(um beijo vendido, outro pela metade),

as gôndolas de praxe e Carla Camurati

linda em 1982.

 

 

para Mara Coradello

 

 

As  donas  de  casa  se  profissionalizaram.  Ao  contrário  das  putinhas — elas,  nossas mães —, não beijam na boca. O que acontece com as putinhas?

Sabe, Barletta, fui acusado de ter o pau macio e de usá-lo com doçura. Aí eu disse que não, nem tanto. A verdade é que não tenho a libido de outrora — nem a ciência — para escrever sobre a genealogia das bucetas, mondongos e cus comprados e me recuso, outrossim, a pagar (nem que fosse pra mamãe) para beijar boca de puta. Isso porque flerto com abisminhos triviais e me apaixono por lésbicas no final do mês de setembro e começo de outubro, sou um cara arbitrário, regrado (embora deletério) e, apesar de tudo, acredito em Márcia Denser, Reinaldo Moraes e primaveras. Ética é uma coisa que o sujeito — aprendi nas gôndolas do Carrefour — cheira, mede, usa, evita e descarta conforme o prazo de validade e a necessidade que imagina ter ao apaixonar-se por si mesmo. Assim, diga-se de passagem, é que o diabo valoriza os ingressos na bilheteria e penhora as alminhas em seus respectivos escaninhos e baciadas, comme il faut. A crepitação e o tempo de cozimento ficam ao gosto do freguês — eu, por exemplo, escolhi ser untado aos solos de bandoneón e dissipações em praças impossíveis, barbitúricos fora de moda do tipo benzedrina (elixires paregóricos...) e batatinhas sabor queijo provolone. Jamais, porém, cogitei — nem quando arremetido em espirais pela tesão mais cabeluda — em beijar boca de puta mediante paga. A fruição do prazer, como queria G. K. Chesterton (ele mesmo de joelhos, vergado pelo próprio peso), requer não somente eletricidade, mas diciplina e, creio, principalmente, distância da boca das putinhas. Os lácteos e colostros, bem como os produtos derivados da melancolia, estão, estiveram e estarão diabolicamente e desde sempre — como veremos logo em seguida, Barletta — dispostos em suas malditas, sedutoras e eternas gôndolas. Ah, meu amigo.

Assim, confesso que meio de supetão e encantado, vim parar no Rio de Janeiro. Imagine só, Barletta. Me venderam um beijo. O que eu, diferente das minhas batatinhas sabor queijo provolone e dissipações, poderia ter feito? Sou um cara xucro e seminal. Só isso, Barletta.

Tá certo que às vezes é divertido você não saber qual a discrepância entre a putinha bem sucedida e sua irmã, Barletta, devidamente matriculada numa dessas fábricas de diplomas da vida. Tudo bem. As duas, enquanto cinderelas — e aqui vai meu palpite — querem beijar na boca e chupar os caralhos de praxe, a diferença sutil (?) — vos digo, meu caro — é que embora ambas carreguem a maternidade e o germe das prendas domésticas incrustados nos fundilhos da alma (a despeito mesmo das gôndolas do Carrefour), sua irmã, aquela pobre coitada, branquela e comedora de disque-pizza, está devendo um ano e três meses de faculdade. Taí. Não ética ou cirurgia plástica que dê jeito! O que faz a diferença — evidentemente que em favor da putinha — são as porras dos carnês atrasados que a gordinha da sua irmã, Barletta, jamais vai pagar. O resto — a música que elas ouvem, as roupas e conversas ao telefone, até os olhos revirados na hora de negociar o beijo — é tudo igualzinho: o mesmo shopping, o programa de computador e as sodomas às quais inopinadamente são aniquiladas. Os carnês atrasados, Barletta, são uma espécie de purgatório impagável. O inferno não existe nem pra sua irmã nem pressas putinhas que beijam na boca. Mas isso é irrelevante. A classe média — vamos ao que interessa — entrou nos eixos via boquete. Um ajuste, aliás, merecido e há muito ensejado desde os tempos das soirées dançantes de Sylvio Mazzuca & Orquestra, naqueles tempos dourados.

