©nizmo
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

"Enquanto isso o destino seguia nossos passos

Como um louco de navalha na mão".

("Primeiros encontros", Arseni Tarkovski)

 

 

Metido a Sebo é uma livraria em que podemos beber cachaça com o Tinhorão, ouvir o canto dos pássaros, encontrar João Moura Jr e um extraterrestre, essa conjunção acontece aos sábados, somente aos sábados. O Marciano, um misto de Floriano Peixoto e Nietzsche, digo o bigode, bate cartão todos os dias; o Urso e o Tinhorão, com seus afazeres intelectuais infindáveis, aparecem mesmo aos sábados. São reuniões sagradas, tanto que consegui liberdade condicional sabatinas. Antes, eu morava na Metido, agora, no bom português, fudeu, fudeu legal, mas estou bem, a experiência não é de toda ruim, no mais, creio que estarei livre em breve, e querem saber, é mais que merecida minha punição, não me julgo inocente, alguém emconsciência é inocente? Então, foda-se! Tenho até visita íntima, pedi para que a decrépita viesse, e ela vem todos os domingos, como podem perceber, minha vida não é das piores, de segunda a sexta, rotina pura, sol pela manhã, muita leitura, a comida é um lixo, não menos lixo do que meus hábitos anteriores; faço muitas flexões de braço e abdominais ao longo do dia, jogo pelada umas três vezes por semana, posso até dizer que estou me divertindo, o resto é conversa mole de gente durona, ou conversa durona de gente mole, conquistei o respeito da rapaziada, ninguém bole comigo não, durmo cedo, acordo cedo, tenho direito ao meu santo repouso após o almoço, vou aos encontros sabáticos na Metido, e acreditem, não coloco uma gota da Sábado Perpétuo na boca, e aos domingos recebo a minha decrépita e sua notável máquina de entortar pescoços.

Tudo aconteceu naquela sexta-feira, no dia do lançamento do livro do Urso, na noite de autógrafos, a Metido nunca esteve tão cheia. Urso, cognome, quase maternal, dado a João pelos amigos mais chegados, a saber: eu, Marciano e Tinhorão.

Marciano também o chama de "meu irmão" ou Caubói, mas isso é entre eles.

Nós três estávamos em êxtase pelo nosso amigo, quetanto não lançava um livro, os segundos cadernos estavam alvoroçados, mas o Urso estava aporrinhado, por dois motivos, sua eterna repugnância aos mortais ignaros que costumam freqüentar esse tipo de evento e pelos seus desafetos, todos presentes, "caras-de-pau do caralho", rugia ele entre os dentes. Graças a lábia do Marciano, o dono da Metido, o Urso foi segurando a onda até onde deu.

O Urso consentiu editar seu novo romance, após uma manobra tenebrosa, roubei-lhe os originais e os enviei a uma editora, que topou a parada de cara, era falar com o Urso, eles adiantariam trezentos mil de direitos autorais. Divido o mérito do convencimento do Urso a edição dO Abajur com Marciano e Tinhorão, que foram perspicazes no uso da psicologia ursídea, pois o Urso queria porque queria me matar pela minha proeza.

Ô Urso, pense nos trezentos mil, cara!

Não preciso dessa merda, e muito menos da sua ajuda, seu ladrãozinho imprestável de originais alheios, mané-jeca do cacete.

Eu, com meu pouco argumento e com minha identidade ferida, meio atrapalhado, argumentei, e essa peixeira em sua mão, que você roubou do Marciano, que moral você tem, ãh? Ursinho branco de pelúcia de faces rosadas.

E o Urso desembestou atrás de mim com a peixeira em riste. Venha que eu vou lhe mostrar meu bicho de pelúcia, venha, seu caipira de porta, porteira, portão.

Isso é preconceito lingüístico, seu intelectualzinho de merda, incontinente na esquina.

Enfim, o que acabou por convencer o Urso, foi o xeque-mate do Tinhorão: Não publique, é um direito seu.

Pois é.

Diante da autoridade do Tinhorão, eu e Marciano não discutimos, pedi desculpas ao editor e os originais de volta.

O editor me disse, fique tranqüilo, eu estava achando difícil mesmo que o João topasse editar qualquer coisa que fosse, esse bicho é arredio que vendo, conheço a fera de outros carnavais, guarde os originais a sete chaves, você é muito mais jovem que ele, um dia ele dá a alma a Deus e.

