©sophie broadbridge
 
 
 
 
 
 
 

1) GOLDING, SHAKESPEARE & O NARCISO DE OVÍDIO*

 

As the soule of Euphorbus was thought to live in Pythagoras:

so the sweete wittie soule of Ovid lives

in mellifluous & honytongued Shakespeare.

 

                        Palladis Tamia: Wits Treasury, 1598

 

Arthur Golding publicou sua tradução dos "xv. Bookes of P. Ouidius Naso, into English meeter, a worke very pleasaunt and delectable" no ano de 1567, impresso em Londres por William Seres. Foi este que Pound chamou, no ABC of Reading, "o mais belo livro da língua"; essa era sua opinião e "muito provavelmente a de Shakespeare também", e consagrou 28 páginas da antologia de poesia em língua inglesa que organizou com Marcela Spann ao trabalho de Golding1.

A tradução ficou famosa2 principalmente pela coincidência de duas coisas: uma, a fama provavelmente exagerada de que Shakespeare não sabia latim suficiente (a partir do comentário despeitado de Ben Jonson, virtuose em latim e grego); e de que, portanto, teria sido Golding o seu Ovídio.

O "English meeter" do frontispício do livro é o velho heptâmetro jâmbico, que hoje encontra inúmeros detratores, por parecer um metro muito longo, fastidioso, rude. Além disso, Golding utiliza rimas no esquema dístico, o que, é óbvio, não existe no original; também aumenta consideravelmente os versos originais, porque ainda não havia, ao menos eu suponho, esse orgulho atual de se manter o número de versos, sílabas, ou de diminuí-lo, o que demonstra fidelidade, virtuosismo, assegura a concisão que esperamos das grandes obras, dos grandes tradutores, etc.

A novíssima edição do texto das Ovid's Metamorphoses (ed. 2000) traz um ensaio de John Frederick Nims apropriadamente chamado "Ovid, Golding, and the Craft of Poetry", em que o professor apresenta diversas falhas de leitura e técnica do verso em Arthur Golding. Falhas de leitura quando o tradutor não identifica os inúmeros jogos verbais pelos quais Ovídio é tão famoso, o que inclui até mesmo aspectos iconográficos de invenção verbal; falhas de técnica do verso quando Golding precisa encher o metro, ou enfia palavras apenas para conformidade de ritmo e rima. Etc.

No primeiro caso, o dos jogos vebais, Nims menciona o seguinte, no livro VIII, da construção do labirinto em que Dédalo

 

                        lumina ...

ducit in errorem variarum ambage viarum.

 

"Induz a erro os olhos pelas vias de vários enigmas", numa tradução pedestre do texto. Mas Nims chama a atenção do caro leitor para o aspecto engenhoso de Ovídio indicar a confusão do olho na semelhança indiscreta entre "variarum" e "viarum". Nims: "a própria dicção dramatiza as confusões do labirinto". Vejamos o que fez Golding:

 

(...)            He confounds his worke with sodaine stops and stayes,

And with great uncertaintie of sundrie windy wayes ...

           

que perde o visual sugestivo (embora eu acredite que seja difícil não apreciar em si mesma a musicalidade desses dois versos). No segundo caso, Nims aponta um verso na história de Faetonte — que quer conduzir o carro do Sol —, em que Apolo, seu pai, lhe dá uma curta e concisa advertência:

 

Sors tua mortalis; non est mortale quod optas.

 

transformada por Golding nestes longos versos:

 

Thy state is mortall, weake and frayle, the thing thou doest desire

Is such, whereto no mortall man is able to aspire (...)

