Semanário

 

Esta semana comecei um poema que fala de chuva e despedidas

chávenas de chá e borras de café, olhares quentes e polícias

e girassóis e livros e comboios e telefonemas com três palavras

e versos e poemas e músicas e abraços e insistências várias.

Esta semana comprei uma máquina de fazer olhares sensuais

e despi o meu casaco de senhor doutor para te dar as boas noites

e peguei num boné que era do meu avô e gritei golo algumas vezes

e fui ver o sol nascer no mar do lado de lá do lado de lá de mim.

Esta semana encontrei-te na rua e disse-te adeus em duas ocasiões

dancei desajeitado no corredor da minha casa desarrumada

lavei os dentes catorze vezes e tomei banho outras sete

dormi sempre pouco e sempre mal com calor e dores de garganta.

Esta semana pensei que podíamos ficar apaixonados para sempre

a música que eu ouvi na rádio poderia repetir em continuidade,

os dicionários podiam ser peças de armários onde nos encontrássemos,

as férias são uma estrada comprida com curvas e garrafas de água.

Esta semana fui às compras e trouxe, em sacos de plástico, requeijão

pão fresco manteiga chourição guardanapos fígado de porco

patê cervejas arroz doce salame salsichas alface iogurtes

papel higiénico bolos secos e uma revista de palavras cruzadas.

Esta semana a minha mãe não me falou e a minha avó faz anos,

todos os jornais trazem na capa jogadores de futebol e bandeirinhas,

um pneu do meu carro estava vazio e eu enchi-o antes de ir ver-te,

não me acabou a gasolina a meio do caminho e fiquei contente.

Esta semana tu foste embora para dentro de um livro que eu escrevi

e os meus versos longos ficaram cheios de pedacinhos de ti,

eu sorrio ao ver crescer os meus filhos que ainda não nasceram

e entretenho-me a ver desenhos animados e a mudar de calendário.

 

 

 

 

 

 

Todas as pessoas sozinhas

 

Todas as pessoas sozinhas dançam devagar na sala de espera

mesmo que o dia seja quente e convide a passeios ao luar.

A música é sempre a mesma, assobiada ao ouvido

por um rapazinho tímido e fechado do qual não se sabe o nome

e a destreza que podemos alcançar, neste querer dar o passo certo,

é apenas uma mínima ideia da força dos nossos desejos.

Todas as pessoas sozinhas sorriem em frente ao espelho

e lavam os dentes como quem arranca beijos à emoção

de ter ali, à nossa frente, alguém de quem gostamos muito.

A porta da rua é um lugar onde só se sai,

a nossa família é uma fotografia pendurada na parede

e os amigos são aqueles que nos dão bons dias no café.

Todas as pessoas sozinhas gritam baixinho os nomes esquecidos

que outras pessoas sozinhas lhes sussurraram alto uma vez,

quando ainda éramos todos uns dos outros.

Engomada a camisa, vestimo-nos com o cuidado solene

daqueles que vestem camisas com emoção e significado

enquanto esperam a hora certa para morrer ou nascer.

Todas as pessoas sozinhas todas as pessoas sozinhas

embrulhadas em lençóis frescos porque é Verão

a rebolar as dores de pescoço pelas duas almofadas da cama

e a pensar que de tanto dormir assim sem ninguém

vai ser difícil voltar a adormecer só num dos cantos do colchão.

Todas as pessoas sozinhas todas as pessoas sozinhas.

 

 

 

 

 

 

Male Love

 

Tinhas vestida uma camisa do Arsenal de Londres

e à tua frente uma garrafa vazia de Coca-Cola:

não sei que dia seria mas era seguramente Outono

ainda não muito frio mas cheio de cinzento no céu.

Eu sentei-me à tua frente e pedi mais uma Cola,

só a voz monocórdica do relator do jogo

se ouvia a todo o comprimento do café.

Tínhamos dezasseis, dezassete anos, não me lembro,

o suor a cair-nos pela face e um sorriso

muito mais que entristecido nos nossos lábios.

Lembro-me do jornal aberto na página trinta e três

de um jovem jogador acidentado e ferido

da ausência de qualquer esperança e qualquer alegria

naquele café longe de todos os estádios do mundo.

Tinhas vestida uma camisa do Arsenal de Londres

e à tua frente uma garrafa vazia de Coca-Cola:

era seguramente Outono, final de tarde a jogar futebol.

Ficámos calados quase uma hora, olhares estendidos um sobre o outro

e depois tu levantaste-te, deixaste umas moedas em cima da

                                                                     [mesa, e foste embora.

