©carnivore
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

 

Ferdinando gostava de flores. E vivia no meio delas. Rosa ficou viúva muito cedo mas, o nome de seu marido circulava ainda bem vivo naquela casa. A juventude e a beleza das filhas confundiam-se com as prendas da mãe. Hortênsia tinha a metade de sua idade e a mais nova, Petúnia, mal saíra da fase da penugem. Rosa tinha pouco mais de trinta e cinco anos, uns trinta e oito, tão parecidas, que mãe e filhas se confundiam. 

Ferdinando gostava de flores e era do signo de Touro. O taurino é muito sensual, ama o belo, aprecia o romance e gosta de sexo. Ferdinando vivia, então, entre petúnias, rosas e hortênsias — e levava a rotina de estudante pobre, longe de sua terra, de seus folguedos e de suas visitas eventuais às casas de mulheres que vendiam carinho e amor.

Morava num pequeno quarto dos fundos, escolha dele, porque era mais barato e gostava de ficar só. 

Ferdinando cheirava as flores, apenas cheirava. Carecia do ímpeto de arrancar-lhes as pétalas. Nutria-se do silêncio conformado e da observação dos que se atiravam à luta, em busca dos odores efêmeros de fáceis conquistas.

Hortênsia voluteava entre os moradores da casa como uma libélula com suas asas transparentes, sem pouso definido. Petúnia fora, desde logo, segura pela haste por um estudante de veterinária, que a beijava a tarde toda, assenhoreando-se de sua presença. A mãe, rainha do jardim, dominava as cenas com discrição. Era uma rosa de aspecto delicado e aroma agradável. Tinha os veneráveis cuidados de um grande amigo, o Dr. Pedro, que a visitava quase diariamente. Sentava-se no sofá da sala, ficava um bom tempo em que recebia as atenções da bonita viúva e se despedia, partindo com seu fordinho pipocando rua afora. Era muito raro saírem juntos. Tinha o respeito de toda a moçada que ali alugava  quartos. Assim corriam os meses. Assim corria a vida em volta de Ferdinando.

Ferdinando encheu-se de paixão e desejo, desde o começo, pela Hortênsia mas, apenas observava seus vôos inquietos. O taurino pode entrar e sair rapidamente dos relacionamentos somente se estiver em busca de prazeres sexuais, mas quando se apaixona, então procurará um relacionamento estável.  Apaixonara-se, então, pela Hortênsia, que fingia não perceber nada, dedicando-lhe momentos efêmeros de atenção, com insinuações de olhares e evasivas que denotavam intenções jamais explicitadas. Sentia-se bem sendo requestada por todos — e sabedora que teria nas mãos quem quisesse na hora que quisesse. Assim, provocava seus pretendentes.

Ferdinando, remoendo ciúmes, esperava a hora de dar o bote. Tinha de dar tempo ao tempo, e esperava que não demorasse tanto depois que percebeu em Hortênsia  uma ponta de ciúme quando começou a ter rápidos encontros com uma portuguesinha que morava num edifício próximo. Ao vê-lo trocando beijocas com a menina perguntou, com ar de deboche: "quem é aquela sirigaita sardenta que estava conversando com você?". A portuguesa voltou ao Rio de Janeiro, de onde viera, nada tendo a ver com essa história, a não ser pelo fato de mostrar ao Ferdinando que Hortênsia não lhe era indiferente, como parecia. 

Alimentava em segredo a crescente paixão por Hortênsia, invejava o estudante de veterinária que beijava Petúnia o dia inteiro e procurava ser agradável à Rosa, que lhe alugara o quarto e a quem tinha o respeito que se tem a uma provável futura sogra mas, admirava em silêncio seu corpo bonito, o frescor de sua pele e não tirava os olhos dos meneios de quadris quando ela subia as escadas para o pavimento de cima.

Os fios do tempo conduzem os fatos. Um caldeirão onde se misturam juventude, carências, vivências diárias, desafios, troca de confidências, ardores do sexo, tudo isso induzido ou regido por mãos invisíveis despeja, ao fim, as suas histórias, que irão, por anos e anos, marcarem de saudades os protagonistas de um determinado tempo.

Hortênsia vivia rodeada pelos estudantes moradores da casa, sempre aos montes, vigiada de longe por Ferdinando. Quando a via ser abraçada por um deles, o ciúme se lhe ascendia com força e acendia sua pele, deixando-a como uma brasa viva, ou como um homem em chamas. Mudo e sofrido, ia para o quarto e abria um livro, que tentava ler. O ciúme cegava-lhe, não deixava perceber que Hortênsia deixava-se abraçar por todos mas, nunca a vira beijar ou ser beijada por alguém, como Petúnia fazia com o seu estudante de veterinária, à vista de quem quisesse ver.