 

Nims considera certamente uma virtude a concisão, e isso é uma lição clássica da poesia, que vale igualmente para a tradução poética. Como Ovídio é um poeta notável pelo estilo profuso, a segunda crítica pareceria inicialmente equivocada se se pudesse pensar que Golding obedecia ao estilo, não ao trecho. Mas Golding estava servindo apenas a ritmo e rima, estendendo desnecessariamente o verso, e é evidente que não se trata de um homem tão sofisticado na arte do verso quanto Ovídio3. É preciso fazer notar isso ao menos em respeito a uma observação muito interessante de Jorge Luis Borges. Borges está comentando a aparente infidelidade das traduções de Ezra Pound, e calha o exemplo que encontra em Chaucer, que "traduzia muito livremente; o árido aforismo hipocrático Ars longa, vita brevis inspirou-lhe esta música melancólica:

 

The lyf so short, the craft so long to lerne"4

 

interessantíssima, a despeito mesmo do fato de aumentar consideravelmente o tamanho do ditado. Importante é perceber que Chaucer5 "traduzia muito livremente" porque mudava a linguagem da fonte para a índole da sua língua. Nims não é indiferente a essa virtude, e é o que exalta no tradutor Golding. Pound não tinha esses pudores, como vimos, e o louvava sem restrições.

Podemos dizer que Shakespeare também praticava a arte de traduzir muito livremente, num sentido amplo da palavra. Sem falar em Ovídio, poderíamos citar várias canções e contos italianos, e Michel de Montaigne, entre vários outros a partir de quem traduz, adapta, emenda, transcreve, recria, emula, alude, cita, comenta, imita, etc. De Montaigne, por exemplo, é sabido que Shakespeare tomou emprestado um trecho da tradução de John Florio, Essays, de 1603, particularmente o capítulo XXX, "Dos Canibais". O trecho sobre a tribo de tupinambás brasileiros, cujos índios  foram parar na côrte francesa:

 

"it is a nation, would I answer Plato, that hath no kind of traffic, no knowledge of Letters, no intelligence of numbers, no name of magistrate, nor of politic superiority; no use of service, of riches or of poverty; no contracts, no successions, no partitions, no occupation but idle; no respect of kindred, but common, no apparel but natural, no manuring of lands, no use of wine, corn, or metal (...) How disonant would he (Plato) find his imaginary common commonwealth from this perfection?"6

 

Shakespeare tomou o discurso emprestado para The Tempest e o pôs na boca de Gonzalo, que o profere logo após  o naufrágio causado por Próspero.

 

GONZALO: I' th' Commonwealth I would (by contraries)

Execute all things: for no kind of traffic

Would I admit: no name of magistrate:

Letters should not be known: riches, poverty,

And use of service, none: contract, succession,

Bourn, bound of land, tilth, vineyard none:

No use of metal, corn, or wine, or oil:

No occupation, all men idle, all:

And women too, but innocent and pure:

No sovereignity.

 

Muito a propósito, porque a peça, assim como várias outras obras (como vemos já no Pantagruel de Rabelais, e no próprio texto de Montaigne), apresenta o contato com o Novo Continente. Essa peça calha de ser, sabidamente também, uma das mais ovidianas de Master William. Há um detalhe curioso de tradução de Shakespeare ligado a esse fato: Augusto de Campos traduziu uma das canções de Ariel ("Full fathom five thy father lies") e introduziu bem oportunamente um pequeno índice crítico que aproxima os dois autores, mas que passa em geral despercebido:

 

Teu pai repousa em paz a trinta pés:

De seus ossos coral se fez:

Aquelas pérolas que vês

Foram seus olhos uma vez;

Nada que é dele se perdeu,

Metamorfose o reverteu

Em algo estranho e nobre.

Sereias tangem a seu dobre:

Dlin-dlão.

Silêncio! o sino agora,

Dlin-dlão, ora.

 

e o original de Shakespeare:

 

Full fathom five thy father lies,

Of his bones are coral made:

Those are pearls that were his eyes,

Nothing of him that doth fade,

But doth suffer a sea-change

Into something rich, and strange:

Sea-nymphs hourly ring his knell.

            Burthen: Ding-dong.

Hark now I hear them, ding-dong bell.