Ele é ateu, caralho.

Bem. quando ele bater a alcatra na terra ingrata.

Tá, disse, não muito convencido.

Quando ele der com o rabo na cerca?

Perfeito.

Diante da peixeira devolvi os originais.

Nossas reuniões sabatinas continuaram como se nada tivesse acontecido, no entanto, Tinhorão desapareceu, não deu mais as caras, passaram-se oito ou nove sábados e nada de Tinhorão.

Marciano você sabe do Tinhorão, perguntei.

Não, respondeu ele com desinteresse. Cismei, algo de estranho estava acontecendo.

Passaram-se mais uns oito ou nove sábados, e o Urso perguntou: Vocês sabem do Tinhorão?

Marciano respondeu com o mesmo desinteresse que respondera a mimoito ou nove sábados: Ele não vem mais aqui.

Por quê? perguntei desconfiado.

Marciano deu com os ombros.

Mais uns oito ou nove sábados: o Urso sugeriu uma visita ao Tinhorão.

O Marciano reagiu com fúria: não!

E por que não? em coro eu e o Urso.

Marciano calou-se.

E por que não? insistiu o Urso.

Ele não vai te receber, Caubói.

Ora, ora, o que fiz a ele?

Você está privando a humanidade de uma obra-prima, e isso ele não perdoa, não colocará mais os pés neste chão, e por sua causa, seu urso ególatra desprezível.

Caiu um silêncio assustador na Metido, tanto que o poema "Rói" do Carlito se fez ouvir com todos os esses:

 

"Rói qualquer possibilidade de sono

essa minimalíssima música

de cupins esboroando

tacos sob a cama

 

imagino a rede de canais

que a perquirição predatória

possa ser riscado

pelo madeirame apodrecido

 

se aguço o ouvido

capto súbito

o mundo dos vermes".

 

Ficamos um tempo titânico em silêncio, bebericando a cachaça Sábado Perpétuo, sem nos olharmos, um amendoim e um golinho da Sábado Perpétuo, um golinho da Sábado Perpétuo e um amendoim, até que, para surpresa nossa, o Urso se levantou foi para outro cômodo da Metido, feito John Wayne nos apontou sua pistola imaginária deixando meia face à amostra entre uma das estantes de livros: Publiquem essa merda, rosnou com sua voz cinematográfica, e soprou o indicador.

Ouvi o Marciano sussurrando ao telefone, pode vir, o plano se consumou.

Tinhorão chegou tão rápido, que seus cabelos estavam eriçados.

Viu algum fantasma, disse o Urso à aparição.

Não. Alguma novidade?

Nossos sábados voltaram a ser os melhores sábados de nossas vidas, e dá-lhe Sábado Perpétuo.

As exigências que o Urso fez foram: não haveria lançamento nenhures, não daria uma entrevista sequer, que no livro não constasse seu nome, o romance não tinha título e continuaria sem e a capa seria de uma foto antiga e desbotada que ele tinha, mimo de uma antiga namorada: um abajur, fica simpático, uma zombaria inocente, digamos.

Seja feita a vossa vontade, disse Tinhorão.

Mas, Caubói, o lançamento poderia ser na Metido, reclamou o Marciano.

Não, não e não, rosnou o Urso.

Meu irmão, pense comigo, um lançamento tão esperado em uma modesta e singela livraria como a Metido, seria um tanto quanto interessante, não acha? Não que eu queira tirar vantagem da situação, longe de mim, é que sendo amigos como somos, eu pensei. você se lembra da idealização da Metido?

Lembro, disse o Urso quase cedendo.

Urso, continuou Marciano, nós dividimos uma vida na Espanha, foi em solo espanhol que nasceu a Metido, freqüentando aquelas livrarias pequenas, aconchegantes e charmosas nas ruas de Sevilha, não foi?

Foi.

Pois então, Caubói, boquejou com voz embargada Marciano.

O Urso correu para trás de uma estante e bangue-bangue, que seja, mas eu não venho, está certo?

Tudo certo, respondemos os três em sintonia.

Enfim chegou a noite tão esperada, e como sabemos o Urso não só estava presente, como estavam presentes todo seu mau humor e rabugice.