Ademais, os flats — a descontar beijos e aniquilamentos — oferecem serviços de putaria e conforto que qualquer mãe, hoje (ou pelo menos as responsáveis, aquelas que NÃO beijam na boca), desejaria para o seu filho ou trocaria, sem pestanejar, por seus 25, 35 anos de fracasso no casamento. Até aí beleza. O problema é não ter uma coisa, o dinheiro, para trocar por outra, a felicidade — e é exatamente nesse ponto que irrompem dona Zíbia G. & congêneres e VENDEM — agora você entende o que é sobrenatural, Barletta? — a quantidade de livros que EU deveria estar vendendo. Ética, meu caro, é uma biscate que não existe.

Mas logo no meu primeiro dia no Rio faltava alguma coisa na teta da mina que eu fodia e aí ela quis me beijar na boca e eu perguntei: "O que aconteceu com o bico da sua teta?".

A mina saiu de cima da minha pica (cavalgava...), virou-se pro lado do abajur e se pôs a alisar um bordado roxo de Ibitinga que pendia do criado-mudo. Eu, a despeito do emjambement interrompido e da minha falta de habilidade em lidar com criados-mudos, paisagens e descrições eletrodomésticas em geral, insisti: "E aí, gata, tá faltando um bico, qual é o negócio da sua teta?".

Um carcará sobrevoou o moquifo escapado de um deserto morto e se escafedeu pras bandas da praça Saens Peña. O céu — evidentemente cúmplice — ameaçava peidos sufocados. "E aí, gata?".

Ibitinga, famosa por seus bordados, é uma das muitas ex-cidades tranqüilas e pacatas do interior de São Paulo que exporta cabeleireiras e gente profissionalmente desqualificada pros quatro cantos do planeta e dista poucos quilômetros de Barra Bonita, outra cidade na bacia do rio Tietê, igualmente famosa por suas eclusas, pelas cabeleireiras em fuga e responsável por minha nostalgia pré-transamazônica. Uma obra ruminante, essa eclusa, Barletta — se formos ter em conta a orientação grandiloqüente de um país de merda como o nosso e que, apesar das jequices épicas e talvez por causa delas e apesar de tudo, funciona.

Mas tava faltando um bico numa das tetas da mina. Quando ouvi um sussurro vindo lá dos arrasta-pés desse interior parabólico e/ou "por quilo" onde você, meu caro, além do turismo bovino, pode adquirir lãs e malhas com até 50% de desconto no cartão de sua preferência e já tem incluídos a passagem de ônibus executivo, alimentação e hotel duas estrelas, ISSO, Barletta, e os agrados para a fiscalização, enfim, dizia-me o seguinte ao pé d'ouvido:

— É de "nascência", gato.

Veja só, meu amigo. Ela, a putinha sem um bico numa das tetas, disse e fez questão de repetir essa ignomínia para mim, toda dengosa. Tive que amolecer o pau. Por acaso, Barletta, você já ouviu falar de uma cidade chamada Sertânia?

— O quê?, então você não é de Ibitinga?

O carcará, Barletta, se escafedeu pro lado da Saens Peña, via Ibitinga ou uma porra de Sertânia que eu não sei onde fica. A mina alisava o bordado roxo. Mas como é que alguém pode nascer sem o bico de uma das tetas, alisar bordado de Ibitinga, querer me vender beijos na boca e cavalgar minha pica ao mesmo tempo?

— Chama o gerente, por favor.

Resolvi reclamar. Expliquei ao cafetão que a mina não era de Ibitinga e que não tinha o bico de uma das tetas e que, entre outras falhas, não sabia o que lhe faltava.

O sujeito fez um desconto especial pra mim. Sabe, Barletta, saí de lá me sentindo um eleitor de Orestes Quércia, o tocador de obras. Tô intrigado. Ao longo do tempo venho "trabalhando a minha sensibilidade" e, desde aquele curso de origami e escopetas, noto que os matizes da minha aura têm alguma coisa a ver com a lua cheia e a orientação de Vênus no meu segundo quadrante em escorpião. Hoje, sem receio — e com uma visão holística da coisa (é sério, Barletta!) — e apenas com um bico de teta para lembrar, posso dizer que sou um sensitivo a contragosto. Quer dizer, nem tanto. Ou serei um intuitivo? Bem, não importa.

Vale que tenho um discurso pronto e um caráter no lugar do repertório (e vice-versa) — já disse isso... —, e vale, sobretudo (né, Barletta?), que aprendi a não cuspir no meu interlocutor e que às vezes me enche o saco repetir sempre a mesma ladainha e então eu começo a gaguejar para dar mais veracidade e emoção ao meu discurso — isso também funciona.

