Tanto medo

 

a Charles Bukowski

 

agora é noite

em rio branco

ocidente do brasil

centro ou fundo

da amazônia

sul-americana,

tenho medo de

apagar as luzes e

morrer do coração,

de fechar as portas

e dormir,

de acordar e

ver o quarto

cheio de água,

tenho medo

de olhar nos olhos

de qualquer um e

enlouquecer.

medo de olhar o

horizonte e

perceber que é

um papel de parede

sem

fim,

medo de escutar

cazuza e ser

preso por plágio,

medo de matar

pessoas

e estuprar mulheres,

medo de ir ao teatro

e virar ator o

resto da vida.

tenho medo de tantas

coisas pequenas e

de tantas coisas grandes,

que tenho sorrido

e olhado tantas

pessoas previsíveis,

medo de perder

minha noiva

e não escrever um

livro,

medo de ser igual

a alguns amigos

acreanos

medíocres,

medo de sair

atirando em pessoas

com meu revólver

de brinquedo,

medo de me perder

tentando me encontrar.

medo de perder

a seção das 10

e me endividar

comprando livros,

de olhar os mortos

e querer comprar

o caixão e o defunto.

tenho medo

de enterrar os meus

mortos

e me jogar à

cova,

de seqüestrar

uma criança e

pedir resgate,

medo de ler bukowski

e me embriagar,

tomar álcool em gel

e dormir parar sempre.

medo de tirar

a roupa,

de ficar com frio,

de me perder

numa estrada deserta

rodeado de silêncio

sem poder gritar.

medo de perder

a língua

e calar,

de perder as

mãos e

me esconder,

de perder minhas

asas e

cair,

te perder e

me esquecer.

medo de ficar

barrigudo e

engordar mais

30 kg,

de perder 20 cm

e me tornar

baixinho, de

andar de ônibus

o resto da vida,

perder os olhos

e morrer afogado.

tenho medo

dos poetas do

escuro,

que despertam

em saltos mortais

e cartolas ao tango,

poetas noturnos

silenciosos,

ocultos e

esquisitos.

medo de morrer

e ser achado

num rio,

ser perdido no mar,

ser enterrado

nas areias

ou ser esquecido

em casa

sem ninguém notar

ou dar falta

daquele homem

que faz poemas.

 

 

 

 

 

 

Horizontes

 

a miséria conclui os

horizontes sem dentes

sobre o vazio da linha distante

das ruas estreitas de Rio Branco.

outro canto revitaliza o homem

sob o sol ocidente

sobre o vazio: o trabalho

 

outro encanto forma-se

com esse horizonte de pegar

com as próprias mãos,

algo que não foge com o

tempo das ruas ou

o exílio das instituições

 

:

 

a dignidade

 

como um órgão suturado

sobre o lado esquerdo do

peito,

um acessório alado

de viagens ao infinito

surge e se pode tocá-lo:

 

o coração

 

a miséria conclui os

homens

mas não conclui os

corações humanos:

o infinito é um

objeto

e tem forma de

coisa alguma

 

 

 

 

 

 

Sobre cavalos

 

ao meu cavalo Dadain

in memorian

 

tenho estado em exílio

nestes anos todos

resolvendo questões que

não interessam

à raça,

contudo, amam-me

enquanto sob as árvores

góticas dos antigos e ossudos

cavalos

permaneço casulando o

ódio

seus fragmentos e

mitemas:

estruturas.

ainda lembro do velho

animal: couro e osso.

eu corria em seu lombo e

nas tardes existenciais de abril

acariciava o tempo sob

o sol frio do

fim.

ele corria na

distância,

/único ente que não

odiei

ao menos uma

vez./

 

 

 

 

 

 

Objetos, corpos

 

a noite tem objetos

e um corpo particular

 

e sob o tato seco

das formas geométricas

percorro a pele nua

que evidencia

uma letra

 

sob os meus elementos

esqueletos desconexos

consumindo carne

confio nos objetos

gelados das frestas

fragmentando

o tempo /o espaço

componentes desossados

da poética dos vermes

 

a noite tem um corpo quase virgem

feito de água e vidro

que evidencia uma letra

uma forma de poética

configurada abismo

 

