Ofício

 

Ocupo o espaço que não é meu, mas do universo.

Espaço do tamanho do meu corpo aqui,

enchendo inúteis quilos de um metro e setenta

e dois centímetros, o humano de quebra.

Vozes me dizem: eh, tu aí! E me mandam bater

serviços de excrementos em papéis caídos

numa máquina Remington, ou outra qualquer.

E me mandam pro inferno, se inferno houvesse

pior que este inumano existir burocrático.

E depois há o escárnio da minha província.

E a minha vida para cima e para baixo,

para baixo sem cima, ponte umbilical

partida, raiz viva de morta inocência.

Estranhos uns aos outros, que faço eu aqui?

E depois ninguém sabe mesmo do espaço

que ocupo, desnecessário espaço de pernas

e de braços preenchendo o vazio que eu sou.

E o mundo, triste bronze de um sino rachado,

o mundo restará o mesmo sem minha quota

de angústia e sem minha parcela de nada.

 

 

 

 

 

 

Apenas uma Coisa

 

Existe amor?

Palpável como o dia,

como a matéria com que é feito o objeto

chamado mesa, catedral ou baço

nitrindo em tantas coisas?

 

Como amar

esta incorpórea substância carnal,

este lampejo de chão no infinito?

Existe amor?

 

Palpável como a terra?

Debaixo ou sobre a terra, ainda carne,

algum finado saberá do amor,

essa chama votiva a brilhar ainda?

Amou Torquato a Maria? Amou deveras?

Digam-nos os anjos corcundas do além,

a ave agoureira ao céu crucificada,

o revoar de asas na papal coroa.

Amou Torquato a Maria, ainda carne?

Ama Maria a esse pó apenas nome

legado aos filhos como letra morta,

como moeda gasta em mão mendiga?

Chupando um dedo só, o amor se alimenta.

 

 

 

 

 

 

Pequena Ode a Tróia

 

Como te massacraram, ó cidade minha!

Antes, mil vezes antes fosses arrasada

por legiões de abutres do infinito vindos

sobre coisas preditas ao fim do infortúnio

(ânsias, labéus, lábios, mortalhas, augúrios),

a seres, ó cidade minha, pária da alma,

esse corredor de ecos de buzinas pútridas,

esse vai-e-vem de carros sem orfeus por dentro,

que sem destino certo, exceto o do destino

cumprido por estômagos de usuras cheios,

por bailarinos bascos sem balé nenhum,

por procissões sem deuses de alfarrábios velhos,

por úteros no prego dos cachos sem flores,

por proxenetas próstatas de outras vizinhas,

ou por desesperanças dos desenganados,

conduzem promissórias, anticonceptivos,

calvos livros de cheques e de agiotagem,

esses lunfas políticos que em manhãs — outras

que aquelas já havidas, as manhãs do Sol —

saem, quais ratazanas pelo ouro nutridas,

apodrecendo o podre, nutrindo o cadáver.

Se Caim matou Abel e em renovado crime

Abel espera o dia de novamente ser

assassinado em cunha de rota bandeira,

que inveja paira em Tróia ou em outro nome qualquer

da terra podre e azul de água e cotonifícios?

Mutiladas manhãs expõem-se nas vitrinas

de sapatos humanos mendigando pés,

de vestidos humanos mendigando peitos,

de saias humanas mendigando sexos.

Esta é Tróia!, o vigésimo século em Tróia,

blasfemam as fanfarras de súbito mudas

nos ouvidos mareando a pancada da Terra.

 

 

 

 

 

 

O Parto

 

Meu corpo está completo, o homem — não o poeta.

Mas eu quero e é necessário

que me sofra e me solidifique em poeta,

que destrua desde já o supérfluo e o ilusório

e me alucine na essência de mim e das coisas,

para depois, feliz e sofrido, mas verdadeiro,

trazer-me à tona do poema

com um grito de alarma e de alarde:

ser poeta é duro e dura

e consome toda

uma existência.

 

 

 

 

 

 

Contumácia

 

Maldita a vida me seja,

três vezes maldita seja

a vida que me desastra

e que por ser-me finita,

três vezes seja maldita

e amaldiçoada madrasta.

 

Quem me fez como um qualquer,

dormindo aonde estiver,

saiba deste desprazer,

para sempre e desde saiba,

para que o seu Ser não caiba

na pequenez do meu ser,

 

que eu não pedi para estar

com minhas pernas no andar,

com minha emoção a sentir

este universo que tapa

a minha boca num tapa

e a minha língua sem Ti,

 

essa coisa que fede a iodo,

como a água do mar ou do

envelhecimento o rim,

essa coisa que derrama

seu púbis velho de chama

a extinguir-se quase ao fim,

 

corpo de Deus! Corpus Christi!