Petúnia ficara amiga de Ferdinando, que era amigo do estudante de veterinária. "Namorada de amigo é homem" — dizia. Ficavam horas conversando, enquanto o rapaz estava na universidade às voltas com bezerros, cavalos e cachorros. Suas confidências iam fundo e não percebiam que, em suas conversas, desvendavam-se mutuamente. Quando o rapaz estava presente, começava a sessão de beijos e Ferdinando somente olhava, pensando, um dia, fazer o mesmo com Hortênsia. Seu único alvo era Hortênsia. Quando Petúnia se desentendia com o estudante de veterinária e Hortênsia elevava ao mais alto grau os seus vôos entre os súditos, os dois consolavam-se mutuamente.

Vamos dançar? 

Ferdinando aceitou o convite de Petúnia, levou-a para o meio da sala, enquanto a eletrola executava "Ninguém me ama", na voz de Nora Ney. Apenas os dois na sala e o disco girando e os dois dançando muito lento, mal mudando os passos, dando condição para que o calor de seus corpos se misturassem. Sem que ninguém, nenhum dos dois, pensasse no momento o que poderia ocorrer, pararam de dançar e juntaram os lábios num longo beijo molhado, que poderia ter durado três segundos ou três minutos, não ficaram sabendo.

À tarde, o estudante de veterinária, ao pé da escada que levava ao andar de cima do sobrado, atracou-se aos beijos com ela, como era costume. Ferdinando pulou por cima dos dois para subir a escada, e viu Petúnia piscar-lhe os olhos, sem se despregar da boca do namorado.

Um tumulto de sentimentos invadiu o coração de Ferdinando, que apenas queria Hortênsia.

Dr. Pedro há muito não aparecia e Rosa andava excitada pelos cômodos, vendo aqui e ali o que faltava aos seus inquilinos, fazendo vista grossa ao que acontecia  debaixo de seus olhos. Ferdinando não desistia de Hortênsia porque  paixão não se cura de uma hora para a outra. No entanto, não esquecera do beijo molhado de Petúnia e, agora, não a via sem um frêmito perpassar-lhe o corpo. Apesar de ser amigo do estudante de veterinária, torcia para que ele não voltasse da universidade tão cedo — e ficava na expectativa de outro momento semelhante.

Petúnia não saiu do quarto naquele feriado. O namorado viajara para o interior em visita rápida aos parentes, aproveitando o sábado e o domingo que se seguiram ao feriado. Rosa disse ao Ferdinando: Petúnia não está bem e quer falar com você. Como estudante de medicina, dava-se ares de médico de vez em quando, e atendeu o pedido. Foi ao quarto de Petúnia e a encontrou deitada, coberta com uma colcha fina, com uma fisionomia muito saudável, sem ter nada de doente. Disse que queria apenas conversar, tinha tido uma dor qualquer — e mostrou o flanco direito — mas, agora estava bem.

Solícito, Ferdinando, quis examina-la assim mesmo. "Sabe-se lá, pode ser apendicite". Sentou ao lado da cama e descobriu-lhe a barriga branquinha, porque há muito tempo não ia à piscina do clube. Começou uma apalpação leve, como aprendera e a foi aprofundando, em todos os quadrantes do abdome. Petúnia deixava-se apalpar sem constrangimentos e parecia gostar do exame. Ferdinando deslizou a mão pela barriga branquinha da menina e, à força do instinto, seus dedos dirigiram-se mais abaixo, tocando um monte de pêlos lisos e pouco abundantes. Petúnia revirou os olhos e exalou um suspiro demorado. As mãos destras de Ferdinando não foram mais abaixo porque, no momento, Rosa entrou no quarto com uma bandeja com xícaras, oferecendo café cheiroso, feito naquela hora.

Ferdinando estava dividido entre a paixão platônica por Hortênsia e a oferta de prazer gratuito de Petúnia, com o beneplácito de Rosa. Passava o tempo e os acontecimentos eram os mesmos, sempre, sem nenhuma modificação de importância. Hortênsia continuava a ir e vir entre a rapaziada. O ciúme de Ferdinando quase se apagou quando percebeu que, entre a moçada, a maioria não era bem do grupo de homens que compartilhava o gosto por mulheres, desde que surpreendeu dois deles em conluio íntimo, certo dia.

Por outro lado, tivera outros bons momentos com Petúnia, em que os dois puderam se conhecer melhor, dessa vez sem se lembrarem do estudante de veterinária que, a esta altura, estava praticamente descartado das pretensões de Petúnia.

Rosa, que há muitos dias não recebia a visita do Dr. Pedro, dava muita atenção a Ferdinando e estimulava sua amizade com a filha Petúnia.

Num dia qualquer, como outro, a casa estava vazia, os estudantes nas universidades e as meninas saíram às compras. Ferdinando abriu um livro de contos e foi lê-lo na sala, quando chegou Rosa. Eram três da tarde. Algumas nuvens pesadas anunciavam chuva. Ferdinando fechou o livro e entregou-se ao ócio e à presença de Rosa, que sentou-se numa cadeira à sua frente. Falou como se falasse com alguém não presente na sala: "Se não vier chuva, eu vou ao cinema. Queria ver o filme Casablanca". Ferdinando, que normalmente não percebia insinuações, dessa vez pegou a deixa: "também queria ver esse filme". O andamento da conversa foi rápido. Em poucos minutos, os dois saíram e só voltaram as oito da noite. Era visível a satisfação nos olhos de Rosa e de Ferdinando.