O Tinhorão me procurou preocupado, estou ouvindo alguns comentários maldosos?

De quem?

Das pessoas.

Sim, mas falando de quem.

Adivinha?

De mim?

Claro que não. Do Urso.

Eu não percebi nada.

É evidente que não. Mas eu ouvi burburinhos raivosos.

Raivosos?

Sim, acho que as dedicatórias do Urso não estão sendo muito simpáticas. Estamos na iminência de um destampatório.

Você falou com o Marciano?

Não.

Melhor assim, vou conferir. E fui, me coloquei ao lado do Urso, lhe servindo uma Sábado Perpétuo, fiquei gelado ao ver a dedicatória que ele acabara de escrever a um figurão da imprensa: "Se você conseguir chegar ao fim deste livro e conseguir entendê-lo, o que duvido muito, duvido mesmo, de coração, parabéns! Não passa de mais um leitor boçal e pretensioso. Ass. Maria Vem Fudê".

O cidadão roxo de raiva o encarou, bufou, jogou o livro sobre a mesa e saiu.

É o meu pseudônimo, falou o desabusado ursino, com sua voz cinematográfica, o próximo.

Era uma senhora. Foi a gota d'água: "Pau no cu de toda nobre senhora, deveria ser lei. Com sincera devoção: Maria Vem Fudê".

É apenas um pseudônimo, minha simpática senhora.

Tinhorão, vamos tirar o Urso daqui, antes que aconteça uma tragédia. E foi o que fizemos, saímos os três de fininho, à capucha, e deixamos a bomba nas mãos do Marciano.

Na rua, com a garrafa da Sábado Perpétuo que roubei do Marciano, caímos na gargalhada os três.

Vamos comemorar no bar do Zé, disse Tinhorão entornando uma golada da Sábado Perpétuo.

Não, disse o Urso, hoje merecemos algo melhor, siga-me os bons.

Lá fomos nós, sem lenço e sem questionamentos, pois se tratando de aventuras, as sugestões do Urso eram irrecusáveis e inquestionáveis.

Caminhamos um bocado, o Urso entrou em uma rua deserta, em seguida, um beco. No fim do beco, entre latas de lixo, uma escada estreita, catingando merda, amparada por muros cheios de musgos e heras. Subimos, fomos parar em uma ruazinha de paralelepípedos, quase tão estreita como a escada de cinqüenta e dois degraus que vencemos, de postes muito antigos, aqueles de madeira que nem existem mais, com suas lâmpadas quebradas ou queimadas.

Sobrados acotovelando-se uns nos outros, brancos, descascados, emporcalhados; lábios vermelhos que se misturam com o vermelho gasto dos batentes das janelas e portas; uma luz alaranjada cheirando a mofo, urina e naftalina, que saíam pelas suas frestas misturando-se com a luz da lua cheia, conferindo à rua um matiz crepuscular, uma atmosfera nonsense aos meus olhos de mané-jeca.

Uma das meninas emoldurada em uma das tantas janelas, gritou: Lá vem o Caubói trazendo carne nova. A carne nova era eu.

Cadê nosso etezinho? Gritou outra.

Pelo que pude perceber da euforia nas janelas e portas, o Urso, Tinhorão e o Marciano eram figurinhas bem conhecidas por aquelas bandas.

O Urso e o Tinhorão encurtaram os passos, e quando, pela segunda vez, olhei para trás, haviam desaparecido, percorri os olhos por todas as portas, postes, árvores, muros e janelas, ouvia risinhos abafados e, nada deles, os filhos-da-puta sumiram, deixaram-me com o último gole da Sábado Perpétuo, menos mal.

Quer subir?

Procurei a voz.

Aqui em cima.

Era uma voz forjada em sedução barata, de textura mocha, quase uma lixa de metal, sem ser aguda.

Quer subir, gatinho.

Gatinho? Ah, essa é boa, gatinho eu?

Então tá, trigão.

Subo por onde?

Que tal pelas escadas, a porta está aberta. Segundo andar, quarto 2b.

Subi pelas escadas. No segundo andar, corredor límbico e longo: gemidos, palavrões, gritinhos abafados e escancarados. Por uma porta entreaberta uma menina de cabelos de fogo sendo enrabada por um porco gordo, a menina me olhou com indiferença, o porco gordo babava de olhos virados.