Viste-O algum dia? Tu O viste

sequer um dia como tu?

Integral e à dor exposto,

desde o cio ao suor do rosto,

desde impotente até nu?

 

Os meus membros são crepúsculos!

São sangue e iodo os meus músculos,

é iodo e sangue a minha cruz.

Por que não nasci não sendo?

Por que, ao amanhecer, acendo,

noutra treva, cega luz?

 

Se além da terra existe ar,

se além da terra ainda há

por menor que seja, um seja,

como à noite volta o dia,

como, ao corpo, o que o procria,

como, em mim, meu ser esteja!

 

Dentro ou fora, qual gaveta,

para que, em mim, o ser meta

quem, em mim, é este meu ser,

olho, em volta, à minha volta,

e olho nada — só o que solta

de qualquer um: quem ou o quê?

 

Nada é, pois tudo se sonha.

E se alguém me falar: ponha

tudo o que lhe resta, e resta

no que, ao pôr-se, se me põe,

para que em mim meu ser sonhe,

vivo morto — e a morte empesta!

 

Como dar à vida pôde

o nada ser que sou de

outro feito pelo ser?

De outro ser, igual a mim,

mas de outro início a outro fim,

noutra vida até morrer?

 

Ó envelhecer do meu estar!

Da leitura de Balzac,

de La Comédie Humaine,

se passaram tantos anos

nos malogros desenganos,

sem disfarce ou mise-en-scène.

 

Bela Eugénie Grandet:

sois lembrança a anoitecer

pelas tardes do meu Carmo,

quem me traz a quem não sou

na usura do pai Goriot

que me a mim dá, para dar-mo

 

no meu duplo a ser mais dois,

quais búfalos que são bois,

ao mar meu a ser mais mar de

ontem que ao ser-te, alma, foi-te,

nas noites que são mais noite,

nas tardes que são sem tarde.

 

Só me lembro das andorinhas,

que hoje são luas-vinhas

que iam e vinham às seis,

só me lembro das sequazes

na imprecisão de alguns quases,

na distância de vocês!

 

Róseas ruas da memória,

róseas ruas hoje escória

que a soçobrar mais me sobe,

afundai-me na lembrança

hoje cravos da criança

que meu cadáver descobre.

 

Como, à noite, acendo a lâmpada,

para imitar (rampa da

noite) uma inútil manhã,

como o como que mais como,

assumo, na idéia, o pomo

da primitiva maçã.

 

Assumo o dia original.

Nascimento à morte igual,

nascimento em morte assumo

nesta página onde, em branco,

minha vida inteira arranco

do nada em que subi. E sumo.

 

E sumo a sós. Mas prossigo:

"na idéia é bem maior o trigo

que na boca o próprio pão,

na idéia janto a sós, comigo,

o pão real que mastigo

feito de imaginação".

 

Azul manhã em contumácia!

Negra noite, azul, te amasse

a idéia sem pensamento,

te amasse a própria Idéia

reduzida a uma hiléia

sem ar, floresta, rio, vento.

 

Locador de um condomínio

frustrador de um hímen híneo,

frustrador de um hímem são,

locador que loca um louco,

de carne e ossos sou reboco

deste barro em maldição.

 

Tudo é farsa, menor dor.

Sou, em mim, o que me sou

desde o ventre que me fez.

E contemplo a arraia, e raia

dela, como de uma praia,

a noite toda. Ei-la aqui. Eis:

 

andaime, sucata, ferro,

vagido, vagina e berro,

viatura e papelório,

passa tudo, e é a viatura

conduzindo à sepultura

meu ser morto. E sem velório.

 

Pois viu a terra e além bebeu-a,

pois viu o tempo e disse: é meu, à

solidão cerzindo a roupa

onde, se me dispo, visto

o sexo nu de algum Cristo

que, despido, não me poupa.

 

Dez anos de coito cego

são as metáforas que lego

à solitária da escrita,

aonde não chega ninguém

exceto o vazio que vem

de uma montanha infinita.

 

Ao ouvir da tarde: fracasso!,

conquanto, vergando, os braços

dissessem: pára, enfim finda!

e morre, ó alma desgraçada,

eu ousei retornar do nada,

ousei retornar ainda.

 

Abandona, ó rei, abandona

o abono de qualquer cona

além do sangue e da queixa.

Cerca a tua casa e a mura

com o suor da tua estatura,

e deixa o remorso, deixa-o!