Lembro-me o jornal aberto, impresso a uma cor,

com os resultados de todos os campeonatos nacionais

e também regionais, um mapa desfeito em uma só página

muito maior do que os nossos braços poderiam segurar

naquele café longe de todos os estádios do mundo

eu, que já sabia que tinhas ido embora para sempre,

dei enfim pela tua falta, entrada a pés juntos no meu coração.

 

 

 

 

 

 

Arquitectura

 

A nossa vida como nos filmes

imagens a passar muito depressa - folhas -

os pés a subir direitos rumo ao sol

as olheiras escondidas atrás de lentes escuras:

a nossa vida - filmes - uma voz que te chama,

é de noite e ainda não encontraste

o teu lado certo na cama, agora que a cama

é toda tua, e o roupeiro, e a janela, e o chuveiro.

Abres a porta do frigorífico e faltam os iogurtes

dele, uma cerveja, a nossa vida:

filmes - a rever pela noite fora - filmes,

lembras-te de quando eram felizes

e namoravam a olhar o rio ou o mar -

água corrente é qualquer coisa de romântico -

lembras-te de quando eram mistério

e os dez dedos das mãos serviam para descobrir,

lembras-te de quando as palavras

ainda só serviam para amar ou seduzir:

a nossa vida, hoje, como nos filmes,

como uma fita a andar às voltas

em frente de uma luz, perigo de fogo,

as unhas roídas porque é fim-de-semana

e os passeios com ele não se repetem,

porque é fim-de-semana, dolorosamente,

e à hora que ele sai do trabalho continuas sozinha,

a nossa vida, a nossa vida, a nossa vida.

 

 

 

 

 

 

Pessoas como tu

 

A minha Charlotte Gainsbourg e eu

escrevemos músicas até tarde

e escondemos as nossas olheiras escuras

debaixo de óculos escuros e cafés duplos.

Saímos da cama de mansinho depois

do despertador tocar três vezes

e entramos na banheira

só para tomar um duche rápido.

 

A minha Charlotte Gainsbourg e eu

a brincar com lápis de cor nas mãos

e a sorrir como crianças em frente

aos cadernos de colorir

comprados nos saldos do Continente

onde fomos comprar bolos e chá

porque já era tarde e para jantar

não havia nada lá em casa.

 

A minha Charlotte Gainsbourg e eu

a correr pelo corredor

a fugir do frio

a cantar baixinho debaixo dos lençóis.

A deixar recados românticos

em pequenos papéis na mesa da cozinha

a viver dos sonhos e dos sonos

como toda a gente que conhecemos.

 

 

 
 
 
 
 
 
 

 
 

No ano de dois mil e sete

 

No ano de dois mil e sete a poesia era uma maneira de se estar vivo

respirar para dentro das coisas onde não se via nada para além do nevoeiro

e encontrar pela noite dentro um abraço terno e seguro como uma cama bem feita

pelos dedos dóceis de uma avó que só se preocupa com o nosso bem estar.

Era ficar em pé de cabeça levemente descaída em frente à montra dos jornais

e ler alguns títulos que nunca nos interessavam verdadeiramente

como os jantares oferecidos ao corpo diplomático pelo Presidente de República

ou os referendos que se repetiram infinitamente até deixarmos de

                                                                           [perceber o seu significado.

 

No ano de dois mil e sete a poesia era um livro publicado na primavera

e um abraço apertado à beira-mar enquanto nos copos água fresca aquecia

porque o estrangeiro é mais da nossa própria terra onde nos olham de lado

do que numa cidade distante onde nos tiram o chapéu porque

                                                                            [abrimos janelas sorridentes.

Era poder telefonar-te porque um beijo ficou por dar no aceno na calçada

era finalmente ter nos bolsos as chaves de uma casa com cortinados coloridos

e ficar sentado numa das noites da semana no sofá grande da sala

a ver um filme francês daqueles que passam a desoras no canal um da erretepê.

 

No ano de dois mil e sete a poesia era também composta pelas mesmas palavras

que se podem encontrar nos livros mais antigos da história da humanidade

e também nas músicas do José Mário Branco e do José Afonso embora essas

tivessem perdido todo o seu sentido original para serem apenas poemas sublimes.

Era abraçar-te como se abraça o amor da nossa vida descoberto

e comer maças descascadas com vista para o prédio onde uma vizinha

                                                                                              [estendia a roupa

ser domingo de manhã e sentir um raio de sol a entrar-nos no peito

                                                                        [pelo pijama aberto

sorrir sossegado com a poesia que nos envolve a alma no ano de dois mil e sete.

 

 

 

 

 

 

Arte Poética

 

O meu corpo dizia assim

trago um gato na barriga

e uma manta muito quentinha

 

os óculos em cima da mesa e do nariz

um casaco abotoado e azul

as chaves de casa dentro da mala

 

uma rua com poetas nos cafés

um cão a passear um cego

os índios e os cobóis em eco.