Algo, meu caro Barletta, que vai além da canastrice e das triviais e ululantes aberturas da prestidigitação. Isto é, sob os auspícios de escorpião na última casa de Vênus, a terra em transe e a gambiarra que fiz com o meu caráter influenciado por São Jerônimo da Pituba, consegui separar o esperma da melancolia — num átimo pérfido e milagroso — e esporrar sem levar maiores prejuízos. Ou seja, depois da punheta a contabilidade que se estabelece é a seguinte: "legal, né?, economizei tantos reais me punhetando". Depois, Barletta, perco o controle e essa gambiarra (ou esse maldito milagre que é o gozo) encerra-se invariavelmente em crises de choro, dedo no cu e Piazzola.

      São os meus desdobramentos, Barletta.

Virou nisso. Um cara xucro e seminal desembestado no Rio de Janeiro. No meu segundo dia, entendi que o Cristo ficava prum lado e o Pão de Açúcar pro outro. Mas não conta isso pra ninguém, Barletta. Em seguida, catei uma mina em Copacabana (com os devidos bicos nas devidas tetas) e a levei pruma livraria onde fiz questão de presenteá-la com meu livro de estréia: Um pouco de Mozart e genitálias, e tive — o que raramente acontece — o bom senso, Barletta, de dizer que aquilo fazia "parte do meu show" e advinhei o passado, o presente e o futuro da gata por eliminação e por causa dos peitões dela: "são múltiplos os critérios para as escolhas... que são múltiplas, baby". Aí, depois dessa canastrice, ela me deu meia língua pra chupar e a gente mais se alugou do que se arretou lá no posto 6, perto da praça Sara Kubitschek, onde — segundo atesta Millôr F. — inventaram o frescobol.

Ops! Desvia do cocô do mendigo, amor.

Aquilo tudo — como diria Reinaldo Moraes no apê da Ledusha — "debaixo do sovaco direito do Cristo Redentor". Embora o meu Cristo não estivesse exatamente no mesmo lugar do redentor do Reinaldo, era primavera e começo de setembro no Rio, vinte e um anos depois do "Tanto Faz". Eu, caipirão, queria conhecer o Copacabana Palace, onde em tempos idos Ray Coniff e recentemente Ray Coniff haviam se hospedado.

Um pouco antes era sábado e final de tarde — entre o posto 4 e a rua Duvivier. Ouvi uma batucada em deslocamento da praia que passava pelo apê do Ferreira Gullar via Ítalo Moriconi e ia em direção à Barata Ribeiro, pro metrô. Aí, Barletta, veio outra batucada e trouxe uma horda de crioulos apocalípticos a reboque. Eu não quis — em princípio, Barletta — fazer minhas associações. Mas eu e a minazinha recém-lambida (no contrafluxo do funk, digamos assim) acabávamos de sair do caixa vinte e quatro horas, na avenida Atlântica. Lá, Barletta, naquilo que algum dia devia ter sido a praia de Copacabana, pairava uma atmosfera de genocídio e maresia que suprimia pesadamente o tempo e comprimia as almas em reto-baixo e era pior do que decadência porque, embora pesada e vagarosa, não estava parada, mas escorria — a lava dos baques —, vinda de um lugar em direção a outro, enfurecida e arrastando carrinhos de bebê, e tudo o mais que poderia ter sido esperança, azul e mar, engolfava aposentados e enfermeiras, o tempo e o espaço e, enfim, o cerco (eu lá, saindo do banco vinte e quatro horas com a mina recém-lambida) estava inexoravelmente fechado — naquele instante, Barletta, quis ser uma uzi israelense para me defender do Sérgio Cabral, do Ruy Castro e do pôr-do-sol nas pedras do Arpoador, que fica — dizem... — logo ali, no final da avenida Nossa Senhora de Copacabana bem atrás do bingo pra quem vem de um sonho estragado, o meu, particularmente, desde as ressacas do Carlinhos Oliveira em 1970 até aquelas lambidas mal dadas no posto 6, depois de terem inventado o frescobol. O coração das trevas, Barletta, do tamanho de um coração de galinha e arregaçado a céu aberto para quem quisesse se arriscar debaixo do sovaco do Redentor.