Ferdinando mudou-se daquela casa para uma república de estudantes mais próxima do hospital onde praticava seus estudos teóricos. Pôs uma pedra sobre a paixão pela Hortênsia, que acabou se casando. Petúnia sempre lhe telefonava dizendo que precisava de uma consulta médica, que ele atendia prontamente. Foi ao cinema algumas vezes mais com a Rosa, sempre que Dr. Pedro, com crise de gota, não comparecia.

Anos depois, com surpresa, recebeu o telefonema de Hortênsia. A mesma voz suave, a mesma entonação.

"Ferdinando, eu estava vendo umas fotos antigas e fiquei com saudades". A conversa durou mais de meia hora. Rosa falecera. Petúnia, ainda solteira, morava em Brasília. Ela, Hortênsia, reclamava do marido, que não lhe dava mais atenção.

"Venha me ver, vamos conversar sobre aquele tempo, era bom, não é?".

Ferdinando surpreendeu-se ao saber que o marido de Hortênsia tinha ciúmes quando ouvia a pronúncia de seu nome...

"Ciúmes, Hortênsia? Nós nunca tivemos nada, além de amizade...".

"Tivemos, sim, Ferdinando. Fomos namorados".

Pela primeira vez, muitos anos depois e já velho, Ferdinando fica sabendo que tinha sido namorado de Hortênsia. Tarde demais. Ficou difícil para ele entender o tipo de raciocínio de Hortênsia. De qualquer modo, a frase de Hortênsia, "fomos namorados", resgatou uma antiga frustração por não ter sido correspondido em sua paixão avassaladora da juventude. Entendeu, no entanto, que em meio a tantos pretendentes, Hortênsia tinha dificuldades de decisão por um ou outro.

"Venha me ver. Vamos conversar sobre aquele tempo". Ferdinando não foi. Preferiu guardar na memória aquela suave e doce jovem que, um dia, martirizou-lhe o coração. Preferiu não vê-la agora, velha e talvez cheia de rugas. Seria a demolição total de um edifício sentimental que ele guardara tantos anos, em sua memória. Agora, feliz, por saber que fora de certa maneira correspondido em seu amor.

 

 

 

 

Arilda ocupava o vão da janela aberta pela metade, impedindo-me de ver o que ia lá fora: o espaço azul com algumas nuvens espessas e encorpadas, outras esgarçadas e fugidias, formando figuras que eu gostava de identificar como animais ou coisas. Arilda  chegou quando eu começava a delinear uma figura parecida com um barco a vela. Fiquei impossibilitado de tomar o veleiro e viajar pelos mares afora. Quando ela saiu do espaço da janela semi-aberta, o veleiro havia sido desfeito e no lugar dele havia uma nesga de nuvem informe e eu teria todo o trabalho de pensar outra figura, o que não seria a mesma coisa. Minha viagem, portanto, ficou para outra ocasião. Ela nem se deu conta de que desfizera uma aventura para a qual estava me preparando. Permaneceu no vão da janela um certo tempo, virou-se para mim e disse: não sei que graça tem ficar o dia todo olhando o tempo. Disse e foi para a cozinha lavar o resto dos pratos. Nem me olhou. Nem esperou resposta.

A janela era estreita e só tinha uma folha que abria para dentro. Quando aberta, ficava numa posição meio canhestra, fazendo ângulo reto com a parede. As dobradiças não permitiam que abrisse até encostar na parede. Quando ventava forte a folha da janela ficava indo e vindo, batendo, batendo, fazendo um barulho contínuo de golpes, enquanto durava o vento. Arilda vinha e a prendia com uma cordinha amarrada num prego grande na parede e resmungava xingamentos pelo incômodo que o barulho lhe causava. A mim, não incomodava. Eu aproveitava o barulho da janela indo e vindo, indo e vindo, para adormecer meu pensamento, para viajar. Sempre aproveito os momentos em que posso ir longe, já que andando eu não consigo, desde que perdi as pernas num acidente de carro. As minhas pernas são as rodas da cadeira, que eu mesmo empurro para lá e para cá, do quarto para a sala, da sala para o quarto e para outros cômodos da casa, menos para a cozinha, que se situa em nível mais baixo e eu teria de transpor três degraus de escada. Arilda não dava conta de descer a cadeira comigo pelos degraus e nem se dispunha a fazer isso. Achei melhor não freqüentar mais a cozinha e passava a maior parte do tempo escarafunchando a janela com os olhos e tudo que  o que pudesse ser visto através de sua moldura. Olhando pela janela o dia inteiro, tive oportunidade de conhecê-la melhor, suas qualidades e defeitos – e tudo o que, além dela, aparecia aos meus olhos. Arilda não disse sim nem não, não aprovou nem desaprovou a minha decisão de não descer à cozinha, para ela tanto fazia, pois não compartia as minhas dificuldades — e tampouco as minhas facilidades de viajar pelo imenso mar do pensamento.

