©nizmo
 
 
 
 
 
 

 

"Deviam de estar em amores, quadra em que as

penas se apuram e imaculam; e, às quantas, se

avisavam disso, meiga meiamente, com o tão

feio gazear".  Guimarães Rosa, in "As Garças".

 

 

Conheci Anantha na Bahia.

Dias bons aqueles, na fazenda. Os passeios. A cachoeira. As conversas amenas. As canções de Bob Marley, Gil, Caetano, Mônica Salmaso. As serenatas. A ida ao rio Morto.

E o sorriso dela, carregado de enigmas, a envolver-me, a embaralhar-me as emoções e os sentidos. Investigava o pôr-do-sol, e Anantha eu via; apreciava flores, e eis ela; volvia as íris para as nuvens, cravava-as aqui e acolá, nada, nada, além dela, sublime, travessa, na calidez dos cabelos loiros.

Tinha luz própria. Explorava sozinha a calmaria e a zoada alheias. Em meus sonhos, estávamos no Cine Academia, em Brasília, inebriados de Kurosawa e Kiarostami, ou no Jardim Botânico, explorando pétalas exóticas. Que alegria ver os joões-de-barro serelepes, após a chuva nova. Eita! cheirinho bom de chuva, e tome sorriso e dentes alvos de Anantha, e o perfume de sua pele, e o olhar penetrante, meigo, forte, perigoso! Jamais compreendi como Machado pôde criar para Bentinho uma Capitu tão dissimulada, a ponto de os cabelos dela, ele de costas, o apunhalarem, ela querendo tocar-lhe as mãos, mas Machado não nos diz da vontade dela, e Bentinho pouco depois ganha o beijo tão esperado por nós, que, ávidos, avançávamos cada linha, cada parágrafo, cada folha, ansiosos pelo encontro de Bentinho com Capitu. Isso Anantha disse-me ter pressentido: a mágica do ósculo, a poesia do doce encontro diante do velho espelho que tudo testemunhou. Fellini, infelizmente, não gravou o episódio; poderia exibir a película em bibliotecas imaginárias, nos séculos vindouros, ocasião em que Borges criaria tigres e descreveria vôos de borboletas latinas, após exaustivos colóquios com o Bruxo do Cosme Velho - decerto dúvidas acerca da construção das Memórias Póstumas seriam incansavelmente sanadas.

A fúria da natureza. A exuberância de cores e sons de pássaros afugentavam qualquer eventual inquietação. Mas permanecia estranha alegria: a felicidade de estar com Anantha era maculada por conseguinte desolação. Seria a idade obstáculo instransponível? Ela na encantação dos dezenove anos, enquanto eu era duas décadas e meia mais velho.

 

*

 

Veio a partida, triste. O cerrado, rios, árvores, paisagens e entradas de parques, reservas e áreas de proteção ambiental. As miríades de formas vivas. As montanhas. As canções poéticas de Paulo Gabiru e Clerbet Luiz ecoando pelos vales, enquanto os veículos rumavam para a capital.

 

*

 

Agora estávamos ali, ao longo da orla, mirando a baía e navios ancorados. Os barcos e saveiros voltavam para casa trazendo homens rudes que jamais leriam o Jorge, mas sussurrariam poemas sem-fim para as amadas, assim despontasse a lua cheia.

Em meia hora, chegamos. O mar morno e esverdeado. Os arrecifes formando piscinas naturais. Na parte velha da praia, o sorriso da Sereia de Itapuã.

Ela quis caminhar um pouco pelo calçadão. O sol: pedaços de beiços de fogo. Além, no rumo d'África, Sírius principiava a lumiar os céus. Caminhávamos devagar, e dos pormenores me lembraria por muito tempo. Eu carregava numa mão a mochila de Anantha e, na outra, segurava com preocupação majestosa a máquina fotográfica - haveria de eternizá-la em mais de setenta e duas poses, rindo, rindo e rindo, como riem as gueixas, como riem as meninas que cantam nos trios elétricos, no Carnaval, na praça Castro Alves, como ri Ivete, como ri Luana Piovani, como ri Fernanda Torres, como ri Marguerite Duras, n'O Amante. Oh os olhos verdes dela, e os lábios, carnosos, bonitos! Gestos fádicos, cabelos em baile inefável, voz doce - a leveza de Anantha, enfim, animava-me, enquanto andávamos e ela falava do projeto Tamar.

Os gringos e italianos circulavam em busca de sexo. Esguias universitárias. Raros berimbaus. Bolinho de fradinho com vatapá e batida de pitanga. Os carros voavam, com luzes verdes, entre bicicletas e pessoas que voltavam ainda do trabalho. Percebendo a noite, Anantha consultou o relógio e sugeriu um bar, perto dali. Naquele instante, ainda retalhos do sol encandeavam.

Após dois semáforos, ficamos presos em um engarrafamento, ao lado de movimentada baiana - expressão, em Salvador, que resume a cultura, a simpatia, a negritude, a visão sincrética da vida das soteropolitanas que montam bancas com iguarias típicas na orla. Anantha folheou o jornal e leu trecho de uma crônica do João Ubaldo: "O que dá sempre certo é a convicção de que, depois de estar na Bahia, não se vêem nunca mais o Brasil, a vida e o mundo com os mesmos olhos".

Rimos juntos e concordamos com o sábio cronista.