Naquela primavera, Barletta, minha dieta consistia em cu fechado, bolinho de bacalhau — Sérgio Sant'Anna íntegro apesar de tudo —, outro chope aí e o caldo das negrinhas que sambavam no pé para alegrar o safári dos gringos vindos lá do primeiro e único mundo. Eu, aliás, fazia questão de me incluir nessa selvageria. Entrementes — volenti non fit injuria... —, o bonde do Tigrão dominava tudo, o Rio de Janeiro morria negligenciado em si mesmo e Ed Motta estragava mais uma canção, acho que era "Wave", do Tom Jobim.

Então eu e a minazinha subimos no primeiro ônibus e nos escafedemos pra Ipanema de mãos dadas. Aos sábados têm feijoada e caipirinha.

      Cuidado pra não pisar no cocô do moço que está dormindo na calçada, amor.

Domingo é dia de cozido. Os gringos e os canalhas em geral não se cansam de descobrir... essas merdinhas maravilhosas. Eu, da minha parte, antecipava o meu funeral e havia me empoleirado na esquina da Djalma Ulrich com a avenida Nossa Senhora de Copacabana. Aluguei um moquifão por três meses e adquiri um mau hálito de aviário pré bossa-nova já no quinto andar do terceiro dia pantográfico da minha estada no Rio de Janeiro. Do meu moquifo — sob o ponto de vista das cortinas pretas (sempre) — eu acompanhava canelas rodopiando, lá embaixo, no mezanino de um prédio redondo do outro lado da avenida, era uma escola de dança e eu também via um pouco dos joelhos das bailarinas quase na bifurcação das primeiras putas da noite e à direita de quem pensava em suicídio. E, logo atrás desse prédio redondo, umas duas quadras até chegar em cima do túnel da Barata Ribeiro, tinha um morro no meio do caminho, e de lá do alto, fuzis e metralhadoras se alternavam aos vômitos como se arrebentassem as sobras do pôr-do-sol ou despachassem pro céu uma cidade inteira junto com as primeiras estrelas da noite crivada de balas. Uma enxurrada, Barletta, que fazia "o contrário, outra vez" pro meu desalento e em direção à lua recém-dependurada e até, finalmente, cobrir de mortalhas aquilo que poderia ter sido a bosta de uma poesia. Ou um começo de noite no Rio de Janeiro. Tanto faz. Isso, de certo modo, era a música dos tocos e canelas do baile silencioso que eu não ouvia quando cogitava sobre Myrna e o que eu poderia ter feito para que ela acreditasse na minha solidão e nas minhas paisagens e nostalgias de tocos e joelhos, dos outros e pela metade, de quem chegou depois da festa. A praia de Copacabana tem mau hálito. E foi no travo do amargo da garganta (com o tal bafo de aviário que sobe e desce elevadores pantográficos) que aprendi a desviar do cocô dos mendigos e a fazer associações românticas envolvendo os peitões da Carla Camurati, Nasi, e eu em Copacabana de perfil, entornando chopinhos. Então, imaginei um embate entre o vocalista do Ira! E uma platéia de adolescentes idiotizada pelo doutorzinho da MTV. Nasi tentava explicar, em vão, praqueles idiotas o que era Rock and Roll e o que eram os peitões da atriz em 1982 — um treco caído, desnecessário como os adolescentes e constrangedor decorrido todo esse tempo e eu, assim meio que barrigudo e bêbado, tive álcool o suficiente e fiz minhas associações esquisitas ou quis entender que depois de vinte, trinta ou quarenta anos de babaquice estava tudo irremediavelmente perdido. Fuck you, baby.

Aí, Bortolotto, quer dizer, aí, Barletta, a gente chegou em Ipanema. No "contrafluxo do funk", como resolvi chamar aquela merda saindo da praia em direção ao metrô. Eu falava pra minazinha alguma coisa sobre as auroras de Paulo Mendes Campos e me perguntava o que é que "aquilo" (meu contrafluxo em particular) tinha a ver com a leveza do poeta e a Roma Negra mal-ajambrada pelo Darcy Ribeiro.