Nunca estive só no meu quarto. Havia uma aranha que morava acima da janela, num dos caibros de sustentação do telhado. Lá ela tecia a sua teia, no afã de aprisionar incautos mosquitos. Em sua mania compulsiva de limpar a casa, Arilda vassourava a teia e eu pensava que a aranha tinha sido exterminada sob a ação da vassoura. No dia seguinte, lá estava ela a refazer a teia pacientemente, com a sabedoria instintiva dos seres necessários Eu então pensava nos motivos da aranha, sempre fiando a teia, laboriosamente. Admirava a sua pertinácia. Pensava que poderíamos imitar animais como os aracnídeos, sempre dispostos ao reinício. É a racionalidade que atrapalha o ser humano. Ao ver que a aranha havia refeito a teia mais uma vez, Arilda buscou a vassoura e, antes de dar mais uma vassourada, eu lhe disse: deixa a coitadinha, que mal ela está fazendo? Ante a inesperada pergunta, Arilda susteve a vassoura no ar e, calada, voltou à cozinha. Creio que assustou-se com a minha frase, talvez com o meu tom de voz. Eu, que sempre calara com suas ações impensadas ou maldosas, surpreendi-a com minha atitude defensiva.  Estava pensando nisso quando ela voltou com uma vara que tinha na ponta uma mecha embebida em álcool, na qual pusera fogo: ia não só queimar a teia mas, eliminar de vez a aranha. Dessa vez fiquei calado, pensando nos motivos ocultos que levavam Arilda a não dar ouvidos ao que eu dizia. Tempos depois apareceu outra aranha, que também foi queimada maldosamente por Arilda. De aranha em aranha, acostumei-me com sua malvadez, tive de me acostumar.

A única folha da janela era de madeira maciça, três tábuas estreitas unidas, completando a sua largura. As tábuas eram polidas e envernizadas com muito critério, salientando os desenhos da madeira. Eu olhava as manchas, pensando no meu antigo professor de pintura, que me dizia sempre: aprenda a ver. Ele me pedia para borrar uma tela com pinceladas de cores diferentes e depois esquadrinhar a tela e buscar formas, conforme minha maneira de ver. Impressionei-me com a variedade de formas que encontrava: animais, paisagens, figuras humanas e outras coisas impensáveis. Transportava tais formas para telas em branco e produzia assim as minhas obras. A esse respeito conversei certa vez com o artista plástico M. Cavalcanti que me disse ter a mesma mania. Ele olhava as portas de seu guarda-roupa e encontrava ali figuras de todo jeito, que lhe inspiravam em seus trabalhos. Eu não sou artista plástico, apenas fiz algumas telas pintadas a óleo mas, me embevecia vendo coisas na superfície das madeiras. Não pinto mais, embora não tenha deixado o hábito de procurar figuras onde quase ninguém as vê.

Estava começando a ver a figura de um lobo, certa tarde, quando Arilda entrou e escancarou a janela. Tirou-me da visão a figura que eu arquitetava na mente, à vista daquelas manchas na madeira. Com a janela aberta, a superfície em que eu via o lobo sumiu de meus olhos e, em conseqüência, apagou-se a figura mental que eu projetava. Disse para Arilda: você matou o meu lobo. Ela me olhou de maneira esquisita e saiu sem dizer nada, deixando-me triste porque quando eu for olhar de novo, não verei mais o lobo, mas outra figura. Fiquei com o sentimento de perda, que vem se somando a outros sentimentos de outras perdas  Toquei a cadeira para a beira da cama, no meu quarto,  e com a força dos braços, acionei meu corpo até a cama, para descansar um pouco. 

Não só me divertia olhando a folha da janela, as paredes, o piso, o teto de meu quarto e da sala mas, também com o que conseguia ver, de minha cadeira, o que estava lá fora. Da posição de que mais gostava via a fronde de uma grande mangueira. O que mais me aprazia era apreciar os pássaros quando as mangas apareciam e amadureciam, servindo de pasto às aves. Havia pássaros de todo tipo, alguns que eu não conhecia mas, os que faziam mais algazarra e vinham com mais freqüência eram os periquitos. Enchiam os galhos e ficavam horas gritando e bicando as mangas mais maduras. Nem as pedras que os moleques da rua lhes jogavam, afastava-os da farra diária. Acima da fronde da mangueira meus olhos viam uma imensidade de azul, nuvens e, de vez em quando, um pássaro riscando o céu. Vez ou outra, passava um avião mas, estava tão longe que parecia não fazer barulho. Não cansava de olhar os urubus, uns poucos, fazendo círculos bem lá no alto. Subiam e desciam, em espiral, buscando as correntes de ar. Meu pensamento, também em espiral, subia e descia com eles. Quando eu era menino, disse um dia para meu pai: quero ser um urubu. Meu pai riu, porque não percebeu a seriedade daquela declaração. Talvez o sentimento de liberdade que eu sempre tive, desde a infância, tenha sido influenciado pelos urubus, que eu julgava livres, vendo-os em seus vôos tranqüilos, lá no alto. O que eu disse para meu pai não era uma frase tola, dita por um moleque que nem alfabetizado era, mas sim, uma constatação séria, que vinha do fundo da alma, depois de observar os urubus por muito tempo.

