Uma secreta forma

 

 

"As palavras como o rio na areia

se enterram na areia"

Roberto Matta

 

 

o automóvel está possuído pela força

dos animais que o habitam

como uma carruagem puxada por cavalos

sobre pedras úmidas de um passado verão

Rio de Janeiro aparece de repente como

a secreta forma que o Atlântico

deixa entrever de suas colinas de açúcar:

baleias à distância algo 

comunicam à nossa humanidade surda

e cegadas pelo sol preparam seu próximo vôo

caem uma vez mais como

o têm feito há séculos

caem e crescem nas profundezas

caem e crescem em seu líquido amniótico.

 

 

 

 

 

 

 

 

Falam

 

"A noite é um infinito que se afasta".

Hilda Hilst

 

 

falam sem parar todos ao mesmo

instante

disparam com suas afiadas línguas

modulam um, outro, um mais

na roda suas palavras

se acomodam, cantam, dançam

se arrastam

voam

saltam

sem saltar

suspensas em suas bocas

e respirando na fala

eles se escutam e cegos

se tocam, se escutam e riem

embora falem todos ao mesmo

tempo

riem

 

 

 

 

 

 

 

Hi-tech

 

com dinheiro de plástico pagamos nossos

instrumentos importados de terras distantes,

 

caminhões com alimentos transgênicos nos ultrapassam

na calçada

 

automáticos seguimos em transe numa super rodovia

lemos cartas no telefone portátil imagens ativas

de quartzo líquido que satélites

de prata nos ligam de

uma órbita desconhecida

 

o tempo

é

sem ser o espaço

o mesmo complemento

 

o relógio digital anuncia a queda do sol

aperto o controle remoto

do portão eletrônico

e no carro de combustão interna nos

deslocamos paraplégicos.

 

 

 

 

 

 

 

Uma visita ao zoológico fantasma

 

 

"Livre da enfermidade, embora em meio à enfermidade"

Yagyu  Munenori

 

 

Tenho visto tanta merda de cão

nas ruas de Paris que devo

caminhar com cuidado à noite

 

é quando me parece então

escutar meninos e meninas fantasmas

rirem na fila de entrada do

zoológico que para eles ali se levanta:

 

um desfile de elefantes brancos cruza

a praça do Louvre fazendo

malabarismos com obras de arte e restos

de arqueologias extraterrestres, girafas

correm pelos Campos Elíseos comendo

as luzes natalinas que crescem em

suas árvores, baleias, delfins,

patos selvagens nadam pelo Sena

tragando turistas desprevenidos

que acendem flashes em seus narizes

leões copulam famintos

sobre os telhados como relíquias

de cristal de uma cidade iminente...

 

Hipopótamos ébrios se encalham em suas

ruas serpenteantes, em seus arcos triunfais,

em sua torre famosa...

 

Galeristas confusos

correm atrás de cavalos livres de

carrossel que levam gravada uma estrela

de ouro em seu flanco...

 

Bandos de aves tropicais cobrem a lua

de plumas de plástico que

ursos vestidos à la mode sopram

com ventiladores nucleares de

globos que intermitentes sobem

e descem por escadas invisíveis

que águias cegas trazem

de Nôtre-Dame...

 

Sinosnuvens carregados de

perfumes humanos chovem

no final desta noite sobre

o zoológico de plasma e tudo

retorna nos olhos de um gato

sabiamente

a ser luz solar

e Paris

Paris

é

outro dia.

 

 

(Escrito num 30 de dezembro de 2002 na Rue Vaicouleurs, Paris, França. Dedicado à família Noël. Concluído em Cerquilho, São Paulo, Brasil, num 12 de setembro de 2003.)

 

 

 

 

 

 

 

So you to me

 

 

                   Lendo Gael Turnbull e

                   olhando pinturas de Lucian Freud

 

                   A Monsieur Charles Baudelaire

 

 

É melhor deixar passar

as balas e render-se

ante teu destino

sabes

bem e mal são

nomes que podem

significar a mesma

flor

 

 

 

 

 

 

 

 

Um sonho de futuras primaveras

 

alguém que foi fundido em pele e carne

em 1966 no sul do sul olha em pé

uma cruz em ardente ferro forjada

em 1782 do outro lado do mundo como

se não o fizera, como se não

estivera aqui

 

hoje

sopra para ele um vento morno de

futuras primaveras

 

 

Ao escultor e poeta espanhol Jorge Oteiza, um animal não-marcado, alheio à disciplina do rebanho.