 

O verso que assinalei em itálicos na tradução e no original demonstra o que eu disse: Augusto de Campos traduz sea-change por "metamorfose", e estabelece com discrição e engenho a ligação entre os dois poetas. Seria possível ainda examinar as relações dos discursos de Próspero ao deixar a magia e o trecho de Medéia nas Metamorfoses, como fizeram vários críticos, examinar a peça dentro da peça de Midsummer night’s dream (os atores ensaiam "Píramo e Tisbe", outro conto das Metamorfoses), Titânia se apaixonando pelo que há de mais próximo a uma transformação física no palco de Shakespeare, o ator vestido com uma cabeça de burro, etc. Poderíamos também comparar o The Rape of Lucrece com o rapto e conseqüente estupro de Koré-Prosérpina por Hades, e assim por diante. Seria uma conversa virtualmente infinita. O importante é perceber o quanto Shakespeare aproveitou de Ovídio num sentido totalmente diverso do de Dante. Para Shakespeare, Ovídio é um semelhante no apreço pela diversidade, pela ação dramática, pelo estilo ornamental e retórico.

         As Metamorfoses haviam sido traduzidas por Arthur Golding, como disse, e publicadas no ano de 1567. Ainda que consideremos exagerada a afirmação de Jonson sobre o "pouco latim" de Shakespeare, é evidente que conhecia e usava a tradução não só como leitura prazerosa de Ovídio, mas também como fonte para apropriações e linguagem. Muito mais hábil que Golding, infinitamente mais elegante, é, entretanto, bastante aceitável que Shakespeare apreciasse a musicalidade inglesa e o sabor da versão de 1567. Há mais do que traços estilísticos de Golding em Shakespeare. Por exemplo, o trecho de Medéia citado linhas atrás ganha comentário de Nims justamente por demonstrar o eco dos versos de Ovídio (Golding), que faz Medéia dizer, "auraeque et venti montesque amnesque lacusque,/dique omnes nemorum, dique omnes noctis adeste," isto é, "brisas e ventos, montes, rios e lagos,/e todos os deuses dos bosques, e todos os deuses da noite, vinde".

A tradução de Golding, que geralmente acrescenta adjetivos e adapta, segue assim: "Ye Ayres and windes: ye Elves of Hilles, of Brookes, of Woodes alone,/Of standing Lakes, and of the Night approche ye everychone." Shakespeare tomou daqui o início do discurso de Próspero, como vemos: "Ye elves of hills, brooks, standing lakes, and groves." Jonathan Bate, em seu ensaio na edição de 2000 da tradução de Golding, apresenta esse trecho e aponta para os deuses de Ovídio que foram transformados em "elfos"  na tradução, e a manutenção deles por Shakespeare, que, além disso, ainda mantém o acréscimo de "standing" em companhia de "lakes". Bate prossegue na comparação, mas fico por aqui. Constata-se facilmente que o uso que "o maior dramaturgo inglês" faz do sulmonense é menos sistemático do que o de Dante, que utiliza tanto a idéia de metamorfose quanto o engenho de Ovídio para desenvolvimentos retóricos e teológicos exclusivos de seu poema.

Shakespeare também citou Ovídio, isto é, se creditamos a autoria de Titus Andronicus a ele. Curtius duvida7, e Eliot, citado por ele em nota, considera essa "one of  the stupidest and most uninspired plays ever written". Toda a história do estupro de Lavínia e da monstruosidade de os estrupradores cortarem-lhe a língua e as mãos — para que não tivesse meios de contar o quê, nem de quem o sofrera — emparelha Shakespeare e Ovídio, pois ela folheia as Metamorfoses e indica a história de Tereu e Procne, idêntica à sua própria; seu pai, Andronicus, encontra os criminosos, decepa suas cabeças e prepara com elas uma torta, assim como Procne que, quando soube que seu marido Tereu estuprou e mutilou sua irmã Filomela, preparou o próprio filho para que ele comesse.

