— Leva jeito? Tá brincando. Ele já é. A gente só tem que cuidar.

 

Quem disse essa frase foi ninguém menos que Bituca, ou Milton Nascimento,  comentando com o amigo Márcio Borges, o talento precoce de um certo Lô Borges, que aos dez anos de idade já arriscava os primeiros acordes no violão.

 

E parece que Milton acertou. O filho número seis do jornalista Salomão conhece um outro garoto, Beto Guedes e, ainda no início da adolescência, formam o conjunto "The Beavers", uma homenagem ao quarteto de Liverpool, no auge da Beatlemania.

 

A partir daí o menino Lô Borges passa a criar suas próprias composições, tornando-se figura fundamental num movimento musical mineiro que estava despontando, e que acabou por mudar a história da música brasileira, o Clube da Esquina.

 

Junto com Milton Nascimento, grava, aos dezessete anos, o disco "Clube da Esquina". Em 1972, lança seu primeiro álbum solo "Lô Borges". Com canções que fizeram parte de uma geração marcada pela ditadura, Lô mostra que seu trabalho ainda pode se renovar. Em 2001, dá nova roupagem às músicas que marcaram sua carreira com o disco "Feira Moderna". E em 2004, grava seu último cd de inéditas, "Um Dia e Meio".

 

Nessa entrevista Lô Borges fala do Clube da Esquina, de seus antigos amigos e parceiros e de como ele se encaixa no atual cenário musical brasileiro. [Thiago Hausner de Macêdo]

 

 

 

 

 

 

Thiago Hausner de Macêdo - Aqueles garotos do Edifício Levy (prédio onde moravam e se conheceram Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges) e da esquina de Santa Tereza tinham a dimensão de que iam se tornar símbolo de uma cultura musical nacional?

 

Lô Borges - Nenhuma. Eu não tinha nem dimensão da cidade em que eu morava. Quando eu mudei de Santa Tereza — bairro onde eu tinha nascido e morado até os dez anos — para o centro de Belo Horizonte, eu não tinha a dimensão do tamanho que era o centro de Belo Horizonte. Fizemos algo completamente voltado para a arte. Amávamos o que fazíamos, amávamos a música, amávamos nos encontrar, produzir canções, estávamos cheios de verdades da gente, as nossas verdades, as nossas vontades. Queríamos mudar o mundo, como o Márcio Borges fala muito no livro (Os Sonhos Não Envelhecem — Histórias do Clube da Esquina). É claro que a gente não esperava que isso fosse se tornar uma coisa que anos depois, vários músicos norte-americanos saudariam, e que todas as pessoas ligadas ao Clube da Esquina fariam carreira sólida, assim como a música mineira.

 

 

TH - O livro Os Sonhos Não Envelhecem — Histórias do Clube da Esquina de Márcio Borges conta a história de um grupo de jovens músicos mineiros que se encontraram numa esquina de Santa Tereza, bairro de Belo Horizonte. Como foi o tempo das esquinas de Santa Tereza?

 

LB - A época de Santa Tereza foi um encontro de pessoas no início das suas respectivas carreiras. Todos, naquele momento, estavam voltados para um álbum do Milton Nascimento, que ele dividia comigo, praticamente me lançando. Músicos como Toninho Horta, Beto Guedes, Wagner Tiso, os pernambucanos Novelli, Naná Vasconcelos, Sirlan, sem contar o pessoal que já estava radicado no Rio, participaram disso tudo. Foi uma época em que a gente se encontrava mais, compúnhamos mais juntos, tínhamos uma identidade cultural do entendimento da arte de uma maneira muito parecida. A gente era mais ou menos um bando da esquina, era um nome que caberia muito bem, "clube da esquina", ou "bando da esquina". Existia essa interação, tanto na vida pessoal, como na profissional. Encontrávamos nos bares para tomar umas, morávamos na beira da praia juntos, para compor. Foi um momento da vida em que estávamos super juntos, super perto. E isso proporcionou a história do álbum, que foi gravado por essas pessoas.

 

 

TH - Qual a importância do álbum Clube da Esquina (1972) na vida do jovem Lô Borges e dos músicos do clube?

 

LB - Foi um álbum importante, porque a partir dali a (gravadora) EMI-ODEON começou a se interessar pelo trabalho das pessoas que estavam vindo de Minas. Na verdade, quando o Milton me convidou, o pessoal da ODEON falou: "Pô, que cara é esse? Tem dezoito anos e você quer gravar com o cara? Ninguém conhece o cara. Que história é essa?". Teve uma certa restrição. Mas na época não existia o departamento de marketing, o que existia era o  departamento artístico. O pessoal, quando escutou a música, falou: "É bom! É bom e a gente quer". Então, eles toparam lançar o lp de um cara de dezoito anos, que no caso sou eu. E aí, cara, a gente fez o álbum. E todo mundo ficou unido em torno e a partir desse álbum. Isso abriu as portas pra carreira de Beto Guedes, que atuou muito no disco, e para o Flávio Venturini. Enfim, foi muito legal esse "negócio" das pessoas se encontrando.