 

O meu corpo dizia assim

nêsperas doces o ano inteiro

e uma cafeteira saída nas revistas

 

as minhas horas de ferro de engomar

e um poema de Bukowski na cabeça

ao lado de um pacote de bolachas para o jantar

 

ouvem-se melros a cantar lá fora

e o aspirador da vizinha não pára

o homem dela fuma no terraço.

 

O meu corpo dizia assim

quando me desejas bom dia desejas o quê

vejo-me nua no espelho grande da casa

 

um tacho de arroz e ervilhas para lavar

o jornal de hoje e notícia nenhuma

pensar em jantar sozinha e ser bom

 

trago um gato na barriga

e não me lembro do teu número de telefone

a nossa conversa já é uma narrativa.

 

O meu corpo dizia assim

abraça-me abraça-me mais vezes

enquanto dançamos não se ouve a música

 

um golo e a rua inteira calada

a escola deserta dos gritos das crianças

carros atravessados num mundo tão estreito

 

na rua António Nobre, século vinte e um,

já não há mais lugares onde estacionar

qualquer coisa muitas vezes repetida na cabeça.

 

 

 

 

 

 

Para uma teoria geral das ferragens

 

Podes cantar o som da faca, sim, canta

mas só no seu encontro com o papel fragilizado

por tanto tempo de exposição a um sol

que agora se te apresenta molhado e triste.

 

Podes cantar o som da faca, sim, canta,

porque a faca namora a palavra e purifica-a,

busca-lhe a sensatez e a intensidade

no momento em que, rubro, se torna o texto.

 

Podes cantar o som da faca, sim, finalmente,

se o teu sossego é um lugar onde não estás

e o silêncio vive agora contaminado pelo pensamento:

o som da faca, em fúria, irrompendo pela memória.

 

 

 

 

 

 

Catarina

 

Não há nenhum mistério nas coisas

tudo tudo é muito simples

e cada descoberta chega sempre atrasada

porque ali esteve sempre para quem a quisesse ver.

 

Se o mundo inteiro acreditasse em ti, Catarina,

ninguém conheceria a doçura do teu sorriso surpreendido

pelas pequenas coisas que trago nos bolsos

e deixo, sem falar, em cima da mesa do teu quarto.

 

 

 

 

 

 

Vende-se rapaz

 

É de desconfiar sorriso tão grande em público

- logo de seguida, o mais certo é cair-lhe da testa

uma tristeza pesada que depois se procurará aliviar

numa cerveja ou numa asneira descontrolada a sair-lhe dos lábios.

 

Ainda assim, é alegre e animado, conta piadas, é expressivo,

carinhoso, amoroso, rabugento, em tantas coisas rápido

em tantas outras lento. Costuma encontrar-se a passear por aí,

cabeça no ar a olhar pormenores de janelas e águas furtadas.

 

Encontram-no muitas vezes nas palavras, muitas vezes no silêncio.

Tanto faz viagens inteiras sozinho no carro calado

como um rádio avariado, como canta tudo aquilo

que uma sintonia reencontrada lhe possa sugerir.

 

De aspecto, apresenta-se bem: cabelo despenteado e em falta,

olhos castanhos claros chorosos, mãos macias, dedos indicadores,

boca desenhada, pernas grossas, barriga bonita, pés calçados,

muitos pelinhos a sair do peito pelos botões da camisa.

 

Com este calor, dorme despido. Arrepende-se muitas vezes

de não ler antes de dormir mas sente-se aconchegado na cadeira do computador.

Tem um relógio elegante que lhe deram nos anos

e como iogurtes com bolachas pela manhã.

 

De certa forma, cultiva uns quantos segredos sobre si mesmo,

na exacta medida em que os revela ao deus dará.

Não está propriamente consciente de algum valor que lhe possa ser atribuído,

mas o mais certo é continuar por cá. Vende-se rapaz.
 
 

 

[Do livro E como ficou chato ser moderno. Portugal: Livrododia, 2007]

 

 

 

 

(imagens ©foba)

 

 

 

  

 

Luís Filipe Cristóvão (Torres Vedras/ Portugal, 1979). Cursou Literatura e Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa, bem como Edição de Livros e Novas Tecnologias na Universidade Católica de Lisboa. É gestor editorial e livreiro. Director da Revista Literária Sítio (Portugal), é autor dos livros Registo de nascimento (Portugal: Livrododia, 2005), Pequeña antología para el cuerpo (Espanha: Palavra Ibérica, 2007) e E como ficou chato ser moderno (Portugal: Livrododia, 2007). No prelo está o livro Rua Kazuo Dan, que será lançado em 2008 pela Bourel (Galiza/Espanha). É ainda autor do blogue 1 9 7 9.