©harald sund
 
 
 
 
 
 
 

 

(Para Rachel Jardim, no Rio)

 

 

Ainda que ela não quisesse ouvir o nome de R. na boca dele — uma pontinha de margarina grudara em seu lábio inferior -, foi obrigada a acolher o som enquanto procurava fixar-se, enterrar-se, desaparecer no ato de passar geléia de amora numas lascas do pão francês. Ouviu-o inteiro, ouviu-o impune, livre, e ele sorria, benévolo, como sempre. Não dava para ignorar: R. estava na cidade, vira-o na sinuca do armazém do Adolfo, que se transformara em bar. Vira-o em mais de um lugar. Limpou a boca, a um sinal inequívoco que ela lhe fez.

Descreveu a aparência — bem, todo mundo envelhece, né? repara em mim, que fiquei gordo, que estou bem grisalho, que já não sou o mesmo — ria. Não ser mais o mesmo — e era talvez o que tentasse dizer — serenizava-o: ah, não ter que ser bom no timinho de futebol, tomar umas dezenas de cervejas, emitir um comentário ordinário para cada mulher que passasse! E, no entanto, ainda era bonito, e ela se orgulhava dele, mesmo tendo adotado essa mania de suspensórios, de muito comer, de contemplar aplicadamente coisas que lhe pareciam apenas tediosas — não dera para pintor de aquarelas? Oh, Tó, incapaz de malícia até em questões que clamavam por isso.

Na sua boca, num canto da qual voltava a apontar um pouco de margarina, o nome de R. era de uma pureza, de uma inteireza displicente que lhe fazia muito mal — como ele não se dava conta do veneno em cada letra? Subitamente, pareceu mais desperto, achou-a pálida, levantou-se do outro lado da mesa, veio beijar-lhe o pescoço. "Ai, me deixa, Tó...Não tenho nada...". Desapontado — porque ela sempre reagia bem ao beijo naquele ponto — voltou à sua cadeira, olhando-a com cuidado.

— Parece que anda doente...

— Quem?

— Ora, ele. Nossa, como você está longe!

Pela tarde, quando ele não estava — quando saíra para ver alguém na cidade, talvez passar pelo bar do Adolfo e rever R., o que aumentaria as descrições e fatos a trazer para casa — ela tinha o que fazer, mas as lembranças se impunham, vinham de lá de fora — da gaiola com o passo-preto que ele comprara porque alguém lhe dissera que era capaz de falar umas palavrinhas, do mamoeiro, da janela da vizinha — via nitidamente manchas na cortina bege -, de cada minúcia do visível, e espantava-se que tanta coisa indiferente pudesse conter tanta relação com o que sempre quisera bem secreto. Era como se, na verdade, todos os seus domínios tivessem estado sempre impregnados do que ele significava e o nome proferido por Custódio fosse o Sésamo a reabrir isso. O mundo ficava outra vez desfigurado em algo que era a um tempo ameaça e promessa, por quê essa luminosidade do dia nas serras, por quê essa coisa mais fulgurante na mera flor lilás da unha-de-vaca? Tudo remetia a R., aos dias em que, sabendo que o encontraria pela noite e que sumiriam para os esconderijos que ele improvisava, sentia que essas paredes, portas, janelas, o quintal, tudo se ampliava, passava a ser o cenário de uma espera, de um preparo.

Nascera ali, ali fora criada e, mais tarde, a casa fora presente de seu pai não para quem ela amara, mas para um futuro genro em que não vira defeito de espécie alguma.  Custódio sabia de uns namorados bem remotos o que ela quisera contar. O que ela pudera contar.

 

*

 

Sim, sim, era grave, era coisa mais ou menos sabida — e Dirce engolia mais um pouco do doce de cidra na colherinha. "Mas, pode ser exagero, porque até que está bem bonito, sadio. Cabelo branco, claro..." — mas baixou a voz para dizer: "Continua bebendo demais. Me disseram...".

Arrancara a informação da amiga com o mais distraído dos interesses, enquanto lhe passava a tigela onde o doce ainda estava quente. Primo da Célia, que a gente bem conheceu. Oh, aquela barba bem preta e aqueles olhos meio cinzentos, ele não era fácil... Lembra da história com a mulher do Riva? Foi a primeira vez que saiu da cidade, jurado de morte. Os dois na represa, lembra?

Assegurava a Dirce que as lembranças eram as mais distantes, isso foi quando, 67, 69? De repente, precisou livrar-se da mulher e, com um gemido quase grito, pediu para que saísse — e essa voz de mando, de impaciência, a assustou: não era a sua. "Vou levar um pouco do doce", a outra disse, sem pressa. Mal a mulher estava no portão, trancou-se no quarto lá em cima, rezando para que Custódio ficasse mais na rua, ficasse por tempo indefinido, e ela pudesse, sem vê-lo, lembrar-se.

 

*

 

Era coisa noturna, irrecuperável, das noites em que R. aparecia pela rua, saído do bar-restaurante amarelo vivo onde se juntava a uns amigos. Não tinha dúvida que, a uma certa hora, ela passaria pela frente do bar, afetando ridiculamente um desinteresse não mais que ritualístico — mais alguns passos, mais alguns quarteirões, e ele se livraria do que quer que estivesse fazendo para alcançá-la no escuro. Mal se falavam, e era isso o que mais a assustava: que nada fosse dito, que tudo estivesse compreendido, que tivessem ambos pressa, tanta pressa, rápido forçada a segui-lo — tinha a impressão de que ele começava a desabotoar-se por ali mesmo, encostado a muros e cercas, esgueirando-se. Nem iam de mãos dadas, fingiam-se estranhos, ele lá na frente: medo de que sombras, janelas, transeuntes adivinhassem.