 

 

TH - Qual a maior semelhança entre o Clube da Esquina e Minas Gerais? Por que o Clube traduz tanto essa região?

 

LB - Na verdade, isso é uma coisa que não tem como avaliar. É uma identidade, né? As pessoas buscam identidade com as coisas. E uma das identidades da cultura mineira é o Clube da Esquina. Como tem o Galpão, no teatro; o grupo Corpo, na dança, enfim. Mas o Clube da Esquina é uma marca que representa Minas muito fortemente. Acho que a gente não sabia que isso iria acontecer, nossa intenção não era essa, nunca foi. Nosso negócio era fazer música, simplesmente. Fazer músicas e letras e canções, e mudar o mundo com essas músicas, com essas letras, com essas canções. E, de uma certa forma, a gente conseguiu mudar um pouco, a gente mudou um pouco, eu acho que o papel do artista é tentar fazer essa mudança, propor essa mudança pras pessoas. Aí as coisas mudam. Isso é importante.

 

 

TH - Qual a maior diferença do Clube da Esquina de Santa Tereza para o de hoje.

 

LB - Eu acho que o Clube da Esquina é uma coisa mutante. Eu me sinto mutante nessa história. Eu dou susto na galera. O próprio pessoal do Clube da Esquina escuta os meus discos e fala assim: "Esse cara tá ficando meio maluco, acho que o Lô tá doido". Tomam um pouco de susto, às vezes. Acho que o Beto está fazendo as coisas dele, o Flávio fazendo os discos dele, eu não vou entrar no mérito do que cada um tá fazendo, e se me agrada pra caramba, ou se não me agrada tanto. Eu sou artista e sou público, também. Tenho opiniões que prefiro não comentar. Não vou ficar aqui rasgando seda. "O Flavinho é uma gracinha, o Betinho maravilhosinho, o Milton é uma gracinha". Eu não vou ficar falando isso, porque a gente já fez coisas importantes pra música brasileira, e isso já é o suficiente.

 

 

TH - Com o tempo cada um dos músicos, letristas e envolvidos com o Clube da Esquina seguiram um rumo diferente. Ainda existe aquela antiga amizade e parcerias?

 

LB - Hoje é completamente diferente, porque cada um partiu pra sua carreira. Todo mundo construiu família, "nego" teve filho, "nego" já é avô, alguns não têm filho nenhum, outros têm dez. Um mora em Sirlam (risos), outro mora no Sri Lanka (risos). Um mora na Serra, outro mora em Santa Tereza.

 

O grupo se dissolveu. Dissipou um pouco. Cada um foi cuidar da sua vida. E fizeram muito bem. Eu fui cuidar da minha, o Beto foi cuidar da dele, o Flávio foi cuidar da dele, o Milton foi cuidar da vida dele também. Viver é uma coisa pra profissional, não pra amador. Passar trinta anos "agarrado" com o amiguinho não fica bem... (risos) Eu acho que você pode parar, renovar as coisas.

 

Então, cada um partiu pra sua carreira. Eventualmente, ao longo desses anos, nós fizemos alguns encontros da turma da esquina, do Clube da Esquina. Eu e o Milton ainda temos uma relação estreita. De vez em quando ele me convida pra alguma coisa, sempre coisas legais. Tipo tocar em Paris, tocar em Amsterdã e em alguns projetos aqui no Brasil, também. Mas, na verdade, eu faço hoje menos músicas com esses músicos que eram, e que são do Clube da Esquina, porque a minha cabeça também mudou e cada um agora tá na sua.

 

 

 

 

TH - Você tem acompanhado a nova música brasileira? O que tem de bom nessa nova safra musical?

 

LB - Tem muita gente legal fazendo música hoje. Tem muita gente buscando. Eu me sinto como uma pessoa absolutamente da geração que tá chegando, e isso me mantém com o pique de fazer música.

 

 

TH - E pra que direção aponta a música de Lô Borges hoje?

 

LB - Eu aponto pra muitos lados. Eu aponto pra Tom Zé, pra Arnaldo Antunes, pra Samuel Rosa. Meu negócio é misturar, sacou, velho? A cultura e a música são feitas para unir as pessoas, unir as diferentes estéticas, diferentes histórias. Na verdade, tá todo mundo ligado em torno da música. Sou um cara da minha geração. Sou um dos caras que mais busca esses encontros inusitados, isso faz parte da minha característica pessoal. Eu, como pessoa, sou assim, tem pessoas que são mais pacatas, que ficam fazendo a própria música. Fico sempre a fim de misturar carne de porco com doce de leite, entendeu, cara? Umas coisas assim...