 
 

Ecce Homo

 

a Eduardo Lacerda

e Izaias Feitosa

 

poetas não são pétalas

ou flores que num sopro

desfolham-se sem gozo

 

poetas não são estetas

ou ramas que na terra

entrelaçam-se em guerra

 

poetas não são cactos

ou nuvens que no céu

arranjam-se num véu

 

poetas não são socos

ou ocos que no peito

constroem-se sem jeito

 

poetas são como fortes

edificados pedra a pedra

na poesia que os encerra

 

 

 

 

 

 

As horas

 

1

 

estou insatisfeito com meu corpo e com minhas metafísicas,

ambos sem arranjos estruturais

ou qualquer sedimento ou concreto

que alivie minha carga

ou o silêncio dessas horas ingratas.

 

2

 

num rop como num exército

e meu corpo desestrutura-se,

fico relacionando pedaços sobre o solo

enquanto o tempo limitado não evapora.

 

3

 

como uma criatura predisposta

a entender outras relações dos homens

persigo-me a mim mesmo

num desencanto cruel e solidário.

 

4

 

ab(sinto), sobre a mesa

as minhas pequenas drogas:

 

a tal da cerveja negra.

 

 

 

 

 

 

Luta corporal

 

no exílio as pontas de faca

no chão os riscos de vida

doce manhã de dia claro

pobre ferida viva crescida

:

na noite adentro da carne

silêncio nos muros tardios

entrando nas frestas fechadas

na superfície do chão vazio

:

são corpos/filetes do acaso

navalha nadando em sangue

comunhão entre rosas e facas

no azul horizonte ao longe

 

 

 

 

 

 

A vida como ela é

 

Eternas mulheres que caminham na chuva,

concentradas pelos meus ossos e olhos,

circundam-me paradas e secas,

mandíbulas cortantes

sobre corpos com cabeças que vagam,

vagam

e olham-me certeiramente furando

esses pontos cinzentos que absorvem pouca luz.

Passam nuas, ora vestidas, comportadíssimas e maquiadas

esbanjando inocentemente olhares angelicais.

A chuva em minha cabeça cai,

agora são putas.

Agora se embriagam sem receio

e ostentam cigarros (sorriem para mim e mostram o seio).

Sorrio.

Voltam a ser anjos!

 

 

 

 

 

 

Poema de amor

 

a Josiane Costa

 

Que posso eu? Olhar-te nessa noite...

Depois que a estrela se foi e ficou o negro do céu

essa lembrança tua vem como jamais veio.

É tudo tão vazio e tudo tão sem jeito

que pareço andar feito criança meio ao quarto escuro

tropeçando em tapetes e chorando pelos cantos.

E é noite e a noite faz-se intensa e cruel

como o ruído dos fantasmas que vagueiam carentes

procurando um ombro largo para chorar a morte.

Te amo. Descobri... E é tão bom.

Que me vejo olhando por aí os detalhes do horizonte

e cantando uma canção de amor antiga que aprendi com minha

mãe...

 

 

 

 

 

 

A uma moça sem dentes

 

a Ocimar Leitão

 

Para onde foram os teus dentes de leite?

A fissura em teu peito me faz ver o destino do homem,

te conduziram a todos os lugares

em que eu não poderia ir.

E o segurança da festa

deixa-te entrar. Não é fascinante?

A moça desdentada chora em casa,

mal sabendo que é igual a todas as moças.

Rever o outdoor do Boticário,

um frêmito, vê as finanças,

é melhor não. Certo espectro vem-lhe noturnamente

e a faz sorrir com um riso negro.

A moça sem dentes tem seios bonitos

e o homem sem amor tem o sexo quente.