A voracidade fazia com que tudo acabasse por ali — pasto, algum mugido por perto, as formigas que ele tinha que espantar das pernas. Reclamava, xingava o mundo, culpava alguns nomes por ser pobre, por não ter um carro — o que permitiria fizessem como os outros, nas estradas rurais mais protegidas. Um dia, teve uma dada casa para si, mostrou-lhe a chave, orgulhoso, e ela seguiu-o. Um sobrado vazio, e, no alto, um quarto o mais sujo, onde ele estendera jornais. Não se rebelava. Olhava-o, reolhava-o — ah, o seu homem! — maravilhava-se em vê-lo nu debaixo de lua, depois da tarefa, fumando, orgulhoso de um modo tão seu, mas tão pungente que era como se ela pudesse orgulhar-se também. Ela trapo, ele deus, desciam uma escada sem corrimão em que ela sentia-se enorme, alta, medo de não poder, medo de escorregar, medo de estar ali toda, e ele descendo à frente, sem precisar de apoio algum. Ele por vezes, nupcial, tomava-a no colo, descia-a, rindo muito quando ela estremecia ouvindo coruja por perto, precisando fazer de novo no patamar, tanto se excitava com o medo dela, tanto venerava seu próprio papel. Ela tinha que lhe dar tudo, todos os modos — que não sobrasse um só canto de onde pudesse olhá-lo com alguma reserva. 

Era assim, e terminou no dia em que ela lhe disse algo inevitável — e sentimental. "Você nem mesmo é muito bonita. Tantas por aí!" — riu.

 

*

 

Na cama, as mãos na cabeça afundada nos seios, lembrava-se: procurar passar, sempre, pelos dois lugares — o bar-restaurante amarelo e a casa de um arredor cada vez mais aderido à cidade — mas o primeiro fora transformado em farmácia e a casa tivera tantos moradores que pouco restava do que tinha conhecido — afinal, fora coisa de duas semanas, mas a janela, o quarto do alto, aquele, sim, muito modificado, estava lá. Pensara em fazer Custódio comprá-la, quando ele se ocupara de algumas tramas imobiliárias — tudo fugaz.

Doente de quê? onde o corpo fora afetado? Desgraça que Dirce soubesse tão pouco. Fechava os olhos, concentrada em lembrar-se. Vergonha e beleza de ter conhecido tudo, cada parte, cada nojo sacrossanto, os pêlos, os braços, a nitidez das formigas que, do olheiro do pasto, subiam a pontos de onde ele as expulsava com um palavrão. Mordia o nome e o dizia todo para si, suspirando, um desejo de vê-lo retornando e implorando qualquer coisa — caso de repossuí-la, caso de morrer — que ela recusaria. Ele bem podia ter feridas, algumas, vivas, ruínas dessas que lancinam só de estarem expostas ao ar, e ela teria prazer em tocá-las, sabê-las, senti-las completamente incuráveis. Faria cortes bem precisos e fundos onde ele pedisse ungüentos, lambidas, beijos.

 

*

 

A voz de Custódio lá embaixo. Ia acolhê-lo, cuidar da janta. Ele estava alegre, perto da gaiola, estourando de vontade de contar a ela que o passo-preto aprendera a dizer "Tó": "Juro, ele diz, ele diz!". Inútil coçar piolho, pegar aqui, empurrar mais comidinha no cocho - não ia repetir agora, diante dela.

Ela o olhava. Nunca se parecera — nem remotamente — com quem importava, e, a um pedido dela, deixara barba, mas, a substituição fora a menos convincente.

— E o bar do Adolfo? Foi lá?

— Fui sim.

— Muita gente?

— O de sempre. — Ele se ocupava de escolher uma laranja na fruteira.

Não tinham muito que conversar, mas ele repetira o beijo no pescoço, sim, e agora fizera o efeito esperado. Ela apanhava pedaços de mandioca, juntando carcaça de frango, para a sopa — que a noite ia ter friozinho. Alegrava-se. Pensava que poderia, amanhã, passar por lá, pela casa, olhar o pouco da janela original que ainda podia ser desfrutado. Pensava que Dirce acabaria por ter o que contar — retornos como esse acabam em túmulo, e ela leria o nome nos necrológios do semanário com uma atenção esmerada. Cirrose, o horror que fosse. Não morreria sem sofrer muito, muito, e ela quereria um relatório disso, completo, como quem nada quisesse. Dirce sabia compactuar com sua necessidade de colher sem perder a decência.

Enquanto isso, ele estava por ali — ele todo, com ós e érres — no ar entre ela e o marido. Um pouco de comida, e, com jeito, Custódio o mencionaria outra vez. Pronunciado por ele — ah, só um portador! — passava por uma transmutação que a deixava envergonhada. E lhe dava um prazer que, como esse, nunca conhecera.

 

 

[Este conto faz parte do terceiro livro de contos do autor, inédito]

 

 

 

setembro, 2007

 

 
 
 
 

Chico Lopes. Escritor, tradutor, crítico de cinema, jornalista, autor de Nó de sombras (São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2000) e de Dobras da noite (São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2004). Publicou também nova tradução do clássico A volta do parafuso, de Henry James (São Paulo: Landmark, 2004).

 

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