©robert bechtle
 
 
 
 

 

           

Dizem que sempre falta uma palavra e é verdade. Nesses anos todos eu sei que sim, que sempre falta uma palavra, é verdade. Verdade. Pois procurei por Belinha, depois de 50 anos, 50 anos, para dizer para ela essa palavra. Sempre falta uma palavra, verdade verdadeira. E eu fui para dizer para Belinha essa palavra.

Vesti meu terno, pus o chapéu e saí. Saí, foi. Como nos tempos em que era moço, feliz. Nos tempos em que me apaixonei por ela. Eu nunca pensei que um amor assim pudesse me deixar perdido, quase louco. Amor grande. Amor para sempre. Pois é. Vesti meu terno, pus o chapéu e peguei um ônibus até Santo Amaro. Sentou-se uma moça ao meu lado e era uma moça bonita. Ah, e o perfume era muito bom e eu conversei com ela, conversei muito com ela, muito, até chegar à casa pr'onde eu ia. A casa que vi construída. Que vi, tijolo por tijolo. Eu nunca morei nela, mas era lá que Belinha morava, casada com outro. Que teve filhos e teve netos. Que vive hoje sozinha e que nem sabe que eu vou lá, entrar naquela casa, que vou dizer o que tenho pra dizer, depois de 50, 50 anos, que sempre falta uma palavra. Uma única palavra, que vou levando com meu terno e meu chapéu. E uma agonia no coração, profunda. Profunda. Que sempre falta uma palavra. Era agora.

Desci no mesmo ponto e o ônibus se foi. E o bonde se foi, não tem mais. Nem a paz daquela rua. Só reconheço a esquina em que eu ficava, no bar, entre um café e outro, a ver a felicidade de Belinha, a casa agitada, os filhos pela calçada. Dei balas e brinquedos para eles, escondido, que ela nunca me via. Ficou um mistério, foi. Mas, no fundo, no fundo, Belinha sabia quem era. Eu tenho certeza, não me engano. Ela sabia que eu é que dava balas e brinquedos, escondido, nunca a abandonei, nunca deixei a vida dela sozinha. Que meu amor era eterno. Mas hoje ela vai ficar sabendo de uma vez. Eu vou dizer a palavra que eu guardei, que ficou engasgada durante 50, 50, 50 anos. Nos olhos de Belinha, é. Pra ela saber. Saber de uma vez o que eu quero dizer, depois de 50 anos.

O portão é amarelo, meio aberto. Há cheiro de jasmim, o mesmo cheiro, Meu Deus. A parede é amarela e meio aberta. A mesma parede. Eu fui invadindo, decidido como nunca. Mas eu sempre fui decidido. Fui moço forte, fibrento, de briga. No trabalho e na vida. Meu pai era assim e me ensinou. Mas o problema, posso dizer: foi ela. Belinha me deixou lento, sem força nenhuma. Sem decisão pra resolver aquela situação. Eu a amava tanto, ela me amava tanto e casou com outro. Na minha cara, na frente do meu nariz. Casou por vingança, não sei. Por dinheiro, não sei. Por indecisão. Porque quis fazer outro destino. Foi o fim, o começo do meu desasossego. Fiquei inseguro, fraco, acabado de tudo. Meu fim, tão moço que era. Minha morte no mundo.

Bati frato na porta, assim. Fraco. Mas não demorou muito para eu pensar em bater com todos os meus nervos na porta. E sacudir o nome dela. E tirar o chapéu porque eu havia suado muito. Um sol de muito tempo. Um sol antigo. Meu chapéu é quente. Meu chapéu e meu terno. O mesmo terno quente.

Disse o seu nome lá pra dentro. A casa escura, sem abrir. "Belinha", como sempre tive vontade de dizer. Não gritei, só disse. Estava ali para dizer a palavra que faltava, que sempre falta uma palavra depois de 50, mais de 50 anos.

Ela, ela.

Ela veio rastejando até a porta. Rastejando a sombra dos chinelos. Cansada e sozinha que ela estava. Veio e me olhou. Demorou olhando para mim. Olhou, olhou e me viu. O mesmo chapéu e o mesmo terno e o mesmo sol. Foi aí que Belinha me abraçou, abraçou. Meu Deus, Belinha me abraçou, me fechou naquela casa. Trancou. E era agora como nunca foi. Como nunca mais será. Uma palavra que ficou em mim, envelhecida e tratata. Pois é. Tratada como num coração de formol. De forma que resolvi dizê-la, ali mesmo da porta, sem entrar, não entrei, não sei, a mesma porta amarela, o mesmo jasmim, o mesmo jardim. Porque sempre falta uma palavra, depois de 40, 50, 60 anos, não sei. Sempre faltará uma palavra.

Ela disse que ouviu dizer de minha vida, sim. De mulheres, de famílias. Mentira. Que eu tive filhos. Mentira. Que eu tentei me matar. Mentira. Mesmo a morte eu esperava morrer com ela. Todo tempo havia esperança, havia. Esperança. Eu tinha pressa, depois de 50 anos eu tinha pressa. Ela me mandou sentar, tomar um café. Não quis. Passou a vontade, como passageira. Esperou eu falar. Pois é. E só depois de 50 anos, 50 anos ou mais, olhando para o fundo da boca, das mãos, dos olhos dela, no mesmo portão, porta amarela, com o cheiro de jasmim, eu disse a palavra, a palavra que faltava, que sempre falta uma palavra.

Falta.

 

 

 

outubro, 2005
 
 
 
 
Marcelino Freire nasceu em Sertânia-PE, no ano de 1967. Vive em São Paulo, vindo do Recife, desde 1991. É autor, entre outros, dos livros eraOdito (aforismos, 2ª edição, 2002) e BaléRalé (contos, 2003), ambos publicados pela Ateliê Editorial. Em 2004, idealizou e organizou a antologia Os cem menores contos brasileiros do século. Em 2005, lançou Contos Negreiros, seu primeiro livro pela editora Record. O conto "Belinha", acima, foi extraído do livro Angu de sangue (contos, 2000), também publicado pela Ateliê Editorial.
 
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