Hoje eu estava apreciando um bando de  periquitos, e pensando na vida deles em comunidade. A maioria dos pássaros vive aos pares, acasalados mas, na família dos psitacídeos é normal viverem em bandos, embora acasalados. Estava pensando nisso, quando as nuvens ficaram escuras, baixas, o vento soprava forte, enfim, armava-se um temporal. Foi então que Arilda apareceu para fechar a janela, exatamente quando mais eu apreciava os pássaros. Abri o livro Pedro Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo, e comecei a leitura, para não ficar lembrando da Arilda, em seu silencioso excesso de autoridade, fechando a janela sem ao menos me perguntar se eu a queria fechada ou esperasse mais um pouco, porque às vezes a chuva não chegava... Com a janela fechada, deixei os periquitos e procurei ver outras coisas, na sala, como a lagartixa no teto.

Arilda ainda não havia notado a lagartixa. Meio cinzenta, confundia-se com a cor do teto, num jogo mimético oportuno, que a defendia de eventuais vassouradas. Aparecera havia uma semana, permanecendo quieta quase o tempo todo, certamente à espreita de mosquitos, sua alimentação de praxe. Sempre tive simpatia pelas lagartixas mas, jamais soubera alguma coisa sobre elas, como viviam, como se alimentavam, porque tinham uma vidinha tão discreta. Encontrei, numa mala de couro que estava no quartinho de despejo, um velho livro de zoologia que tinha sido de meu pai e onde tive a sorte de ler muitas coisas sobre lagartixas. Há centenas de espécies e, do que pude ler, não tive condição de encaixar em nenhuma a minha lagartixa, a que estava ali no teto, quase invisível, parecendo que dormia. No meu quarto não havia forro e o telhado ficava à vista. Para passar o tempo, comecei a contar os caibros e as ripas que sustentavam as telhas de barro cozido, feitas num olaria de fazenda, de modo muito artesanal. Contava e recontava os caibros e ripas,  porque a meio da operação eu perdia as contas e tinha de começar tudo de novo. Até que me aborreci com os caibros (e ripas) e me dediquei a contar as telhas. Acontecia tudo igual: eu perdia as contas e recomeçava. Foi então que percebi que a lagartixa mudara de lugar. Devia estar em posição de ataque porque, de um só golpe, num movimento rapidíssimo, abocanhou uma mosca incauta que pousara perto A atitude da lagartixa trouxe-me muitos motivos de reflexão, o que me ocupou o resto da tarde. Arilda dessa vez não apareceu.

Meu tempo não era gasto só em reflexão e observação do que me circundava. Movimentava-me muito, da sala para o quarto, do quarto para a sala, muitas vezes por dia. Não entrava no quarto de Arilda. De tanto empurrar as rodas da cadeira, fui criando bons músculos nos braços e no tronco, o que me permitia, num lance de ginasta, passar sem auxilio de ninguém, da cadeira para a cama e da cama para a cadeira — e para o vaso sanitário, com um pouco mais de esforço. Fui ganhando uma força descomunal, enquanto as pernas não existentes continuavam vivas em minha mente, o que o médico me explicou serem órgãos fantasmas que até se movimentavam e podiam sentir dor, tudo psiquicamente.

Arilda não percebeu o aumento de meus músculos peitorais, nem os dos braços, pois ela entrava e saia do quarto e me olhava como se eu fizesse parte do mobiliário. Poucas vezes ela vinha ao quarto ou à sala, a não ser para me trazer a comida ou outra coisa que julgava ser necessário, mesmo que eu não pedisse. Ela acreditava estar fazendo algo por mim. Quanto à água, eu tinha uma moringa de barro sobre uma mesinha ao lado de minha cama. Eu não ia ao quarto dela, estávamos separados mesmo antes do acidente em que perdi as pernas e nem fazíamos questão de muita conversa: cada um vivia no seu mundo e poucos e eventuais liames nos prendiam.

O aumento de minha força era evidente e eu não sabia o que fazer com ela. Passei a me interessar por esporte, desde que um dia, vendo um programa no meu velho aparelho de televisão, vi umas cenas de basquete em cadeiras de rodas, coisa que eu nem imaginava pudesse existir. Procurei informação através de uma carta à Federação, contei sobre minha condição e disse estar interessado. Na mesma semana, apareceu-me um homem de quase dois metros de altura, ex-jogador e treinador do time de atletas deficientes. Veio conversar comigo e desde então sou jogador de basquete, sem deixar de participar de meus passatempos que são os de ver passarinhos, observar aranhas e lagartixas, ver formas nas nuvens e nas superfícies das madeiras, principalmente na superfície da minha janela polida e envernizada, além do jogo lúdico de contar telhas e caibros.

O grande problema era ir aos treinos e voltar. Arilda não teve nenhum interesse de prestar ajuda e nem fez comentário algum sobre a intenção de me tornar um jogador de basquete. Creio que o treinador teve a intuição de que eu seria um ótimo jogador e facilitou tudo para mim, incluindo a condução para o ginásio. Cedeu-me uma cadeira de rodas especial para jogos e a vida seguiu adiante, eu agora treinando diariamente — e evoluindo muito rápido, tornando-me o craque do time. 