 

(Porque tudo o que tocamos se converte em mundo, o animal que seremos agoniza nessa jaula. Leo Lobos, Santiago do Chile, 1993.)

 

 

 

 

 

 

Caminhante

 

"O poeta é um vidente".

                   G. Heinrich Schubert

 

 

Largos passeios

bosques

caminhos

 

plantações solitárias que o

verão veste e desveste este frio

ante olhos pardos que respiram

descobrindo

sendas

líquidos paisagens presentes

sob nuvens artificiais que a

central nuclear cospe

por chaminés cinzentas

bandos de imagens dominam

a planície rumores o

surpreendem

 

enquanto isso

 

pássaros de alumínio

rabiscam

o céu de metal

 

 

 

Ardendo sob as águas

 

 

                   "As barcas afundadas. Cintilantes

                   Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante

                   E obscura barca ardendo sob as águas"

                   Hilda Hilst

 

 

Nos inícios de uma

constante, de um contínuo

secreto, aqui, lá, mais longe

de tudo de todos os

enigmas ardem sob

as águas estes momentos

de verdadeiro egoísmo

de guerras totais

misérias humanas

restos

dinheiro sujo

ignorância

 

estupidez

 

a memória será acaso a

presença do ausente?

 

 

 

 

 

 

 

 

Buscando luzes na cidade luz

 

                  

                À tão necessária Paz para este mundo e para o outro

 

 

Busca que busca

a luz da palavra cruzando

rios e lagos

mares e montanhas internando-se em

cidades labirintos atuais bosques

submergidos de Santiago a Boston de

Nova Iorque a Paris, Paris, Paris e neste

bosque branco que, outra coisa, a mesma coisa

vejo-a parada aí

na rua

pensando talvez no eco

das águas entre a multidão e os autos velozes

buscando a luz, as luzes de uma pele

que ninguém poderá ferir enquanto perdidos

transeuntes

lhe perguntam

por onde

por que caminho

por que lugar se entra

se sai do espelho

de onde às vezes pensam escutar um triste Lewis

chorar por uma menina chamada

Alice

capturada por

ele

em

uma

história

paradoxal

 

 

 

 

 

 

 

 
Três mulheres, um piano, um gato e uma tormenta
A Alexandra Keim

 

 

É difícil ser um pássaro

e voar contra a tormenta

melhor é como um gato estar

sempre atento às brasas

cerca da chaminé

e escutar

sempre atento escutar

três línguas diferentes falarem

um idioma fascinante

misterioso e conhecido

ouvir e ir em sua música

em suas luzes e próprias

e universais sombras

fotografar

por um só segundo

fotografar com os olhos seus perfis

de ser possível

flutuar

dentro

da sala

como

um pássaro

na

tormenta

 

 

 

 

 

 

 

Silencioso dentro da noite

 

"Ser como o rio que deflui

silencioso dentro da noite"

    Manuel Bandeira

 

 

Fluir, leve andar

descalço inflar lentamente os pulmões

pesar cada passo sentir

cada instante entrar

silencioso dentro

da noite

como se ela

fosses

tu

 

 

 

(imagens ©lucian freud)

 

Leo Lobos (Santiago do Chile, 1966): poeta, ensaísta, tradutor e artista visual. Estudos universitários de filosofia, castelhano, biblioteconomia e comunicação. Laureado UNESCO-Aschberg de Literatura 2002, realiza uma residência criativa em CAMAC, Centre d'Art Marnay Art Center em Marnay-sur-Seine, França, e no Jardim das Artes, Ciências e Educação: espaço cultural e residência internacional de artistas, Cerquilho-SP, Brasil, onde desenvolve trabalhos de comunicação e relações internacionais, além de pintar, desenhar e escrever. Publicou, entre outros: Cartas de más abajo (1992), +Poesía (1995), Ángeles eléctricos (1997), Turbosílabas. Poesía Reunida 1986-2003 (2003). Escreve para vários jornais, revistas e sites e tem lido seus textos de arte e literatura no Chile, Argentina, Peru, Brasil, México, Cuba, Estados Unidos, Espanha, França, Alemanha e Canadá. É tradutor de vários poetas brasileiros como Hilda Hilst, Tanussi Cardoso, Helena Ortiz, Herbert Emanuel, Eliakin Rufino, Ésio Macedo, entre outros. Seleção, tradução e notas bio-bibliográficas: Cristiane Grando (poeta, fotógrafa e doutora em literatura – USP).