E eu que pensava que não existia mais poesia

vi um bebê azul nos braços da moça,

sem pai, mas feliz

mal sabendo que a vida é quimérica

e a sociedade é um organismo em decomposição.

 

 

 

 

 

 

Cabeças cortadas

 

as mãos e a cabeça sujas

em que parede ou grama encostá-las?

em que cidade guardá-las

da decomposição

dos ossos e dos homens?

qual o horizonte ou perspectiva

entrever o caso e o fato

já é impossivel andar

entre os homens e

não se sujar ou querer

de repente morrer.

minha culpa de corpo

de carne e de sangue

de alma e de nome

pequenas palavras

que não valem muita coisa

ou

//nada/

/.

 

 

 

 

 

 

Nova canção do exílio

 

O sabiá resiste no arranha-céu,

distante.

Quase morre de dor...

Quase morre de frio...

 

As palmeiras devem ter ido... com fome

...com frio. Para onde?

Já não gorjeia o mar.

(nem me fale do rio)

 

As pessoas perderam os nomes.

As mulheres são sombras na memória.

As lembranças são ruídos de carros.

O sabiá resiste no arranha-céu.

Com certeza, Deus, está com frio.

 

Daqui de longe a saudade areja a casa.

A palmeira é vista em fotografia.

Ah! Saudade. Dor. Agonia.

Meu relógio é o tempo e quase pára.

Se não fosse noitinha pelas ruas.

Se a lua não estivesse pra cair.

Se ali tivesse um carro bonitinho.

Juro, terra, eu iria para aí.

 

Para ver o arranha-céu de concreto

Que quase mata o sabiá de frio.

A vida é vivida numa saudade

como as águas que passam pelo rio.

O resto é mistério para todos,

pro sabiá — um desafio.

 

 

 

 

 

 

Poema pela janela

 

Eu quero chorar pela fresta.

As estrelas falam acasos

em meus ouvidos.

Desato a gritar para os astros noturnos

pelas esquinas das ruas cinzentas.

 

As nuvens encobrem teu rosto

ó lua perdida,

fecunda lástima dos meus desejos.

Olho-te como se pudesse existir horizontes

em rostos brancos no passado.

 

Grades metálicas nas casas,

não posso fugir,

corro corpo pálido nu,

minha amada dorme em silêncio

entre músicas e garoa.

 

Bebo um cálice de lágrimas e açúcar

no orvalho de folhas nas árvores silenciosas.

Amo e sou feliz em quase tudo,

apenas percebo

que o caminho que sigo é sem fim

e que não consigo olhar o horizonte e voar.

 

 

 

 

 

 

Cemitério

 

O que reside aqui

nesse armário fechado?

A utopia, a cria

o escarro, o espasmo?

O meu cheiro, o medo

da noite, o coice

de um cavalo brabo,

neste armário

o que reside fechado?

 

Meu peito lacrado,

a luz dos carros

pela madrugada?

O gume da enxada

lenta, sobre os ossos

e a carne?

 

O que habita aqui

nesse espaço fechado?

 

O que reside aqui

nesse cemitério parado?

Que encantado

freqüentou o gosto

de todos os macacos

e a selva pelas ruas

e orgasmos ante a lua,

num êxtase abstrato?

 

Frente às prostitutas

amadas virgens

de corações sublimes

inocentes e intactos

e uma pele cortante

que deixa o sangue

escorrer pelo espaço.

 

O que reside aqui

nesse cemitério trancado?

 
(imagem©mateo cerezo)
 

 

 

Márcio Bezerra (Sena Madureira/Acre, 1984). Publicado nas edições 21 e 25 da Antologia de poetas brasileiros contemporâneos e na edição 1 da Antologia novos talentos da crônica brasileira, da Câmara Brasileira de Novos Escritores. Participou do Projeto Identidade, foi publicado no jornal O Casulo, de poesia contemporânea, e na edição 18 da revista Outras Palavras. Vive em Rio Branco. Edita o blogue Mentiras Perfeitas. Escreve no Desterro21.