 

Senhor do teu sofrimento,

vai-te com o diabo e o vento,

vai-te com a noite e o monte.

E fala, ainda que mudo,

que, do nada, igual a tudo,

sobre ambos nasces. E põe-te!

 

Elimina todo se

da pretensão de existir

na existência que é demérito,

e no não haver nascido

elimina-te existido,

elimina-te pretérito!

 

Eliminar o talvez.

Não saber dia, hora ou mês,

não saber até o minuto

em que me vim sendo feito

plantando a morte no peito

e o espinhaço no meu fruto.

 

Por que o vermeversoverbo

da herbívora erva que eu erbo

no meu plantio masculino,

inverte o chão do seu galho

arrancado do assoalho

repicando como um sino?

 

Ter olhos-Deus! olhos-sóis

tem-no o Deus que cego a sós,

tem-no o horizonte a pôr-se

como colírio em dordolhos,

tem-no quem me olha nos olhos

como se cego eu já fosse!

 

Ah!, se a pedra me fizesse

fazer-me cobrir quem desce

à região do ser meu se,

para não haver nascido

ou o houvesse enfim já sido

sem que eu dissera: nasci!

 

 

 

Fila indiana

 

Um atrás do outro, atrás um do outro,

ano após ano, ano após outros,

minuto após minuto, século

após séculos, continuam

 

(a conduzir seus madeiros

na perícia dos próprios dramas)

 

um atrás do outro, atrás um do outro,

ano após ano, ano após outros,

minuto após minuto, século

após séculos, e de novo

 

um atrás do outro, atrás um do outro,

até a surdez final do pó.

 

 

 

 

 

 

Os atletas

 

Fazem ginástica na tarde imóvel:

direita e esquerda, o mundo filtra angústia.

 

Fazem ginástica desde há muito...

Amanhã estarão mortos.

                                    Hoje suam.

 

 

 

 

 

 

Balança comercial

 

Troco sóis pelas naus,

os são pelos loucos troco,

na embriaguez com que soco

minha fúria no meu caos.

 

Tudo é uma questão de troca:

noves fora, restam nove,

até que outro alguém nos prove

que Deus é um dente sem broca,

 

que Deus é um maxilar

independente do alvéolo

tal como independente é o

ser do seu próprio estar.

 

Onde estamos não nos cabe,

onde estamos não comporta

a nossa alma que é uma morta

que do corpo nada sabe.

 

Ó desejo para fora

a romper-nos desde o dentro!

Ah, sairmos do nosso centro

para sempre e desde agora!

 

Abandonarmos casca e ovo,

abandonarmos a casca,

é um desejo que nos lasca

para quebrar-nos de novo.

 

Sermos gema, sem ser clara!

Sermos o Ser que É, não o que é

uma coisa chã e qualquer

nesta cara, a mesma cara!

 

Termos olhos, que são dois,

termos olhos, só dois a esmo:

troco tudo por uns bois

e até a alma comigo mesmo!

 

Troco tudo, como troco,

se trocar eu me pudera,

esta verdade quimera

do sonho com que me soco.

 

 

 

 

 

 

Esponja

 

Estou esquecendo meus mortos.

Já as sílabas dos seus nomes

soam surdas aos ouvidos

de quem lhes balbucia os ossos.

 

Dentro de mais alguns anos

ninguém lhes saberá os nomes:

inútil retê-los tantos

pelas pálpebras dos sonhos.

 

(Que, quando abertas, são pássaros

pousados sobre seus frutos.

E, se fechadas, os passos

entreabertos no escuro.)

 

Só eu ainda lhes sei os rostos

multiplicados por muitos:

depois, quando eu for seus póstumos,

apagar-se-ão em segundos.

 

E nunca mais ninguém

lhes conhecerá os costumes:

de si próprios os apóstolos

na eternidade dos túmulos.

 

Estou esquecendo meus mortos:

sequer lembrá-los não posso

entre a memória do olvido

e a cegueira de meus olhos.

 

 

 

 

 

 

As Órbitas da água (Sonetos)

 

 

§

 

Letra de fogo e de ouro do soneto,

letra capaz de fé aos que, sem fé,

secarão na alma a carne do esqueleto

vazio e nu, contudo ereto ao pé.

Letra de fogo e de ouro às vezes preto,

fosforescência do útero à mulher,

tambor e estrelas, túrgido amuleto

da escuridão que, eterna, já me quer.

Canta, soneto, minha morte à rua,

canta, soneto, à morte minha e tua

trombose enfim, mas fim insubmisso,

entre a terra e o pavor, meu céu devasso,

entre o Ser e o meu ser, o infindo espaço,

entre mim e ninguém, meu nada, só isso.