Tudo a ver. A antropologia ou aquilo que os baianos usam para enganar a gente (penso nos falecidos livros do Jorge Amado e no autismo babão da Zélia Gattai) sucumbia à realidade do Jardim Ângela. Hoje, Barletta, essa impostura virou, no máximo e com muita boa-vontade, souvenir para mau-caráter manipular deslumbramentos ou dar a bunda. Basta ver as porcarias que o Ferréz escreve ou andar de ônibus por aí para entender que a alminha brasileira não vingou.

— Fudeu.

Quem entende de compra e venda de negrinhas, almas vexadas, loteamentos na periferia e comércio fast-food de acarajés, quem entende disso, Barletta, é pastor da Igreja Universal do Reino do Edir: o resto são crianças putas e o Brasil em volta, caindo aos pedaços. Taí, Barletta. É o que tenho para chamar de antropologia. Um cara como eu, que anda de ônibus por aí, não tem como escapar ao inferno tosco da verdade. E foi assim, fugindo dessa verdade tropical, odara e criminosa, que chegamos a Ipanema. Aí eu disse pra minazinha:

— O insuportável só existe uma vez, baby (com exceção do Ed Motta, fiz a devida ressalva, é claro).

Ela pegou na minha mão e eu me senti um racista enternecido pelas auroras e pela intolerância, quase um Hitler misturado com o autor de "Ossi di Sépia" — tratava-se de outro contrafluxo, Barletta —, todavia sem os molhes e os penhascos de Montale, porque estávamos perto do posto 9 e nós (mais ela do que eu?) não devíamos ter cometido aquele beijo pela metade.

Mãozinha fria, a dela. Em seguida, Myrna escreveu o telefone no guardanapo, "Myrna Corelli", e eu fiz questão de joga-lo contra o vento: na direção sul, para dar um clima de deserto de Mojave na favela do Vidigal — e para homenagear John Fante bem na hora em que o Hotel Marina acabava de acender e eu e "Myrna, a garota do guardanapo", meio que sem perceber, cantarolávamos umas canções da chupa-grelo mais talentosa (depois da Ângela Ro Ro, é claro) da música popular brasileira. Um treco bonito. Mas não conseguimos beijar pra valer. Em cima da gente tava fazendo — como se isso "fazer uma lua", fosse possível — uma meia-lua turca e eu tive que estragar o esquema ao enfiar a mão no rabo dela depois de dizer que tudo o que eu lhe poderia dar era "solidão com vista pro mar". Myrna corcoveou:

— Por que você não enfia a mão na bunda da sua mãe? — foi o que disse antes de ir embora.

Então, Barletta, fiquei ali, ralhando com o ululante, sozinho e de frente para o mar. O ululante era o seguinte: fazia uma meia-lua turca, como se isso e a bunda da minha mãe fossem possíveis de frente para o mar, depois daquele beijo.

Das três minas que conheci no Rio, Barletta, essa, Myrna Corelli, foi a única que me rendeu medias-lunas e algo parecido com um começo de noite. As outras duas, além do sumiço, me deram um prejuízo de três a quatro dúzias de reais (dois livros autografados) mais uma porção de salaminho, camisinhas que usei a contragosto, azeitonas pretas e uns chopes sorvidos com gosto de desespero e complacência pela figura triste e obsoleta em que acabei me transformando. Ou seja, virei um tiozinho que vestes largas camisas havaianas e dá tiros no pôr-do-sol. Virei um tiozinho que escreve uns trecos bonitos. Às vezes exagero, Barletta.

Tem minazinha que acende o farol das tetas quando digo que "esse treco de escrever é uma maldição", larguei tudo e não tem volta. O aluguel do moquifo eu pagava com sofismas e a única lei era a do cheque especial da minha mãe (e a da gravidade, porque nossa conta sempre foi conjunta) misturada ou incorporada ao tráfico de tucanos e outras lorotas, uma cruzadinha de pernas e araras azuis na serra da Canastra — em tempos idos, querido(a).