Fiz vários jogos oficiais, fui convocado para a seleção e estive presente no recente campeonato mundial na Lituânia. Durante esse tempo, Arilda não se manifestou em nenhum momento, nem contra nem a favor, apenas insinuou que gostaria de ir à Lituânia, jogando verde para colher maduro. Limitei-me a ouvi-la, sem dizer nada. Ganhamos o campeonato. Fui eleito o melhor jogador do certame. No presente, não estou treinando, o que me permite a atividade anterior de observador através da janela e do interior da casa, dos eventos que ocorrem nesses locais. Arilda ficou magoada por não ter ido à Lituânia — e agora me trata com mais desprezo do que antes.

Após muitas reflexões, concluí que não preciso de Arilda e nem ela de mim. Se eu empregar uma boa governanta, uma mulher desimpedida, posso ter tudo e mais alguma coisa que um homem, mesmo cotó, precisa. Não há necessidade de casamento. Para isso, eu tenho de me livrar de Arilda, pedir o divorcio ou coisa semelhante. Estou avaliando o caso e minha tendência é optar por "coisa semelhante". Não é de minha índole fazer coisas precipitadas, inconvenientes ou, de alguma maneira, que fira a moralidade vigente. Nada me liga mais à Arilda. A sua presença, que até há pouco tempo me era indiferente, passou a ser um estorvo e, posso dizer, me fazia mal. Passei a lucubrar um meio de me livrar dela. Com minha limitação de movimentos e a quase total falta de comunicação entre nós, não era uma tarefa fácil.

Mas o bom Deus ajuda quem precisa. Estava observando as nuvens, formando as minhas imagens, quando ouvi o barulho da freada brusca de um veículo, seguido de um baque surdo. Só fiquei sabendo o que acontecera minutos depois quando vieram me avisar que dona Arilda tinha sido atropelada e levada ainda com vida para o hospital. Lá acabara de morrer.

Constância ocupava a metade do espaço da janela e olhava para o céu azul com algumas nuvens. Virou-se de repente para mim e disse: você já prestou atenção nas nuvens? Se a gente olhar com atenção, aparece de tudo. No momento, por exemplo, estou vendo um grande navio, você vê? Respondi: vejo sim, Constância, vamos embarcar nele e fazer uma viagem?

 

 

 

 

O aspecto cerdoso de sua barba negra dava-lhe um instigante ar oriental. Vestia roupas velhas, sempre limpas. Não dispensava paletó e gravata, sempre a mesma gravata branca com bolinhas azuis. Ninguém sabia onde nascera, nem como e quando aparecera em nossas ruas. Dizia-se que sempre estivera nas ruas sem que fosse notado.Estava em todo lugar. Era visto no centro ao mesmo tempo em que estava num ônibus ou na rua de um bairro distante. Não conversava com ninguém, não ria, não falava, apenas andava nas ruas, o dia todo. Disseram-me ser imperioso saber porque ninguém discutia a ubiqüidade desse homem. Chamavam-no Sadam. Não era o nome que constava da certidão de nascimento, com certeza. Era um nome mágico, no entanto. Equivalia a um símbolo. Bastava pronunciá-lo que, com a estranha figura, vinha à mente das pessoas, tudo o que representava, um turbilhão de coisas, junto com algum desconforto espiritual. Disseram-me ser necessário observar esse homem, o homem ubíquo, o homem estranho, desconhecido. Assumi a tarefa. Eu tenho o tempo e, depois de tantos anos vividos, tenho também muita curiosidade acumulada. Sou uma bateria nova e acredito numa rede de baterias para acumular mais perguntas. Vou observar Sadam. É preciso, no entanto, convencê-lo a me escutar.

Deixei a barba crescer, embora não fosse tão negra nem tão cerdosa. Vesti minha roupa mais velha, com paletó e gravata azul com bolinhas brancas. Minha intenção era ficar parecido com Sadam. Pensei que assim nossa aproximação seria mais fácil. Meu projeto não tem tempo definido para chegar ao fim, eu tenho todo o tempo do mundo. Saí às ruas.

"Sadam, filho da mãe". Não foi um grito de xingamento mas, um grito amistoso, como de amigos que há muito não se encontravam. Depois de vários meses tentando encontrar Sadam, escutei essa frase, gritada no meio da multidão. O grito veio da direita, para onde me virei e vi, no bolo de gente, uma figura que se esgueirou e virou a esquina. Achei que, enfim, havia encontrado Sadam e fui atrás. Ao dobrar a esquina, vi-me numa rua quase deserta. Havia apenas um homem sentado na beira da calçada em frente de uma casa abandonada e não era o que eu vira dobrar a esquina. Era um mendigo.

"Um homem passou aqui agora?" — perguntei.

"E por que passaria um homem, aqui? Principalmente agora?...".

Não respondi, porque não tinha nada o que dizer. O que ia interessar àquele  pobre coitado que eu estava à procura de um homem, há meses, que guardava alguns mistérios e que, por um momento, achei que havia dobrado aquela esquina?