Ei gatinho, errou de quarto. Era a da voz mocha, na porta do quarto 2b. A garota usava uma minissaia minúscula, vermelha, tinha pernas esburacadas, uma pequena ferida à mostra no tornozelo esquerdo. Um laço de cetim verde limão envolvia os seios prestes a saltarem para fora, seios fartos, com uma barriga não menos farta, cabelos longos e pretos, a pele oleosa, uma cicatriz de cesariana, olhos negros.

Gatinho, não me olhe assim.

Não me chame de gatinho.

Trigão?

Muito menos.

Meu amor?

Não me chame de nada. Qual o preço?

É baratinho.

O que você faz?

Faço de tudo, neném.

Qual o seu nome?

Patrícia Potranca, neném.

Patrícia Potranca?

Ela vira-se de costas e arrebita a bunda, gosta?

Era um bundão nada desprezível. Você está sozinha?

Claro, neném.

Quero mais uma.

Mais uma amiguinha?

Sim.

Tem preferência?

Uma negra.

Quer farra hem, seu menino erótico! Entre no quarto e fique quietinho, não vá embora, vou chamar uma amiguinha, neném. Foi-se pelo corredor gritando: Maria, Maria Vem Fudê, temos cliente, apareça, mulher desgraçada.

Fiquei mais mané-jeca do que sou, abestalhado completo, Maria Vem Fudê era o pseudônimo que o filho-da-mãe do Urso usou nas dedicatórias.

Instigado, pela sonoridade tântrica do nome Maria Vem Fudê, entrei no quarto 2b, minúsculo. Próximo da porta, uma poltrona marrom, rasgada, a luz vinha de um abajur pequeno que estava em cima de um caixote de madeira sobre uma toalha xadrez, por incrível que possa parecer, limpa e engomada, impecável, contrastando com a decadência reinante do lugar. O abajur tinha no máximo vinte e dois centímetros de altura, todo bordado de lantejoulas amarelas e miçangas coloridas em sua base e topo. Uma lâmpada fraca que, em parceria com a lua cheia dava-nos uma claridade suficiente para o amor. A toalha xadrez e a melancolia notória do abajur me comoveram, me senti um pouco estranho e desconfortável. Meus olhos se encheram d'água sem bem eu saber o porquê.

Sentei na poltrona rasgada de cor duvidosa, enternecido em um minúsculo quarto sujo de putas. As teias de aranhas, um rato ou outro que passeava pelo assoalho sem tapetes, empoeirado e cheio de manchas peganhentas, a cama desarrumada, travesseiros de fronhas manchadas, o mancebo abarrotado de roupas velhas e desbotadas, o quadro acima da cabeceira da cama, desses pintados por um retratista de rua: um homem e uma mulher taciturnos, um ao lado do outro. Ele, um bigode enorme sobre lábios que somem aos pêlos negros de seu majestoso bigode, sobrancelhas grossas, olhar capina, careca; ela, uma senhora branca como leite, cabelos enrolados em espiral, rosto gordo, papas debaixo do queixo e dos olhos, ambos me conferindo com severidade, mas tudo isso não tinha a menor importância diante da beleza do abajur e da toalha xadrez.

Prostrado na poltrona, fiquei enternecido, comovido como o diabo, olhando a toalha xadrez e o abajur de lantejoulas amarelas e miçangas coloridas, enquanto a lua sondava curiosa e São Jorge, indiferente ao drama humano, aos fatos corriqueiros do mundo, matava o dragão.

Gatinho?

Ele não gosta que chame ele de gatinho.

Não sei por quanto tempo fiquei naquela comoção, naquele acabrunhamento, não vi quando elas entraram, quando vi, estavam sentadas na cama me olhando: a do bundão e uma negra alta, magrela, seios minúsculos, cabelos curtos, quase raspados, lábios vermelhos intensos, carnudos, o branco dos olhos o mais branco que já vi, dentes amarelos, unhas vermelhas e compridas, postiças, um vestido branco, surrado, curto, impecável e limpo, como a toalha xadrez, de decote generoso, onde os quase-não-seios se faziam presentes em seus bicos rijos.

Você estava chorando, tigrão?

Ele não gosta que chame ele de trigão.

