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A sacada se eleva sobre os telhados encardidos do casario que se amontoa na ladeira. É janeiro, devia estar quente, mas uma chuva de dois dias deixou como lembrança um vento frio, ranzinza, forte o suficiente para vergar o talo das plantas que se agarram no beiral da maioria das casas.
O homem debruçado na sacada passou a adolescência no bairro, porém não se lembra de ter reparado naqueles arbustos aéreos, e acha engraçada essa constatação. Talvez não existissem na época.
O velho tosse no quarto.
Está sentado na cama, costas apoiadas nos travesseiros, e bebe água em goles curtos, segurando o copo com mãos trêmulas e micóticas.
O homem senta-se na poltrona e passa a mão pelo rosto. Sente um misto de cansaço e irritação. Tem em comum com o velho os olhos de um azul lavado e o nome. Sbignew. Pouco mais que isso.
Que horas sua irmã vai chegar?
O homem afasta a manga do paletó para descobrir, contrariado, apenas uma tira de pele mais clara que atravessa seu pulso. Na pressa, esqueceu-se do relógio.
Meio-dia.
O velho considera a informação por um tempo. Toma um ultimo gole de água e depois coloca o copo sobre o móvel, ao lado da cama. Então sorri.
Como é que agora ela arrumou tempo pra me visitar?
Ao invés de responder, o homem observa o quadro na parede. Um vaso de flores incrivelmente reais. Parece uma foto.
E quem vai buscar ela no aeroporto? Você?
Não. Ela vem de táxi.
O velho sai da cama e calça os chinelos. Está vestido com um pijama folgado, que acentua sua magreza.
Preciso mijar.
O homem se levanta e acompanha o velho por um corredor de assoalho rangente até o banheiro. E quando impede que ele feche a porta, os dois se olham.
Que ridículo. Eu ainda consigo fazer isso sozinho.
O homem ignora o protesto. O velho o encara um pouco mais e então se vira e começa a urinar. Jatos espaçados, que vão diminuindo de intensidade, até que cessam. O velho puxa a calça do pijama e ainda resmunga ao passar pelo homem, a caminho do quarto.
Ridículo.
Ele ajeita os travesseiros e volta a se recostar. O homem permanece em pé, ao lado da poltrona.
E aquela mulher, como era mesmo o nome dela? Emília?
O nome faz o velho arquear as sobrancelhas:
Ercília. Faz muito tempo que não vejo.
O homem se aproxima da cama, senta-se na beirada.
A Clara acha que é esse o problema, você devia arrumar uma mulher.
O que a sua irmã entende disso? Ela mesma não casou e descasou uma porção de vezes?
O homem pensa na irmã e se lembra da última vez em que se encontraram. Ela estava acompanhada por um sujeito de cabelo pintado e unhas brilhantes de base. Discutiam o tempo inteiro, sem o menor pudor, na frente de todo mundo.
O homem começa a falar que talvez ela tenha razão, que uma mulher – mas o velho o interrompe:
Eu nem penso mais nessas coisas, não sinto falta nenhuma.
Sabe o que eu acho? Que o seu grande problema é ficar trancado aqui nesta casa. Você devia viajar.
Viajar pra quê?
Pra conhecer outros lugares, pessoas diferentes. Bem que eu queria estar no seu lugar.
O velho balança a cabeça, ri um riso triste.
Não queria, não.
O homem se levanta e olha na direção da sacada, atraído por uma pipa que se agita errática contra o céu nublado. Fala sem se voltar para o velho.
Vamos acabar te colocando num asilo.
De quem é a idéia? Sua ou da sua irmã?
O homem se apóia na porta que conduz à sacada — a pipa, depois de uma seqüência de movimentos bruscos, desaparece, numa queda vertiginosa, atrás da linha dos telhados.
É uma decisão conjunta, minha e da Clara.
O velho se levanta da cama e passa pelo homem, esbarrando nele, para chegar à sacada. Está descalço.
E vocês pensam que vai adiantar?
O homem se encosta ao lado do velho no parapeito da sacada. O vento traz um cheiro de comida até eles.
Eu não entendo. Você está bem de saúde, não tem qualquer problema financeiro. Devia agradecer a Deus e aproveitar a vida.
O velho põe a mão no ombro do homem antes de falar.
Eu não espero mesmo que você entenda. Basta respeitar a minha decisão.
O homem balança a cabeça, desanimado.
Antes de voltar para o quarto, o velho diz:
Eu ainda não desisti.
O homem permanece na sacada por um tempo longo. Sente fome, vontade de urinar e nenhuma disposição de se mover dali. Depois de voar com estabilidade, a pipa retoma os movimentos repentinos e em direções incertas. Até que some outra vez do campo de visão do homem.
Quando ele entra no quarto, o velho dorme, com a boca entreaberta, ressonando, e com a cabeça inclinada para o lado. Suas mãos estão estendidas à frente do corpo, e o homem aproveita para observar de perto as ataduras em seus pulsos. Antes de sair para o corredor, em direção ao banheiro, ele se curva para tocar com os lábios o rosto do velho, naquele que será lembrado como o ultimo beijo que deu no pai.
(imagem ©joão pejaves)
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