 

 

 

 

§

 

Abjeto escravo da fêmea e do feto,

abjeto escravo do verme do medo,

escravo do olho, para sempre abjeto

eternamente!, escravo desde o dedo

mortal e seco, e nu, apontando ereto

ao súplice silêncio do arvoredo,

onde, sem bosque, o pássaro quieto,

morto tomou, calado desde cedo.

Loucura dalma em chuvas de loucura,

louca que canta e dança na amargura

de tudo alheio, por perto que estiver:

dormir! dormir! escravo dos espaços

sem nada dentro, sem nada de braços,

sem nada, exceto o nada que ainda é!

 

 

 

 

§

 

Depois de possuído o que é sonhado

na idéia-gesto do que a ser restou,

embora em vão tateie o inútil lado

sobre onde atônito e alheio me vou,

depois de possuído o desejado

e o desejo ainda reste ao que faltou

— e o desejo ainda cresça no estirpado

depois de possuído no que sou —,

depois de possuído o impossuído,

talvez me faça ser o meu ser mais crido,

talvez me faça ser o meu talvez,

tal dia embora, tal a noite vinda,

tal sonho que real enfim se finda

e que, estuprado embora, virgem crês.

 

 

 

(imagens ©rené carson)

 

Nauro (Diniz) Machado nasceu em São Luís do Maranhão a 2 de agosto de 1935. Um dos poetas brasileiros mais fecundos e importantes de todos os tempos, ainda esperando por uma devida consagração crítica e de público de sua imensa obra, com mais de trinta títulos até o momento. Filho de Torquato Rodrigues Machado — falecido — e de Maria de Lourdes Diniz Machado, tem dois irmãos: Mauro e Dauro. É casado com a escritora Arlete Nogueira da Cruz, com quem tem um filho, Frederico da Cruz Machado. Poeta autodidata, com formação de nível médio, tem um vasto conhecimento de filosofia e arte em geral, principalmente literatura e cinema. É fluente em língua francesa. Cursou o primário, ginasial e científico no Colégio São Luís, em sua terra natal, tendo feito um semestre, quando criança, no Colégio Mallet Soares do Rio de Janeiro. Morou sempre em São Luís, apenas saindo por breves períodos, sobretudo para o Rio de Janeiro, onde publicou boa parte de seus livros. É autor de mais de trinta títulos em poesia, com alguma incursão na crítica literária e ensaios sobre escritores maranhenses. Trabalhou como funcionário público em diversos órgãos, como SAM, SESP, Secretaria de Agricultura do Maranhão, EMATER, SIOGE, SURCAP, DETRAN e a Secretaria de Cultura do Maranhão. Dedicou a sua vida inteiramente à poesia, para ele uma questão ontológica, de definição do ser. Com grande e admirável fortuna crítica — a maior entre seus pares de geração —, é detentor de alguns prêmios relevantes, entre eles o Prêmio de Poesia da Cidade de São Luís, no qual foi laureado várias vezes, o da Associação Paulista de Críticos de Arte (1982), o da Academia Brasileira de Letras (1999) e o da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro (2000). Seu nome é verbete em dicionários e enciclopédias nacionais e internacionais, incluído em inúmeras antologias brasileiras, com diversos poemas seus traduzidos para o alemão, inglês, francês e catalão, em revistas e antologias internacionais. Obras de Nauro Machado: Campo sem base (1958); O exercício do caos (1961); Do frustrado órfico (1963); Segunda comunhão (1964); Ouro noturno (1965); Zoologia da alma (1966); Necessidade do divino (1967); Noite ambulatória (1969); Do eterno indeferido (1971); Décimo divisor comum (1972); Testamento provincial (1973); A vigésima jaula (1974); Os parreirais de Deus (1975); Os órgãos apocalípticos (1976); A antibiótica nomenclatura do inferno (1977); As órbitas da água (1978); Masmorra didática (1979); Antologia poética (1980); O calcanhar do humano (1981); O cavalo de Tróia (1982); O signo das tetas (1984); Apicerum da clausura (1985); Opus da agonia (1986); O anafilático desespero da esperança (1987); A rosa blindada (1989); Mar abstêmio (1991); Lamparina da aurora (1992); Funil do ser (1995); A travessia do Ródano (1997); Antologia poética (1998); Túnica de Ecos (1999); Jardim de infância (2000); Nau de Urano (2002); A rocha e a rosca (2003); Pão maligno com miolo de rosas (2005).