Chegamos. O bar ficava em um casarão amarelo, na crista de uma ladeira. Entramos. Sentamos em uma varanda, onde mais tarde se apresentaria alegre casal de cantores. Pedimos vinho.

 

*

 

Tive, naquela noite, como nunca, a certeza de que estava diante de uma mulher madura, senhora de assombrosa sensibilidade para entender a alma humana, embora a tenra idade.

Deduzi isso, a partir da conversa que tivemos, quando ela praticamente falou sozinha, diante de um interlocutor encantado. A impressão que teve do interior da Bahia foi tema relevante, Lá pelo final de setembro, noites calorentas lá em Barreiras, muito caju, vendido por famílias pobres a dois reais o quilo. Saí à noite, repetindo ritual: todo sábado circular pela cidade, conhecer a vida noturna, observar os tipos humanos, estudá-los. Essa vontade de um dia fazer psicologia, ou filosofia, ou... E, então, eu, ali, aos dezesseis anos e meio... Não sei se conseqüência da magia provocada pelos poemas de Lawrence Ferlinghetti ou resultado das canções de Lou Reed ("Waves of Fear", "There is no Time"... tanta poesia no Lou!), o fato é que me sentia completamente livre. Mas... Sim, as pessoas... Meu amigo, como eu queria que esses escritores com manto de Anatole France andassem por onde ando! Se esses romancistas esquálidos, medrosos, pudessem contemplar o céu barreirense coalhado de estrelas esmaecidas, escondidas em nuvenzinhas escuras, infestada de bares freqüentados por homens e mulheres amargurados e frustrados. Muitos são meras saletas, com quatro ou cinco mesas, um balcão dividindo os bêbados agitados das prateleiras repletas de garrafas de cachaça e do freezer azul. De modo que eu estava em um desses bares. Dava pra ouvir a voz esgarçada de Roberto Carlos, em um show no Estádio Municipal, ali perto, repercutindo amores perdidos, conquistados e novamente dissipados. Duas dúzias de homens e mulheres bebiam, conversavam e fumavam, praguejando impropérios insondáveis contra a vida desgraçada e o prefeito. Eu, no balcão, fuçava todo o gesto e toda a fala daquelas pessoas. Uma mulher gorda que chega e pede cachaça. Outra, prenha, atrás, risonha. O negro que noticia, com alarde, que apenas começou a beber com o amigo, servidor importante do Fórum. Os olhares, os cochichos. Profusão de tênis e sandálias de couro, jeans e camisas alvas, pretas, xadrez, rasgadas, sujas, com estampas de times cariocas. Homens pretos e brancos. Era possuída, então, por forte desejo de escrever a respeito do que via. A luz de lâmpadas amarelas nas caras embriagadas. E o receio de, no dia seguinte, não ser capaz de descrever, com precisão, aquelas faces humilhadas e ofendidas, mas algo alegres, ainda motivadas, esperançosas, naquele ambiente, naquela noite mágica, que lembra, lembra... Noites Brancas, do Luchino Visconti! Conhece? Tem a mesma atmosfera introspectiva do conto de Dostoievski. Era como uma... uma espécie de temor de não ser capaz de descrever tudo aquilo com a devida coragem, criatividade e fidelidade àqueles instantes riquíssimos! E, veja, eu escrevo sempre, tenho um diário; escrevo muito. E quê que tem? Thomas Mann também registrava tudo em seus diários, E riu - os lábios e toda a boca expostos aos perigos do mundo.

Por fim, festas religiosas e folclóricas, como o São-João, Dia dos Santos-Reis, Noite do Nazário, quando mascarados saem às ruas, na Quarta-feira de Cinzas, aos berros, pregando peças e lançando ovos e toda sorte de imundícies em direção a desavisados, que, inutilmente, correm para suas casas, fugindo da algazarra, mas ansiosos da notícia: na porta de qual viúva enterraram Nazário? Os olhos de Anantha brilhavam, com tantas lembranças, evocadas por meio de sinestésico e belo discurso.

A música retinia nos caibros do alpendre secular. À meia-noite, quando já tínhamos vertido garrafa e meia de bom Lambrusco, não pensei duas vezes, Vamos pra Vilas?

 

*

 

O ritmo cadenciado do vaivém acompanhava o passeio da janela mexida pelo vento, à meia-luz. Por óbvio, medrava, intrusa, nos pulmões quentes da noite tropical, a madrugada. O silêncio e o barulho do oceano persistiam, renitentes, acariciando os musgos das lodosas pedras pontudas e entoando vozes cegas para criaturas marinhas que, vez por outra, ostentavam-se na praia; sim, insistiam, brindando toda a orla de Vilas do Atlântico com vibrações e energias invisíveis, das quais alguns pescadores solitários tiveram medo - o fenômeno era novidade no litoral de Lauro de Freitas.

Nana Caymmi, com melífluas palavras vindas de ternas ventanias sopradas, acima da Baía de Todos os Santos, pelas cabeleiras da noite, embalava-nos.

 

 

 

dezembro, 2007

 

 
 
 
 
Lafaiete Luiz do Nascimento fez crônicas para o rádio, em Barreiras (BA), entre 15 e 16 anos. Publicou as coletâneas Barreiras: um salto poético e Nova safra, novas folhas; a novela Anantha; e, com Clerbet Luiz, seu irmão, o contundente Rodeios e interiores, com poemas e letras de música. Edita o Quase hai.
 
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