Fiz um gesto de silêncio. Lá fora, grilos, cães, risos, falas e buzinas distantes. Percebi que aguerrida Maria Vem Fudê grudou os olhos em mim, prevendo ventos e tempestades, e eu, feito besta, afundado na poltrona, esquecido do mundo lá fora, do Urso, do Marciano e Tinhorão. O tempo se paralisou em eternos minutos, não saberia precisar o quanto, mas foi o tempo dos meus olhos se esgotarem na luz do abajur para que eu dissesse à negra: Fique nua. Não. Só você.

A bela negra, Maria Vem Fudê, se levantou e deixou cair aos seus pés seu vestido branco surrado, em pêlo, iluminada pela lua e pelo pequeno abajur de miçangas, tinha as pernas longas e belas e um generoso Monte de Vênus. Um espetáculo! Um espetáculo!

Você tem cigarro? Ronronou.

Ó gruta lancinante e encantadora!

Você tem cigarro, ô poeta? Desdenhou.

Saquei do meu sobretudo um cigarrinho, aceita deste?

Hum, já estou gostando do meu poetinha.

Acendi o cigarrinho, dei um trago profundo e me afundei mais na poltrona, afundado o estendi a deusa negra que veio feito uma pantera, brilhante e reluzente, cobreada pela pouca luz que banhava seu gracioso corpo. Ela pegou o cigarrinho, calou fundo uma puxada, iluminando o quarto e sua caranguejeira peluda, saliente de lábios escuros e grandes, bochechas triunfantes. Cravou os olhos de matizes infernais em mim. Vá até a cama, devagar, não, espera, me dê mais um trago. A felina calou fundo mais uma vez e avançou lenta sobre mim, jogando o tórax para frente, os bicos rijos me desafiando, sua boca colou na minha, encheu-me os pulmões, me lambeu o nariz, os olhos, a testa, e foi lenta e linda para a cama. Sua bunda não era a bunda da Vênus Calipígia, era menos avantajada do que a maioria de sua raça, agora as costas, a mais linda das costas mais lindas que uma mulher poderia ter.

Maria Vem Fudê passou o cigarrinho a Patrícia Potranca, que parecia mais uma decoração decrépita do bolorento quarto. Quer que eu tire a roupa? perguntou esta. Olhei furioso para ela, não.

Fique de quatro, pedi, amável, a minha noir dama. Sem tirar os olhos de mim, o que me amedrontou e me instigou as entranhas, se pôs elegante, ancestral, quadrúpede, leoparda, estátua de bronze, visão panorâmica dos deuses e iniciados, via-se nos lábios carnudos entreabertos o vermelhusco e fluorescente corte vertical de sua racha, destacando-se com soberba junto à pele reluzente e aveludada. A felina ronronou e mostrou suas garras finas e compridas.

Chupe ela, ordenei à decoração decrépita.

Patrícia Potranca riu com seus dentes estragados. Pois não, chefinho. E caiu de cara entre as miúdas polpas de Maria Vem Fudê. Esta rebolou e ronronou, seu rebolado tinha música, era extremo e agradável à visão.

Ofegante exigia da decrépita, lambe com força, caralho.

A decrépita simulava lambidas suculentas. O que havia de mucos sebáceos, ela higienizou com sua língua fingida.

Caralho, Patricinha, enfia a língua, porra!

A pantera-negra rugia. Ah, aquelas minúsculas nádegas, ardósia lapidada, uma pérola negra, uma conta negra, um azeviche, mas um azeviche azulado, uma azeitona, daquelas roxas e pequenas, uma pequenina e arredondada azeitona, uma azeitoninha pretinha, roxinha, apetitosa e sedutora, azeitona cortada em rodela, uma rodelinha, e, no olho do furacão, olhar atrevido, dado aos prazeres carnais, piscando e chamando o garanhão para o encontro impetuoso, um capricho da natureza, um primor da anatomia humana, um luxo! A decrépita com ardil na ponta da língua, degustou o precioso buraquinho, o rebolado da deusa negra era primitivo e malvado, as lambidas simuladas da decrépita iam da delicada rodelinha, da centrosfera da azeitoninha roxa, seu nadir, até ao zênite, passando pelos bastidores, se fartando nos grandes lábios, fincando a língua em desespero de punhal na fenda vagínica, demorando na capuchinha, traçando um caminho até o proeminente Monte de Vênus. Aquela gata negra ronronava com seus olhos cravados em mim, sem arreio. Tive o ímpeto de pôr a azeitoninha na empada, de atender seu chamado lascivo de piscadelas sedutoras, quase fui ao embate, mas me contive, pois o entorpecimento que sentia como voyeur neutralizava qualquer ação. Estava paralisado no fundo da poltrona, havia me moldado a ela, de tal maneira, que era possível alguém se sentar em mim e não me perceber.