Se Ovídio, em sua época, foi conhecido como poeta do estilo ornamental, essa é uma característica que divide certamente com o "honeytongued", o "mellifluous" Shakespeare, assim como Francis Meres assinala na epígrafe a este breve comentário; além do mais, ele, Shakespeare, foi um homem do período chamado isabelino, que quase se confunde com a idéia de estilo ornamental em inglês.

 

 

A tradução do Narciso

 

Conheço outras duas para o português: a de António Feliciano de Castilho e a de Haroldo de Campos. Embora em geral eu aprecie muito o trabalho tradutório do romântico português, as Metamorfoses foram seu fracasso (dizem que seu Fausto também não presta, devem estar certos). O trecho do Narciso é um dos melhores e, mesmo assim, inteiramente desonrosa a comparação com o exemplar de Haroldo de Campos, que realizou um trabalho notável nesse episódio, infelizmente, como já disse, talvez o único que tenha traduzido8.

E é notável por uma série de motivos: o primeiro, como escrevi no comentário à minha tradução de "Baco & os Piratas Tirrenos", porque inteligentemente percebeu & adaptou os espelhamentos verbais da obra em latim, coisa que passou totalmente despercebida por Castilho. Como vocês poderão notar confrontando a minha tradução e a de Haroldo, há alguns trechos em que utilizei suas soluções (como bebe/embebe, por exemplo); outro motivo é que optou pelo verso de doze sílabas, que lhe permitiu maior flexibilidade do que as dez de Castilho; porque, também, tomou muito cuidado com o estilo de Ovídio, interferindo menos com ele do que com o de Homero, na Ilíada. Haroldo, no artigo que publicou junto com o "Narciso" na Folha de São Paulo, escreveu que "tinha presente" o trabalho de Castilho, que chamou de antigo, "mas de boa cepa": evidentemente, ao fim de seu próprio trabalho, deve ter tido a certeza de que concluía algo muito melhor.

A minha tradução respeita os mesmos padrões gerais das que apresentei anteriormente. Há a atenção específica para os jogos de espelhamento, como disse, que mimetizam a famosa história do jovem que ama a si mesmo refletido num lago, contada nos versos.

 

 

A Morte de Narciso

 

(Metamorfoses, III, 407- 473; tradução de Dirceu Villa) 

 

Fonte sem limo, nítida prata era a água

a que não vinham pastores, nem vinha pastar

o rebanho montês, nem gado aqui se agregava, nem pássaro

ou fera, nem da árvore um ramo sequer turvara-lhe o leito jamais;

grama ao redor, ao alento do arroio

e a floresta impedia que o sol aquecesse este sítio.

Aqui o rapaz, do calor e do esforço da caça cansado,

vem se deitar, pela feição do lugar e em busca da fonte;

e enquanto sacia uma sede, outra sede o assalta,

e enquanto ele bebe o embebe a imagem formosa,

ama a esperança sem corpo, e dá corpo ao que é sombra.

Estático diante de si, imóvel e suspenso,

detém-se, uma estátua marmórea de Paros;

debruçado no chão, contempla astros gêmeos, seus olhos;

seus cabelos, dignos de Baco e dignos de Apollo;

as faces imberbes, o ebúrneo pescoço, os lábios

perfeitos, e a pele que mescla neve e rubor;

admira-se todo com aquilo que nele admiram:

imprudente, cobiça-se; louva, mas louva a si mesmo,

quando suplica, o suplicam; fogo ele inflama e no fogo ele arde;

quantos beijos sedentos não deu na mentira da fonte,

quantas vezes não imerge seus braços no meio da água

para abraçar o pescoço que via, mas sem se alcançar!

Aquilo que vê, ignora; mas o que vê o consome,

os olhos também, enganados no erro, o incitam.

Crédulo! fugaz simulacro te frustra no enlace;

queres: não há; o que amas: afasta-te e foi-se!

Esta sombra, que miras, reflete tua imagem:

de si nada tem; contigo ela vem: fica, se estás,

partia contigo, pudesses partir!