 

 

TH - Essa conexão entre Lô Borges e a nova música brasileira pode dizer que você ainda acredita nos versos da canção "Clube da Esquina II" (letra de Márcio Borges, música de Milton Nascimento e Lô Borges) que dizem que "os sonhos não envelhecem"? O som de Lô Borges ainda é novo?

 

LB - Eu tô sempre começando. Quando penso em Lenine, Zeca Baleiro, Samuel Rosa, pessoas com quem eu já dividi shows, me sinto um desses caras, na mesma sintonia. Só que eu acho é que cheguei um pouco antes, uns dez anos antes. E eu faço parte desse grupo de pessoas, diferententemente do que um imbecil escreveu numa revista de nome nacional (referindo-se ao jornalista Sérgio Martins, da revista Veja, que disse em um artigo que Lô Borges está ultrapassado). Esse cara acha que tá preparado. Quer dizer, o cara fica lá, catando milho pros patrões, e as pessoas ficam sem ter muita noção do que acontece, e o que acontece é outra coisa. Na verdade o que acontece com a música dita do Clube da Esquina, pelo menos com a música do Lô Borges — isso eu posso dizer, porque é a música que eu faço, para o público que eu vejo — é uma música muito viva e atual. É legal fazer parte desse grupo de pessoas e, ao mesmo tempo, fazer parte de um grupo de pessoas que começou há trinta anos atrás. Isso que eu acho bacana pra caramba na minha vida.

 

 

TH - A juventude que presenciou a época da ditadura nas décadas de 60 e 70 (como a sua) era considerada politizada e revolucionária. Como você vê a atual juventude brasileira?

 

LB - Bom, da juventude atual eu posso falar do que eu vejo de concreto. Nos meus shows os jovens são aqueles que a gente vê nas universidades, são pessoas legais. Mas muitos têm sempre aquela visão: a juventude é alienada. E isso não existe por completo. Graças a Deus, não temos mais ditadura e governo militar. E nisso ficou um pouco dessa idéia que a juventude tá sempre alienada. Não concordo exatamente com isso. Eu acho que tem a alienação sim, assim como os veículos de alienação, os projetos de alienação e os projetos de mídia, que alienam as pessoas. Alguns, vindos de fora, com padrões internacionais, e toda uma coisa babaca. Uma parte da juventude acompanha, aí vira uma massa de manobra, uma terra de gado, cheia de boizinhos jovens, jovens rebentos, entendeu? Um projeto que não faz parte do projeto dela, é um projeto de imperialismo cultural e até regional. Tem isso mesmo, eu consigo ver, mas não quero olhar pra isso. Eu quero olhar pra onde vai dar frutos legais. E eu acho que a juventude nesse aspecto é legal.

 

 

TH - Como atingir as pessoas hoje com a sua música, numa sociedade que é empurrada a ingerir músicas de caráter altamente comercial?

 

LB - Apesar de eu não freqüentar muito a mídia formal, como a TV Globo, e programas como os do Gugu, existe um público com o DNA da gente, e o público que graças a Deus procria, entendeu? (risos). E aí, o que a gente tem que continuar fazendo? Na minha opinião a gente tem que continuar fazendo músicas, sacou? Nos meus shows gosto de cantar muito as músicas do Clube da Esquina, misturadas com o que estou compondo recentemente.

 

"O Trem Azul" eu já fiz, o "Clube da Esquina II" eu já fiz, "Paisagem na Janela" eu já fiz, "Nuvem Cigana" eu já fiz, "Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor" eu já fiz, já fiz "Açúcar Sugar". Todas essas músicas eu já fiz. E o negócio é continuar fazendo. Todas as canções que eu fiz no passado se juntam muito bem às canções que faço nos dias de hoje, e não significa que estou fazendo as mesmas coisas do passado. Isso é que é bacana. Existe um elo que liga tudo. O tempo e a vida são muito curtos. As coisas passam muito rápidas. Que que é trinta anos? Pô, nós somos pessoas especiais, todos nós... Nós atravessamos séculos, milênios. As pessoas têm que se tocar que o negócio é por aí.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[Entrevista realizada no Restaurante do Xandi, na cidade de Itajubá, em 24 de março de 2006.]

 

 
 
 
 
 
agosto, 2006
 
 
 
 

 

 
 
 

Thiago Hausner de Macêdo (Pedralva-MG, 28/08/1984). Músico, poeta, estudante de Jornalismo. Acredita muito na vida e acha que não sabe nada sobre ela. Espera, um dia, saber menos ainda.