Chefinho?

Que?

Você está bem, trigão?

Fulminei a decrépita com minha indiferença atroz, com voz angelical pedi a negra Maria, venha minha leoa encantada, e ela veio, mansa e suave. Colocou um dos pés em meu peito, não me lembro se foi o direito ou o esquerdo, afundando-me definitivo na poltrona rasgada. Subiu, feito uma macaca sobre os braços da poltrona, um pé no braço direito e o outro no esquerdo, e eu submerso a ela, afundado e coagido. A bela negra levou seus lábios peludos em minha cara, seus grandes lábios abocanharam os meus lábios finos em um beijo salivoso, seus grandes lábios eram dois belos gomos de mexerica, inchados e de um negro profundo na superfície, carmesim e palpitante na entrada da coisa fendida. Ela arranhou-me com sua sarça ardente. Sentia seu cheiro forte e molhado encharcando-me o rosto com suas mucosas. Era como se fossem duas cristas em fogo, cristas de galos de briga em carne viva e ácida. Meti a cara nesse poço efervescente, in media res, língua e nariz fenda adentro, vulcão prestes a entrar em erupção, caldeira infernal, vapores escaldantes saíam dessa usina, dessa máquina a vapor, licores espessos e esbranquiçados, bebi sua seiva vulcânica, ela me apanhou com sua boca peluda, a caranguejeira grudou em minha cara como uma máscara de inalação, um molusco, um polvo, um caranguejo, roçava, untava, esfregava sua alga marinha com todos os sais e vai-e-vens, debaixo para cima, em movimentos circulares, um bate e volta com seu sacro, cóccix e vértebras adestrados ao frenesi, seu tacho, sua pá encurvada, apesar da pouca bunda, rainha do carnaval, nação zumbi inteira em sua potência pélvica invejável, o vulcão expelia seus odores e licores intensos, em chamas. Um enjôo repentino me invadiu, uma ânsia terrível, vômito iminente, juro que tentei me desvencilhar do monstro marinho que me engolia, empurrei-o com toda minha força. Maria Vem Fudê se estatelou no chão. A mais insignificante do que o mancebo empanturrado de roupas sujas gritou assustada e foi em socorro da amiga.

Lembro-me, que levantei zonzo, queria sair daquele lugar infecto, fui até a porta, parei e voltei capengando para pegar o abajur de lantejoulas amarelas e miçangas coloridas e a toalha xadrez.

Pega ladrão. Gritou Patrícia Potranca, a decrépita.

Em poucos minutos estava do lado civilizado da cidade, deixei o beco e suas escadas ao inferno para trás. A lua estava cheia e linda. Ofegante, exausto, com um vago sentimento de felicidade. Restaurei a respiração em um pranaiama básico. Um arrependimento profundo de não ter degustado o bundão da decrépita bateu no peito, não imaginava que um dia iria, e como!

Caminhei abraçado, de passos vagarosos, como se abraça o bem mais precioso da vida e sem pressa de lugar algum, com o abajur de lantejoulas amarelas e miçangas coloridas e a límpida toalha xadrez, que tinha um cheiro bom, de coisa limpa. Tive um impulso de voltar e devolver o que lhes pertencia. Mas o abajur e a toalha eram caros a mim. Não, ninguém mais iria roubar as coisas essenciais da minha vida, não permitiria, não mesmo, não mais.

Enquanto caminhava, sentia o gosto de Maria Vem Fudê em minha boca, em minha garganta, em meu nariz, sentia o cheiro forte, molhado e selvagem the my black goddess, naquele momento eu não sabia que havia cometido um homicídio, embora involuntário, um homicídio. Precisava de algo forte. Como se um pé-de-vento me chacoalhasse a alma, lembrei-me de Tinhorão e do Urso, será que eles ainda estavam na rua dos sobrados que se acotovelavam sustentando minúsculos quartos? Fui pro bar do Zé, minha alma implorava por uma cerveja.