"Não passou ninguém o que é a mesma coisa que tenha passado alguém. Aqui todos passam, não passam ou nunca passam. Tudo é relativo". Surpreendi-me com a fala do mendigo. Aproximei-me.

"Explique-se" — eu disse.

"Não tenho que explicar nada, você é que tem de achar a explicação".

"Não estou procurando explicação e, sim, um homem que tenho de decifrar".

"Então, senta aqui".

"Por quê?".

"Porque por aqui passam homens que estão sendo procurados... e que precisam ser decifrados".

Sentei-me ao lado do mendigo. Logo me envolveu uma aura de simpatia por ele. O homem estava calmo e esperou que eu continuasse a conversa. Comecei perguntando onde morava e por que estava ali, àquela hora, solitário — se sua renda dependia das pessoas que passavam nas ruas.

Ele me olhou com espanto nos olhos, como se minha pergunta fosse inoportuna ou imprópria.

"Estou nas ruas, não importa se vazias ou cheias, porque o que recebo em dinheiro não depende de multidões. Não quero ficar milionário. Há coisas mais importantes do que dinheiro".

Fiz uma inopinada pergunta:

"Desculpa-me a curiosidade mas, conte-me um pouco de sua vida".

"A minha vida? Ora, nasci e estou vivo. Não tenho nada para dizer". Olhou-me nos olhos e aduziu: "Sua curiosidade me surpreende".

Fiquei constrangido. Não tinha o direito de saber nada de suas intimidades, já que o conhecera apenas há alguns minutos. Desculpei-me, deixando-o ali sentado, do mesmo modo que o encontrei e continuei a busca de Sadam, voltando para a multidão. Aquele grito "Sadam, filho da mãe" deixava claro que o homem que eu procurava estava por ali. E por que alguém gritara daquela maneira?

Naquele dia, voltei muito tarde para casa e, pela primeira vez, a imagem de alguém desconhecido, na rua, não me saía da cabeça.

Com o intuito de encontrar Sadam, eu não saía das ruas, desde cedo até o período noturno. Pegava ônibus, ia aos bairros, almoçava pratos feitos nos bares, escondia-me da chuva debaixo de marquises, olhava vitrines. Nem sombra de Sadam. Fiquei conhecido em todo lugar. Em alguns lugares, já me cumprimentavam e alguém, de vez em quando, puxava conversa comigo. Já havia esquecido o mendigo que encontrara antes quando o vi novamente. Dessa vez, por coincidência, quando corri atrás de alguém que pensei finalmente ser o Sadam. Não havia multidão. Era uma quieta rua de bairro. Alcancei-o e me coloquei à sua frente. Ele simplesmente me olhou sem surpresa e disse: "olha se não é o homem que procura alguém que precisa ser decifrado!".

Fiquei satisfeito por ter me reconhecido, o que facilitou a seqüência do encontro.

"Pois sou eu mesmo, ainda não encontrei o homem".

"Não encontrou porque não sabe procurar, não sabe ver".

"Não entendi, seja mais explícito".

"Não há como ser mais explícito. Se você não entende a sua própria busca, serei eu que devo entendê-la?".

Continuei nas ruas. Já estava tão acostumado às ruas que me tornei conhecido de todos, que me olhavam com compaixão — e alguns até abanavam a cabeça como se dissessem: "coitado, está maluco!".    

Todo o tempo em que me dediquei a encontrar Sadam, esquecendo o resto de minhas atividades, foi me levando a ser um homem propenso à busca de mim próprio. Passei longas horas conversando comigo mesmo. Quantas vezes fui surpreendido falando alto, no meio da multidão, atraindo olhares curiosos.

As últimas frases do mendigo não me saíam da cabeça: "não encontrou, porque não sabe procurar, não sabe ver".

O que meu amigo quis dizer com isso? Sem que eu percebesse, ou sem que eu quisesse, sua frase despertou-me uma série de reflexões. Dia após dia, procurei entender a mensagem do mendigo: aprender a ver.

Depois de mais de dois anos nas ruas em busca de Sadam, eu não era mais o mesmo. Encontrar Sadam tornou-se obsessão. Deixei meu trabalho e a minha sobrevivência tornou-se um problema. Minha vida era simples, tinha uma pequena oficina de consertos de aparelhos eletrodomésticos que me dava o suficiente para viver. Na busca obsessiva de Sadam, ficava pouco tempo na oficina e, aos poucos, perdi minha freguesia. Fiquei constrangido em pedir dinheiro emprestado aos amigos, os poucos que sobraram. Mesmo assim, continuei nas ruas em busca de Sadam.

Um dia, cansado de perambular, parei numa rua deserta, sentei-me na calçada e fiquei olhando os poucos transeuntes que ali passavam. As pessoas olhavam-me com olhos curiosos e algumas enfiavam a mão nos bolsos e depositavam moedas e algumas notas de baixo valor em meu chapéu, que eu havia tirado para aliviar o suor da testa. Não tive forças nem coragem para recusar. Ao fim de alguns minutos, resolvi andar de novo, contei o dinheiro e verifiquei que havia ali um bom valor.