Nem as searas de Ceres nem sono

podem tirá-lo de lá, que estendido na relva

admira incansável a ilusão,

perdido nos seus próprios olhos;

levantando-se um pouco, ergue os braços ao bosque:

"Acaso houve amor mais cruel, ó florestas?

sim, vós sabeis, vós que fostes refúgio oportuno para muitos.

Acaso há memória de tanto tormento nessa vida que é vossa de séculos?

Me agrada o que vejo, e o que vejo e me agrada

não posso encontrar" — em tais erros insiste o amante —,

"a dor todavia é pior: sequer nos separa o imenso de um mar,

ou longas estradas ou montes, ou muros com portas trancadas;

a fímbria da fonte nos tolhe! ele também me deseja, pois

quando aproximo meus lábios da líquida linfa,

junto se inclina a beijar minha boca.

Tocá-lo é por pouco; mínimo o que nos impede o amor.

Vem aqui, quem quer que tu sejas! Me iludes por quê, menino sem par,

quando procuro-te tanto? idade nem forma

tenho de te afugentar, amado que fui pelas ninfas também!

Teu vulto amigo promete não sei que esperança:

quando te estendo meus braços, estendes-me os teus,

quando sorrio, sorris; lágrimas, quando chorei,

choraste também; e, no mover da tua boca formosa adivinho

as palavras que dizes, sem que me venham ao ouvido.

Este sou eu! já não me engana os sentidos a imagem;

Ardo em amar-me: ateio este fogo e me firo.

Que faço? peço e sou o que peço? e pedir pelo quê?

trago comigo o que quero: minha riqueza me torna um pedinte.

Ah, se agora pudesse partir do meu corpo!

Inédito isso num amante: querer que lhe deixe o amor.

Sofro e se vai meu vigor, e nem muito tempo de vida

me sobra: expiro na flor da minha idade.

Não me pesa morrer, alivia-me as penas;

ao meu amado, mais vida eu queria.

Juntos morremos, porém, num só suspiro concordes."

 

 

A Morte de Narciso

 

(Metamorfoses, III, 407- 473) 

 

Fons erat inlimis, nitidis argenteus undis,
quem neque pastores neque pastae monte capellae
contigerant aliudve pecus, quem nulla volucris
nec fera turbarat nec lapsus ab arbore ramus;               
gramen erat circa, quod proximus umor alebat,
silvaque sole locum passura tepescere nullo.
hic puer et studio venandi lassus et aestu
procubuit faciemque loci fontemque secutus,
dumque sitim sedare cupit, sitis altera crevit,               
dumque bibit, visae correptus imagine formae
spem sine corpore amat, corpus putat esse, quod umbra est.
adstupet ipse sibi vultuque inmotus eodem
haeret, ut e Pario formatum marmore signum;
spectat humi positus geminum, sua lumina, sidus               
et dignos Baccho, dignos et Apolline crines
inpubesque genas et eburnea colla decusque
oris et in niveo mixtum candore ruborem,
cunctaque miratur, quibus est mirabilis ipse:
se cupit inprudens et, qui probat, ipse probatur,               
dumque petit, petitur, pariterque accendit et ardet.
inrita fallaci quotiens dedit oscula fonti,
in mediis quotiens visum captantia collum
bracchia mersit aquis nec se deprendit in illis!
quid videat, nescit; sed quod videt, uritur illo,               
atque oculos idem, qui decipit, incitat error.
credule, quid frustra simulacra fugacia captas?
quod petis, est nusquam; quod amas, avertere, perdes!
ista repercussae, quam cernis, imaginis umbra est:
nil habet ista sui; tecum venitque manetque;               
tecum discedet, si tu discedere possis!
     Non illum Cereris, non illum cura quietis
abstrahere inde potest, sed opaca fusus in herba
spectat inexpleto mendacem lumine formam
perque oculos perit ipse suos; paulumque levatus               
ad circumstantes tendens sua bracchia silvas
'ecquis, io silvae, crudelius' inquit 'amavit?
scitis enim et multis latebra opportuna fuistis.
ecquem, cum vestrae tot agantur saecula vitae,
qui sic tabuerit, longo meministis in aevo?               
et placet et video; sed quod videoque placetque,
non tamen invenio'tantus tenet error amantem
'quoque magis doleam, nec nos mare separat ingens
nec via nec montes nec clausis moenia portis;
exigua prohibemur aqua! cupit ipse teneri:               