Cheguei no bar, no exato momento, em que o Urso estava em pé sobre uma mesa declamando um dos seus poemas. Tinhorão e Marciano estavam sentados no meio de duas loiras, me juntei a eles, e aí?

O Urso não é mais o mesmo, declamando poema de cima da mesa, porra! disse o indignado Tinhorão.

Eu acho bacana.

Meu irmão, o Caubói é foda.

Vocês não contam, disse Tinhorão enchendo um copo de cerveja para mim e levantando um brinde. Enquanto isso, o Urso:

 

"CANÇÃO DOS BARES

dias e dias

meses e meses

anos e anos

entreteve esta bunda

um comércio com os bancos de boteco

repetiu périplos etílicos

que o fígado consternado acompanhava

cerveja vinho cachaça genebra gin vodca uísque

                                 [traçado conhaque sangria

você acaba de ouvir talvez o meu melhor verso

no fundo do copo repousa a fada

os bares são a comprovação de que a terra se move

pois a terra que não se move não tem bares"

 

Tinhorão aplaudiu espigaitado.

O Urso além de declamar o poema sobre a mesa com direito a coreografia e tudo mais, saltou desta com uma destreza alarmante, sacando seu revólver imaginário no ar e soprando o indicador. E , conseguiu sair inteiro, me perguntou com sua voz cinematográfica.

Mais ou menos, respondi.

Onde você roubou esse abajur e essa toalha?

Não roubei!

Comprou?

Não.

Está vendendo?

Não. Não vendo.

Então?

Eu peguei na casa das putas.

Todo mundo pega, disse Tinhorão, menosprezando minha façanha.

Descobri a origem do seu pseudônimo.

Descobriu a América, desdenhou o Urso. Vai beber o quê?

Mostrei meu copo de cerveja.

Melhor um conhaque, disse ele.

Manda bala, autorizei.

, manda uma rodada de conhaque pra mesa.

Excelente pedido, meu irmão. Vai ser bom para tirar o bodum da boca desse cabra safado, arrematou Marciano.

Bodum? dei uma de mané-jeca.

Conheço esse bodum a mil léguas, meu rapaz, essa inhaca pega que é uma coisa.

Etezinho hem?

Quieto moleque.

O Urso estendeu a minha toalha xadrez sobre a mesa, colocou o abajur todo bordado de lantejoulas amarelas e miçangas coloridas em cima e foi pros fundos, voltou com uma extensão enrolada no pescoço, ligou o abajur, o nos serviu cinco conhaques e apagou a luz do bar.

Um brinde, sugeriu Tinhorão.

À inhaca, festejou Marciano.

Aos dois sóis dessa mesa, poetizou o Urso, que naquela noite estava incontrolável.

Os dois sóis: às fadas que repousam no fundo dos copos!

Ao Abajur!

 

 

 

 

 

 

Após 15 anos da morte acidental de Maria Vem Fudê, estava livre. Meu relato não carece de compreensão, basta saber da epígrafe de Arseni em meu encalço, como uma louca de navalha na mão.

A liberdade condicional suspensa há muito. Rever Metido e meus amigos, algo difícil, pois ninguém jamais me visitou, a decrépita sim, ainda mais decrépita, não arredou . Eu sentia saudade, precisava revê-los.

Abraços calorosos, garrafa e meia da Sábado Perpétuo com Marciano. Nem o Urso nem Tinhorão.

Agüenta a mão. Daqui a pouco o Caubói está disparando por .

Não, não, meu amigo, eu vou indo, estou no Mestiço para um dedo de prosa, avisa o Urso, disse com pouco português.

Nada mais justo, forte aperto de mão.

No Mestiço. O Urso. Olhares rijos. O Caubói poderia sacar a arma. Rápido desferi um caratê mortal em sua escápula direita. O Urso estatelou-se, e eu escapuli ligeiro, ninguém me viu, a temporada de caça ao urso findava.

Assim preservei intacta nossa amizade e minha eterna reverência a ele.

 

 

 

 

dezembro, 2007

 

 
 
 
 
Leonel Delalana Júnior tem poemas publicados na Agenda da Tribo 2004, 2005, 2007 e 2008, no Jornal de Poesia e na Conexão Maringá. O resto é fazimento constante.
 
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