A tentativa de voltar ao trabalho não deu certo. A freguesia sumiu e outra oficina maior se instalou ao lado de meu ponto. Fui ao Banco e retirei uma pequena economia amealhada ao longo de alguns anos, de trocado em trocado.

À essa altura, em vez de encontrar e tentar decifrar Sadam, vi que as pessoas que me cercavam eram merecedoras de decifração, tanto quanto Sadam — e eu não tinha coragem para decifrar todo mundo. Todos tinham seus mistérios, todos.  Chegou a hora em que me vi perdido, sem saber o que fazer, pois, há anos vinha tentando, como meta de vida, entender aquele homem. Além de não entendê-lo, encontrei outros. 

À medida que eu saia às ruas e parava em algum lugar para descanso, voltava a cair dinheiro em meu chapéu. Depois do constrangimento inicial, comecei a gostar, pois o dinheiro dava-me sustento suficiente para minhas pequenas ambições.

Pensando nisto, organizei-me. Elegi dois pontos na cidade, onde poderia parar. Ficava no centro no primeiro expediente e, à tarde, preferi as imediações de um grande supermercado, no bairro onde moro. Sempre à mesma hora, vestindo paletó e gravata azul com bolinhas brancas. Ao mesmo tempo em que ganho uns trocados, espero por Sadam, em vez de andar às tontas toda a cidade, como tenho feito há anos.

Fiquei conhecido nesses pontos e, de certa forma, angariei simpatia de muita gente que, invariavelmente, deixava dinheiro no meu chapéu. Comecei a ganhar muito dinheiro, muito mais do que eu ganhava consertando eletrodomésticos.   

Não mais estou procurando Sadam. Cheguei à conclusão de que homem decifrável não existe. Ubíquos somos todos nós. Cada ser humano tem o seu próprio mistério. Ontem, eu estava sentado no meio-fio de uma rua meio deserta, embora fosse uma rua central, quando se aproximou um homem afobado, dirigiu-se a mim e perguntou:

"Um homem passou aqui agora?".

"E por que passaria um homem, aqui? Principalmente agora?... Não passou ninguém o que é a mesma coisa que tenha passado alguém. Aqui todos passam, não passam ou nunca passam. Tudo é relativo".

O homem assustou-se com a minha resposta.

"Explique-se" — ele disse.

"Não tenho que explicar nada, você é que tem de achar a explicação".

"Não estou procurando explicação e, sim, um homem que tenho de decifrar".

"Então decifra você mesmo que terá decifrado o homem que procura".

"Por quê?"

"Porque é assim, somos todos assim, misteriosos. Carregamos os nossos mistérios, que são semelhantes aos mistérios de todo mundo. Senta aqui. Por aqui passam todos que precisam ser decifrados".

O homem sentou-se ao meu lado. Olhei-o dentro dos olhos e me vi alguns anos atrás, buscando o homem ubíquo, misterioso e que tinha de ser decifrado.

Continuei conversando, sem que ele nada perguntasse. O homem condoeu-se de mim, abanou a cabeça como se dissesse "aqui só tem maluco", levantou-se, tirou uma moeda do bolso e jogou-a no meu chapéu emborcado e, em silêncio, saiu em busca do homem que procurava, pensando que poderia decifrar qualquer pessoa.  

 

 

 

 

 

abril, 2007

 

 
 
 
 
Fausto Valle (Fausto Rodrigues Valle). Médico, nascido em 1930, em Araxá, Minas Gerais. Enraizou-se em Goiás desde o primeiro ano de vida. Foi professor universitário, exercendo também cargos de direção na Universidade Federal de Goiás. Sua pequena produção literária da juventude perdeu-se no tempo e no espaço. Reativou-se literariamente no ano de 1988, quando publicou seu primeiro livro. Desde então, escreve regularmente. Sua obra: A fonte do sal (poesia, Zamenhoff Editores, 1988), Cravos sobre a mesa (poesia, Editora Kelps, 1992), Relógio de areia (poesia, Editora Kelps, 1998), Aldeia absurda (poesia, Editora Kelps, 1999), Confraria dos marimbondos (contos, Editora Kelps, 2001), Um boi no telhado (contos, R&F Editora, 2005), Poemas dispersos (poesia, EditoraKelps/Editora UCG, 2005). Escreveu uma peça de teatro, O escolhido. Escreveu textos para teatro de mamulengos. Tem artigos, poemas e contos espalhados na internet, em sites de outros escritores. Publicou poemas na revista portuguesa "Palavras em Mutação", a convite — e em mais duas revistas brasileiras. Recebeu os prêmios: Menção honrosa no extinto concurso José Décio Filho (1991), com o livro Cravos sobre a mesa; Bolsa de Publicações Wilson Cavalcanti Nogueira, versão 1997, da Fundação Cultural de Pires do Rio, com o livro Relógio de areia; Troféu Goyazes 2004 (Bernardo Elis, categoria conto), concedido pela Academia Goiana de Letras. Morreu em 12 de maio de 2010, em Goiânia.
 
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