Bem-aventurados


Bem-aventurados os pintores escorrendo luz
Que se expressam em verde
Azul
Ocre
Cinza
Zarcão!
Bem-aventurados os músicos...
E os bailarinos
E os mímicos
E os matemáticos...
Cada qual na sua expressão!

Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata linguagem alheia...

A impura linguagem dos homens!

Elegia


Há coisas que a gente não sabe nunca o que fazer com elas...
Uma velhinha sozinha numa gare.
Um sapato preto perdido do seu par: símbolo
da mais absoluta viuvez.
As recordações das solteironas.
Essas gravatas
De um mau-gosto tocante
Que nos dão as velhas tias.
As velhas tias.
Um novo parente que se descobre.
A palavra "quincúncio".
Esses pensamentos que nos chegam de súbito nas ocasiões mais
........................................................................[impróprias.
Um cachorro anônimo que resolve ir seguindo a gente pela madru-
......................................................[gada na cidade deserta.
Este poema, este pobre poema
Sem fim...

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
— para que possas, enfim, profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.

Canção do Poeta Difícil


A minha pena é áspera; a folha, que nem zinco!

...........Onde a cantiga tão doce
...........Que o meu amor cantava?

As palavras ficam-me nas linhas como urubus plantados na cerca.

...........Quando eu era um passarinho
...........Morava numa gaiola
...........Que eu pensava que era um ninho...

Mas até onde, até onde eu vou puxar esta carreta?!

...........Quando eu era pequenino
...........Não usava ponto-e-vírgula...
...........Onde o arroio tão puro
...........Que de tão puro sumiu?

Algumas Variações Sobre Um Mesmo Tema


I

As vacas voam sempre devagar
porque elas gostam da paisagem.
Porque, para elas, o encanto único de uma viagem
é olhar, olhar...


II

Partir... tão bom! Mas para quê chegar?


III

O melhor de tudo é embarcarmos num poema...
Carlos Drummond, um dia, me pôs de passageiro num
.......................................................[poema seu.
Ah, seu Carlos maquinista, até hoje ainda não
......[encontrei palavras para agradecer-lhe...
Mas que longa, longa viagem será!


IV

E das janelinhas do trenzinho-poema
abanaremos para os brotinhos do futuro.
Ui, como serão os brotinhos do século XXIII,
.................................[meu Deus do Céu?
Pergunta boba! Em todas as épocas da História
um brotinho é um brotinho é um brotinho...


V

Tenho pena, isto sim, dos que viajam de avião a jato:
só conhecem do mundo os aeroportos...
E todos os aeroportos do mundo são iguais,
......................[excessivamente sanitários
e com anúncios de Coca-Cola.


VI

Nada há, porém, como partir na lírica desarrumação
....................................[da minha cama-jangada
Onde escrevo noite a dentro estes poeminhas com a
...................................................[esferográfica:
a tinta — quem diria? — é verde, verde...
(o que não passará, talvez, de mera coincidência)

Noturno Arrabaleiro


Os grilos... os grilos... Meu Deus, se a gente
Pudesse
Puxar
Por uma
Perna
Um só
Grilo,
Se desfiariam todas as estrelas
O Tamanho da Gente


O homem acha o Cosmos infinitamente grande
E o micróbio infinitamente pequeno.
E ele, naturalmente,
Julga-se do tamanho natural...
Mas, para Deus, é diferente:
Cada ser, para Ele, é um universo próprio.
E, a Seus olhos, o bacilo de Kock,
A estrela Sirius e o Prefeito de Três Vassouras
São todos infinitamente do mesmo tamanho...
Liberação


Que bom deveria ser o mundo antes do nascimento de Cristo
E da Rainha Victória!
A única esperança que nos resta é a desse novo século que aí vem,
Liberto, sem injunções de espécie alguma.