nam quotiens liquidis porreximus oscula lymphis,
hic totiens ad me resupino nititur ore.
posse putes tangi: minimum est, quod amantibus obstat.
quisquis es, huc exi! quid me, puer unice, fallis
quove petitus abis? certe nec forma nec aetas               
est mea, quam fugias, et amarunt me quoque nymphae!
spem mihi nescio quam vultu promittis amico,
cumque ego porrexi tibi bracchia, porrigis ultro,
cum risi, adrides; lacrimas quoque saepe notavi
me lacrimante tuas; nutu quoque signa remittis               
et, quantum motu formosi suspicor oris,
verba refers aures non pervenientia nostras!
iste ego sum: sensi, nec me mea fallit imago;
uror amore mei: flammas moveoque feroque.
quid faciam? roger anne rogem? quid deinde rogabo?               
quod cupio mecum est: inopem me copia fecit.
o utinam a nostro secedere corpore possem!
votum in amante novum, vellem, quod amamus, abesset.
iamque dolor vires adimit, nec tempora vitae
longa meae superant, primoque exstinguor in aevo.               
nec mihi mors gravis est posituro morte dolores,
hic, qui diligitur, vellem diuturnior esset;
nunc duo concordes anima moriemur in una.'


 

2) O NUYO-FUTURISMO APLICADO DE EDWIN TORRES

 

        Suponho que todos saibam do fracasso que foi o futurismo histórico, não na proposição de meia-dúzia de idéias muito boas e eficazes, mas na maneira como essas idéias chegaram ao papel como obra escrita (no caso da escultura, no entanto, é um dos modernismos mais bem aplicados e com resultados mais significativos), e na pouca inteligência que foi propor uma coisa a ser vista ironicamente em algum ponto do futuro como um apego risível a certas maravilhas da, por assim dizer, "ciência", já apenas peças de ferro-velho. Resumindo, era um negócio natimorto.

Por outro lado, falo do vivíssimo Torres como de um futurista certeiro na poesia. Há uma pequena história sobre isso, é claro.

Tive contato com a poesia dele, se não me engano, no ano de 2002 e pela internet. Em 2004, no entanto, ele esteve aqui no Brasil para o lançamento da revista nova-iorquina Rattapallax, em seu número 10, que tem distribuição nacional da Editora 34. Muy bien, organizaram uma festa no Sesc Pompéia, com mais de uma dezena de poetas brasileiros e estadunidenses, entre bons e ruins. Tinha de tudo, incluindo eu mesmo.

E, como eu disse, havia poetas bons e ruins, mas o caso é que quando Torres foi para o palco "fazer a sua coisa", acompanhado apenas de um rádio com uma gravação mais ou menos de ruídos, ele parecia a única coisa viva em toda aquela apresentação. Por dois motivos: um, ele é um dos mais destacados e peculiares praticantes desse tipo de poesia com vários adeptos nos EUA, que inclui a performance como parte quase indissociável de alguns trabalhos; outro, que sua poesia pessoalíssima e extremamente precisa (inclusive no modo de a dizer) tem um impacto imediato em qualquer pessoa que tenha vivido uns três anos em qualquer metrópole: um acúmulo de pequenos sons em vários tons diferentes, como múltiplas vozes se interrompendo e se cruzando, mesmo assim construindo curiosa trama de som e sentido, quase música, extrapolando em muito a idéia do "he does the police in different voices" de "The Waste Land", de T. S. Eliot.

Óbvio, John Cage é uma referência, assim como cummings, o design gráfico do futurismo, etc. Mas isso vira outra coisa, e não temos também aquela reivindicação midiática, tão comum no Brasil: Torres utiliza o instrumento de trabalho que lhe for necessário, sem fazer disso uma bizarra plataforma de política cultural. O que por outro lado põe um ponto de interrogação na cabeça do leitor, que se pergunta: "Então como assim, futurismo?"

