitas. Quase tantas quanto poemas e letras.

 

 

WS - Margens de um Rio Estige entre a música e a poesia, poema/letra, letra/poema, Antonio Cicero: símbolo de quem mergulhou e nada em qualquer das margens quando um poema é um poema e uma letra é uma letra ou inventa a terceira margem, é poema e é letra, é letra e é poema?

 

AC - Não fui propriamente eu quem inventou isso. Os líricos gregos faziam o que nós chamamos de letras de música (e os ingleses chamam, com muita propriedade, de lyrics); e, desse modo, fazendo "letras", os gregos fizeram alguns dos maiores poemas já escritos.

 

Mas, para mim, há uma diferença prática entre letra e poema. É que o que chamamos de letra é algo que faz parte de uma totalidade que inclui a música; e o poema é uma totalidade em si. Podemos dizer que a letra é heterotélica, enquanto o poema é autotélico; entretanto, nada impede que uma letra, ao ser escrita, chegue a ser autotélica, isto é, possa ser plenamente apreciada sem necessidade de acompanhamento musical. É o que ocorre com as letras de Caetano Veloso, por exemplo, como se observa no seu livro Letra só, editado pelo Eucanaã Ferraz. No livro Guardar publiquei algumas letras que julguei serem autotélicas, logo, poemas.

 

 

WS - Mesmo nas baladas de sucesso da música popular brasileira, ser cantado a todos os ouvidos é diferente de ser lido a quatro paredes em silêncio?

 

AC - Sim. As duas experiências são muito gratas. Entretanto, para um poeta, ser lido em silêncio é, em geral, mais importante, pois é ser lido em profundidade.

 

 

WS - Fernando Pessoa, em Ricardo Reis, diz que a poesia é "música que se faz com idéias”, enquanto Mallarmé afirma que "se faz com palavras, não com idéias". Para Antonio Cicero o que é poesia?

 

AC - Os dois estão certos. A poesia se faz com palavras-idéias e com idéias-palavras. O que Mallarmé quer excluir é a tese de que a idéia separada da palavra seja suficiente para fazer poesia. 

 

 

WS - Mais que um código sonoro além da própria língua, a música provoca uma sinergia que rompe a sintaxe do idioma: a aldeia é original ou original é ser universal?

 

AC - Você só não falou da aldeia global, de que, muito antes de se falar de "globalização", MacLuhan falava. Trata-se, melhor dizendo, da aldeia universal. Dada a cosmopolitização do mundo, é nela que nos encontramos.

 

 

WS – "Se narciso é filho de uma flor aquática", como foi a infância de Antonio Cicero? 

 

AC - Não sei falar de mim mesmo senão a partir da adolescência, e olhe lá!

 

 

WS - Antropologia enquanto filosofia no espelho do Brasil: mestiços por natureza, o que pensa sobre a beleza de nossas cores como diferenças de uma unidade?      

 

AC - Já que não falei de mim, na pergunta anterior, permito-me citar a mim próprio agora. No ensaio "Brasil feito brasa", que se encontra no meu livro O mundo desde o fim e na Internet, no meu site — http://www2.uol.com.br/antoniocicero/brasa.html —, digo: "o brasileiro não pode ignorar que o crisol-Brasil existe somente enquanto bojo de contatos, atritos e fusões culturais e raciais. Para ele, a afirmação da acidentalidade, da contingência e da relatividade das identidades positivas e particulares que entram em sua composição se dá como fundamento essencial, necessário e absoluto de sua nacionalidade.[...] Nesse sentido, a originalidade desse país — um pouco feito a singularidade do Ocidente, para Max Weber, não deve ser buscada na particularidade dele, mas no seu modo de ser universal".

 

 

WS - Frente ao contexto político da esquerda na pirâmide, que reflexos sobre essa "confusão", a considerar o verso "e era toda a terra uma língua e uma voz em todos"?

 

AC - O poema que você cita chama-se "Confusão" porque, em primeiro lugar, esta é a tradução de "Babel". Em segundo lugar, ele é "Confusão", porque confunde o sentido original e moralista do mito de Babel. Com efeito, o poema é uma paródia, na qual a  multiplicação das línguas e das vozes são a estratégia pela qual os homens constroem a civilização: ou seja, a confusão é melhor do que a simplicidade.

