O certo é que prezamos a destruição.
Qualquer coisa chegando ao fim, eis o que nos interessa.
Fotografamos ruínas e colecionamos imagens de casas enfermas,

desenganadas pelo tempo,
e apreciamos o turismo por vilarejos decadentes,
prestes a sumir do mapa.
A imagem do velho edifício implodido nos mantêm cativos
diante da TV.
O que move a ferrugem não é mistério para nós:
conhecemos essa fome — e a respeitamos.
A árvore doente do passeio público nos interessa
mais do que as crianças desaparecidas.
Comovidos, chegamos a abraçar a velha figueira ameaçada,
pretextando solidariedade.
Mas não somos solidários, não se engane.
Apenas queremos estar por perto na hora final.
O certo é que apreciamos a destruição.
Casais nos falam de crises, da reta final, da beira do precipício.
Ouvimos interessados os pormenores da autópsia conjugal,
queremos saber em que momento
as vísceras do encanto deixaram de cumprir seu papel,
queremos conhecer tudo que fez do desejo
azinhavre, mancha agônica, bolor.
Existe desamparo maior do que
num velho carro entregue ao pó junto ao meio-fio?
O disco riscado e o livro que perdeu folhas e palavras
são nossos entes queridos.
O amigo que faz aniversário recebe nossos cumprimentos,
pois deu um passo à frente, rumo ao fim.
Vamos a velórios de parentes e conhecidos
com um olho vermelho de consolo, outro verde de curiosidade:
quem visitaremos inerte da próxima vez?
Amamos o corroído (pontes, trens, viadutos),
o que está prestes a se perder.
Respeitamos o desgastado, o roto,
o que se esfarelou, majestoso.
E esperamos.
Porque algo foi posto em marcha,
está a caminho.

 

 

 

 

(imagem ©pedro carvalho)

 

 
 

A sacada se eleva sobre os telhados encardidos do casario que se amontoa na ladeira. É janeiro, devia estar quente, mas uma chuva de dois dias deixou como lembrança um vento frio, ranzinza, forte o suficiente para vergar o talo das plantas que se agarram no beiral da maioria das casas.

O homem debruçado na sacada passou a adolescência no bairro, porém não se lembra de ter reparado naqueles arbustos aéreos, e acha engraçada essa constatação. Talvez não existissem na época.

O velho tosse no quarto.

Está sentado na cama, costas apoiadas nos travesseiros, e bebe água em goles curtos, segurando o copo com mãos trêmulas e micóticas.

O homem senta-se na poltrona e passa a mão pelo rosto. Sente um misto de cansaço e irritação. Tem em comum com o velho os olhos de um azul lavado e o nome. Sbignew. Pouco mais que isso.

Que horas sua irmã vai chegar?

O homem afasta a manga do paletó para descobrir, contrariado, apenas uma tira de pele mais clara que atravessa seu pulso. Na pressa, esqueceu-se do relógio.

Meio-dia.

O velho considera a informação por um tempo. Toma um ultimo gole de água e depois coloca o copo sobre o móvel, ao lado da cama. Então sorri.

Como é que agora ela arrumou tempo pra me visitar?

Ao invés de responder, o homem observa o quadro na parede. Um vaso de flores incrivelmente reais. Parece uma foto.

E quem vai buscar ela no aeroporto? Você?

Não. Ela vem de táxi.

O velho sai da cama e calça os chinelos. Está vestido com um pijama folgado, que acentua sua magreza.

Preciso mijar.

O homem se levanta e  acompanha o velho por um corredor de assoalho rangente até o banheiro. E quando impede que ele feche a porta, os dois se olham.

Que ridículo. Eu ainda consigo fazer isso sozinho.

O homem ignora o protesto. O velho o encara um pouco mais e então se vira e começa a urinar. Jatos espaçados, que vão diminuindo de intensidade, até que cessam. O velho puxa a calça do pijama e ainda resmunga ao passar pelo homem, a caminho do quarto.

Ridículo.

Ele ajeita os travesseiros e volta a se  recostar. O homem permanece em pé, ao lado da poltrona.

E aquela mulher, como era mesmo o nome dela? Emília?

O nome faz o velho arquear as sobrancelhas:

Ercília. Faz muito tempo que não vejo.

O homem se aproxima da cama, senta-se na beirada.

A Clara acha que é esse o problema, você devia arrumar uma mulher.

O que a sua irmã entende disso? Ela mesma não casou e descasou uma porção de vezes?

O homem pensa na irmã e se lembra da última vez em que se encontraram. Ela estava acompanhada por um sujeito de cabelo pintado e unhas brilhantes de base. Discutiam o tempo inteiro, sem o menor pudor, na frente de todo mundo.

O homem começa a falar que talvez ela tenha razão, que uma mulher – mas o velho o interrompe:

Eu nem penso mais nessas coisas, não sinto falta nenhuma.

Sabe o que eu acho? Que o seu grande problema é ficar trancado aqui nesta casa. Você devia viajar.

Viajar pra quê?

Pra conhecer outros lugares, pessoas diferentes. Bem que eu queria estar no seu lugar.

O velho balança a cabeça, ri um riso triste.

Não queria, não.

O homem se levanta e olha na direção da sacada, atraído por uma pipa que se agita errática contra o céu nublado. Fala sem se voltar para o velho.

Vamos acabar te colocando num asilo.

De quem é a idéia? Sua ou da sua irmã?

O homem se apóia na porta que conduz à sacada — a pipa, depois de uma seqüência de movimentos bruscos, desaparece, numa queda vertiginosa, atrás da linha dos telhados.

É uma decisão conjunta, minha e da Clara.

O velho se levanta da cama e passa pelo homem, esbarrando nele, para chegar à sacada. Está descalço.

E vocês pensam que vai adiantar?

O homem se encosta ao lado do velho no parapeito da sacada. O vento traz um cheiro de comida até eles.

Eu não entendo. Você está bem de saúde, não tem qualquer problema financeiro. Devia agradecer a Deus e aproveitar a vida.

O velho põe a mão no ombro do homem antes de falar.

Eu não espero mesmo que você entenda. Basta respeitar a minha decisão.

O homem balança a cabeça, desanimado.

Antes de voltar para o quarto, o velho diz:

Eu ainda não desisti.

O homem permanece  na sacada por um tempo longo. Sente fome, vontade de urinar e nenhuma disposição de se mover dali. Depois de voar com estabilidade, a pipa retoma os movimentos repentinos e em direções incertas. Até que some outra vez do campo de visão do homem.

Quando ele entra no quarto, o velho dorme, com a boca entreaberta, ressonando, e com a cabeça inclinada para o lado. Suas mãos estão estendidas à frente do corpo, e o homem aproveita para observar de perto as ataduras em seus pulsos. Antes de sair para o corredor, em direção ao banheiro, ele se curva para tocar com os lábios o rosto do velho, naquele que será lembrado como o ultimo beijo que deu no pai.

 

 

 

(imagem ©joão pejaves)

 

 

Marçal Aquino, paulista, 1958, publicou, entre outros livros, os volumes de contos O amor e outros objetos pontiagudos, Faroestes e Famílias terrivelmente felizes (antologia), além das novelas O invasor e Cabeça a prêmio. Atuou como roteirista dos filmes Os matadores, Ação entre amigos, O invasor e Nina. Recebeu diversos prêmios por seu trabalho literário, como o primeiro lugar na categoria conto da 5ª Bienal Nestlé de Literatura (1991) e o Prêmio Jabuti (2000). Jornalista, trabalha como free-lancer. Mais aqui.