A sensação de funcionalidade daquele discurso extremamente fragmentário e musical, com acompanhamento de ruídos, vem do modo preciso como Torres utiliza sua técnica8 e daí a impressão única que se teve de uma apresentação dessas, mesmo que outros poetas tenham vindo com banda inteira, ou que outros cantassem. Naquela ocasião (tínhamos nos encontrado no hotel onde ele estava com os poetas Yusef Komunyakaa, Anna Ross e os editores da Rattapallax) ele me deu um de seus livros e um CD com seus poemas sonoros. O que alguns chamariam "experimento" em seu CD não passaria como coisa totalmente estranha a, por exemplo, um CD do Radiohead — por isso também eu acho que as performances de Torres encontram um lugar plausível dentro de nossas mentes, quer dizer, elas não surgem num vácuo total de referência. Na matéria impressa isso fica ainda mais claro.

Seu livro All-Union Day of the Shock Worker (Roof Books, New York, 2001) é um verdadeiro desafio gráfico, intelectual e musical. Infelizmente, não tenho como apresentá-lo graficamente nesta página, mas pense numa radicalização do processo tipográfico futurista, que compunha hierarquias sonoras e visuais com os tipos na página, e você terá uma idéia. Há até mesmo um poema, entre a ironia e a homenagem, "A Nuyo Futurist’s Manifestiny" que condensa a história toda no seguinte: "FUTURISMO ISSA NOW ONLY HERE/BUT IT IS ISN'T HERE YU KNO?". Está e não está ao mesmo tempo, porque Torres não propõe um futuro desejado e maquinal, mas reconhece o aspecto chocante, sintético e simultâneo do movimento frenético (mimetizado por palavras e tipografia) na maneira como o torna linguagem estranha, mas plausível, para a sensibilidade atual. Se não, vejamos uma possível explicação num pedaço do meu poema predileto do livro, chamado "Canyon Suite":

 

 

She:                                                     "...& I

                                             stare at the world

                                                    in my mirror,

 

 

& every day                                   is tomorrow,

                                                                 & I

stare                    at tomorrow,  

                                       & my

world                   wants to end,

                                         & I

drown                  what I seek,

                                                                 & I

                           want to complete this

reach

                                                              reach

the world for tomorrow…"10 

 

 

 

3) MÉTRICA & UM DEDO DE PROSÓDIA

 

         Para nós que usamos o português para falar e escrever, existem dois livros que tentam definir, a partir da discussão, um método para qualificar os versos dessa língua. O primeiro deles foi escrito por António Feliciano de Castilho (de quem tenho falado nos textos sobre Ovídio), o infelizmente célebre pela ridícula questão Coimbrã, contra  Antero "Vencido da Vida" Quental. Ele nos deixou um tratado de versificação portuguesa propondo que paremos de contar o verso em sua última sílaba tônica, justificando-se com a seguinte pérola: "aí o poeta já cumpriu seu dever". O outro foi o Prof. Said Ali, que contestou Castilho insistindo na contagem da sílaba átona, sob os argumentos de termos de novo o chamado verso grave (o que acaba com um desenho suave no fim contadamente átono) e de que não faz sentido essa história de obrigação, e de se ignorar uma ou duas sílabas finais na contagem, etc.

        No prefácio a uma das edições do pequeno volume do Prof. Said Ali, Manuel Bandeira, discípulo do provecto professor dos tempos do colégio Pedro II, diz preferir a versão de Castilho, e dá como exemplo um problema que ocorreria com a contagem dos versos de Casimiro de Abreu, num poeminha famoso, que deve ser entendido como um dissílabo, porque:

 

Pensavas,

Cismavas,

E estavas

Tão pálida

Então;

Qual pálida

Rosa

Mimosa (...)