 

 

WS - A exemplo de Darcy Ribeiro, dizendo "minha fala é a do cruzado que sou", ou "distraídos venceremos" (Leminski), um poema é um problema ou um problema é um poema?

 

AC - A maior parte dos problemas não chega a ser um poema e a maior parte dos poemas é mais do que um problema. Mas fico com Leminski: Distraídos venceremos. Você sabia que o livro dele com esse título é dedicado a mim e ao Itamar Assunção? Orgulho-me muito disso.

 

 

WS – "Poeta: vou fazer uma letra de música utilizando os versos 'A mão que afaga é a mesma que apedreja', escreveu Waly Salomão lembrando Augusto dos Anjos, que poetas Antonio Cicero levaria para "a imensidão e o mar"?

 

AC - Levaria muitos. Se só pudesse levar três, eu levaria Drummond, Baudelaire e Horácio.

 

 

WS - Se pudesse colocar o seu nome sobre o nome de um autor que seja um ícone para Antonio Cícero, em que livro reescreveria o seu nome?  

 

AC - Sobre as Odes de Horácio, o maior conjunto de livros de poemas de todos os tempos.

 

 

WS - A "permanente hesitação entre som e sentido" de que fala Paul Valéry aconteceu com você ao dar voz à sua poesia na "Coleção Poesia Falada" — Antonio Cicero por Antonio Cicero, idealizado e produzido por Paulinho Lima?

 

AC - Não. A leitura em voz alta é apenas uma interpretação, dentre as muitas possíveis.

 

 

WS - Que mundos aproximam ou distanciam A cidade e os livros de Guardar, ou um templo é um prólogo de uma mesma poética, a exemplo de Song of myself?

 

AC – A cidade e os livros foi escrito num período de alguns anos. Guardar, por outro lado, tem o subtítulo "poemas escolhidos", porque contém desde algumas peças de juventude até outras recentes.   

 

 

WS - Se "da vida não se sai pela porta: só pela janela" e da "poesia: sair pela porta sem saída" é possível?

 

AC - Como dizia meu grande amigo Waly Salomão, a poesia não é a arte do possível, mas a arte do impossível.

 

 

WS - Escrever é reescrever-se ao mais profundo da medula ou as palavras enquanto linguagem e poemas se declaram ao primeiro grito?

 

AC - Escrever é reescrever-se ao mais profundo, mas, antes dessa re-escrita e durante ela, ouvem-se muitos outros gritos. E é para ouvir esses gritos que a reescrita é importante.

 

 

WS - A cidade-labirinto é o começo do ser humano ou o ser humano poderia guardar a vida em lugares-livros fora dos centros urbanos?

 

AC - Antes, não era possível estar fora dos centros urbanos. Hoje, vivemos um momento em que, por todos os meios técnicos, econômicos e políticos imagináveis, todo o mundo se torna uma grande cidade. Breve nem sequer haverá "fora".

 

 

WS - Se todo poeta forte descende de um poeta forte, é preciso enfrentar a angústia da influência para nascer?

 

AC - Provavelmente, sou um poeta fraco, porque nunca senti essa angústia. Sempre admirei vários poetas ao mesmo tempo, de modo que me expandi na área de manobra entre um e outro.

 

 

WS - E que poetas contemporâneos brasileiros convidaria para dividir a viagem rumo às "galáxias"?

 

AC - Muitos; mas, de novo, vou citar só três: Eucanaã Ferraz, Armando Freitas Filho e Nelson Ascher.

 

 

WS - São realmente duas experiências diferentes de escrita, um poeta e um filósofo, ou a poesia é um exercício de reflexão?

 

AC - Ambos são pensadores, mas suas experiências de pensamento são totalmente diversas. Escrever, para o filósofo, é dizer coisas com as palavras; para o poeta, é fazer coisas de palavras.

 

 

WS - Como será a sua apresentação no projeto Terças Poéticas?

 

AC - Pretendo ler poemas, falar sobre alguns deles, e falar sobre a minha experiência e sobre a poesia em geral.

 

 

 

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Antonio Cicero. Poeta, letrista, filósofo. Parceiro de Lulu Santos, Adriana Calcanhoto, Orlando Moraes e João Bosco, entre vários. É autor de O mundo desde o fim — ensaio filosófico (Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1995); Guardar — poesia (Rio de Janeiro: Editora Record, 1996) e outros. Participou de (e organizou) várias antologias. Vive no Rio de Janeiro. Mais em Antonio Cicero.