    O diabo do caráter que compromete. Daí, Barletta, eu tinha que "limpar o 'espeto' entupido de sangue" (uma das muitas gírias do meu repertório "junk" fora de moda) e explicava pra elas, na medida de uma selvageria cuidadosamente distanciada, qual o procedimento para se "interromper" a vida de um capangueiro inconveniente e outra vez misturava alhos com bugalhos, o passado com o presente (que era para valorizar a vidência) e também, Barletta, as iniciava no processo de decupação dos brilhantes para, logo em seguida, estabelecer a diferença entre a pureza das gemas e os melhores indícios, marumbés e caboclos, para encontrá-los. Nesse ponto, fazia uma pausa, retomava a cafungada e dizia pras minazinhas que, a despeito do isolamento no garimpo e da eventual disposição do cozinheiro em dar a bunda, dragas furiosas desviavam o curso do rio São Francisco para chegar às piçarras, e Marivone, a "greluda", conseguia assorear até cinco peões de uma só vez:

    — Sabe, baby, eu era uma espécie de xamã praquela gente. Um Rimbaud de Furnas e arrabaldes (etc., etc. enfim, Barletta).

    Ou um sujeito que mudava de signo conforme a necessidade e/ou a intumescência dos mamilos das minas e que não estava nem aí pras musas, endereços e paisagens. Isso tudo, porém, com doçura, cinismo, algumas reticências sob medida e deturpações generalizadas. Assim, Barletta, eu discorria sobre declives e a primavera das lésbicas, caprichava nas falésias e alcançava o ápice, veja só que situação curiosa (até para falar em "ambigüidade" eu fazia um tipo) ao abordar as grandes depressões... onde? onde? No Brasil meridional (?). Eia! A geografia mequetrefe da qual os momentos mais dramáticos, você sabe, e os mais ridículos, como os pontos cardeais — norte, sul, leste da p.q.p. e o oeste do deserto onde o Judas perdeu as botas —, me foram se não legítimos, úteis; tanto na retórica da vidência quanto na loteria dos mamilos. Se, por exemplo, Barletta, as auréolas inchassem no litoral norte lá pras bandas de São Sebastião, eu me obrigava a especular sobre restingas, marambaias e arquipélagos. Quanto às flores, meu caro: eu usava orquídeas, principalmente:

    — O corno é o último a saber — isto é São Jerônimo da Pituba segundo Abelardo e agora você pode ir abaixando a calcinha, meu amorrrrrr.

    Ah, meu amigo. Não consegui pagar o beijo e Myrna sumiu atrás das pedras do Arpoador. A partir daí escolhi acreditar em dissipações, solos de bandonéon e noites únicas e derradeiras. A extensão das carreiras cafungadas e das punhetas intermitentes somada aos sonhos-de-valsa em papel celofane e aos barbitúricos fora de época, imagino, devia ter alguma coisa a ver com isso — no meu contrafluxo, Barletta —, e minhas gambiarras prediletas, a bem dizer, acompanhavam esses e outros vagares relativamente brilhantes depois de um tempo desperdiçado (sempre é tarde demais) e em virtude do meu desalento, isto é, conhecendo-me como conheço — a cura e o perdão já não surtiam o mesmo efeito de antes —, eu perco/perdia ou estrago/estragava tudo aquilo que consegui ou cheirei a bem da verdade e apesar dos pesares.

    Ademais, Barletta, amanhã é feriado aqui na cidade maravilhosa e eu não vou conseguir me suicidar antes do meio-dia (o repertório, o maldito repertório... você me entende?). De qualquer jeito, isso, "o meu repertório" e a morte são escolhas que fiz e às quais me apliquei com esmero e dedicação e que, portanto, tenho a obrigação de levá-los — a morte: ainda tenho alguma coisa comigo, eu vou junto, sabia? — até o fim.

 

 

É isso aí, Barletta.

Um forte abraço do seu amigo e admirador,

Marcelo Mirisola, Rio de Janeiro,

18 de setembro de 2001.

 

(imagem ©luis pais)

 

Marcelo Mirisola nasceu em 1966, em São Paulo (SP). Bacharel em Direito, não exerce a profissão. Publicou Fátima fez os pés para mostrar na choperia (contos, 1998), O herói devolvido (contos, 2000), O azul do filho morto (romance, 2002), Bangalô (romance, 2003) e O Banquete (textos a partir de imagens de Caco Galhardo, 2003). Participou das antologias Geração 90: manuscritos de computador (2001), Geração 90: os transgressores (2003), organizadas por Nelson de Oliveira (Boitempo Editorial) e Putas, lançada em Portugal pela Quasi Edições (2002). Possui contos publicados em diversos jornais e revistas do país e publicou em capítulos a novela Acaju, a gênese do ferro quente na revista Cult (2000). Escreve crônicas no AOL. Não tem prêmios nem medalhas, tampouco se considera outsider.