        

o sétimo verso citado se beneficia do esdrúxulo anterior, que faz sobrar a sílaba –da para complementar a contagem seguinte. Depois, Bandeira diz que na verdade todas as coisas, número de sílabas, aliterações, assonâncias, e assim por diante, não fazem mais do que servir ao ritmo, "finalidade soberana na estrutura formal do poema". Acrescenta umas palavras carinhosas e está acabada a conversa.

Mas eis aí o que ele disse do ritmo, com palavras solenes: "finalidade soberana na estrutura formal do poema". Quem disse isso poderia, com mais um gesto de boa-vontade, ter insistido que os dois modelos não são, em essência, diferentes. A substância do que diz Bandeira é, traduzida num jargão mais pedestre: "Tanto faz como se conte o número de sílabas, não se compõe assim, e isso pouco importa porque o ritmo é a alma do negócio." Chegamos a alguma clareza.

Alguém só se preocupa com a questiúncula da tônica final, ou da átona, se pensa que a métrica pode ser simplesmente acentual ou silábica e para ouvidos cuja maior sutileza sonora é uma martelada. E nunca é. Mesmo os ouvidos mais anestesiados para a duração poderiam conceber diferentes tempos de pronúncia das sílabas, em diferentes circunstâncias.11 E daí que um poema tenha versos de onze, doze e treze sílabas, pelo regime de Castilho ou Ali? O que interessa é a qualidade dessas sílabas na composição da música da frase, e não a paciência imbecil de um poeta que pare pra contar nos dedos ou o faça de cabeça, ou cujo traquejo, aliado ao amor da leitura, o tenha levado a sempre acertar o número, como qualquer aluno de segundo grau poderá fazer decassílabos perfeitos depois de ler Os Lusíadas por uma hora: o sentido da coisa está no ritmo. Os poetas não são contadores, não estão fechando o caixa de um bar. Ou, digamos, os bons não o fazem.

Um hexâmetro grego tem 15, dezessete sílabas; se forem os de uma épica clássica, terão um ritmo regular dactílico, com pequenas variações musicais. Ou seria o caso de pedirmos a Homero que enfiasse seus versos num molde de 12 sílabas, digamos, numericamente "regulares"? Alberto de Oliveira achava frouxos os versos de Camões nos Lusíadas. Os versos de Alberto de Oliveira, além de não possuírem substância, eram duros como um nervo exposto.

A "contagem" puramente numérica não é, portanto, algo que vá à essência do problema. E podemos acrescentar que ela deseduca, endurece os ouvidos e faz com que as pessoas acreditem tolamente que a obediência a esses padrões empedernidos demonstre algum tipo de excelência. Hoje é muito difícil que um aluno do chamado "ensino médio" entenda o que é ritmo, métrica, ou sequer saiba porque deve ficar contando e conferindo uma enfiada voraz de dissílabos, decassílabos, etc. Não haveria dilema se ele soubesse que a escansão revela o andamento rítmico do poema, o seu padrão musical, e só existe para comprovar isso que os nossos ouvidos já nos dizem.

Enfim, chegar ao fim do verso com dez, doze sílabas pouco importa. Importa é saber ouvir. E saber compor como se ouviu. É aquela velha história de Valéry: perguntaram a ele como era o seu "processo de criação", ou o que o valha. Bem, ele deu o seguinte exemplo, dentre muitos possíveis: estava andando um desses dias e um ritmo veio à sua cabeça. Imediatamente, para melhor mantê-lo, começou a marcá-lo com a bengala (in illo tempore, os cavalheiros andavam acompanhados de sua bengala). Sem palavras. Dias depois, naquele ritmo começaram a se encaixar as palavras, e assim o poema começou a ser composto.

Essa história não precisa, é claro, do carimbo de um cartório: vale pelo sentido educativo.

 

 

 

*Outros textos da série: "Baco & Os Piratas Tirrenos", das Metamorfoses de Ovídio

                                  A Morte de Actæon, de Ovídio

 

 

 

Notas