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A imprensa, notável invenção de Gutenberg, no início do século XV, chegando à Península Ibérica, passou para o Novo Mundo, primeiramente no México, um século depois. No Brasil, a imprensa foi instalada no início do século XIX, para servir ao governo do Reino de Portugal, que se transferira para o Brasil. Entretanto, a imprensa começou a se desenvolver quando os primeiros anseios de liberdade buscaram meios pelos quais puderam divulgar, com bons resultados,o verdadeiro pensamento nacional. Lopes Gama — monge beneditino, político, moralista e jornalista, homem de cultura invulgar para o seu tempo e o seu meio —, permanece como um dos maiores nomes da imprensa doutrinária brasileira e completa este ano 152 anos de morto.
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Publicado em edição fac-similar, O Carapuceiro, jornal do Padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, pela Secretaria de Educação e Cultura; Prefeitura da Cidade do Recife e Fundação de Cultura Cidade do Recife, prefácio de Leonardo Dantas Silva e estudo introdutório de Luiz do Nascimento, em três volumes (col. Cidade de Recife nº 27), 1983. Na época de sua publicação, há quase vinte anos, eu havia recebido quatro coleções enviadas por Leonardo, diretor executivo da Fundação e resolvi presentear três delas, aos amigos pesquisadores Nélson de Araújo (1926-1993), Cid Teixeira e Luís Viana Filho (1908-1990), esse último muito se serviu do farto material para a realização da 2ª edição de A Sabinada. A República Baiana de 1837.

 

O Carapuceiro — Periódico sempre moral e, só per acidens político — era impresso na Tip. Fidedigna, de José Nepomuceno de Melo, situada à rua das Flores D. 18. Em formato de 21 x 15, com quatro páginas de duas colunas. Fundador e único redator do jornal O Carapuceiro, que circulou pela primeira vez em 7 de abril de 1832, alertava no frontispício: "periódico sempre moral e, per acidens político". Tinha por missão distribuir carapuças: "Façam de conta que, assim como há lojas de chapéus, o meu periódico é fábrica de carapuças. As cabeças em que elas assentarem bem, fiquem-se com elas, que quiserem; ou rejeitem-nas, e andarão com a calva às moscas".

 

A partir do número 11 veio O Carapuceiro a adotar um clichê sobre o título, representando uma loja de chapéus, mas vendo-se o lojista a experimentar um deles na cabeça do freguês. Uma nova mudança ocorreu a partir da edição de número 1 de 19 de abril de 1837, permanecendo até o nº 17 de 29 de maio de 1840, quando foi exibido sobre o título o desenho do interior de "uma loja de chapeleiro, de cujo balcão se aproximavam dois fregueses de aspecto importante; das paredes pendiam, promiscuamente, barretinas, chapéus, coroas imperiais, mitras e carapuças", suspeitando-se, na figura do lojista, o Padre Carapuceiro. Completou o cabeçalho em latim "Guardarei nesta folha as regras boas Que é dos vícios falar, não das pessoas". (Marcial. Liv. 10. Epist. 33). Segundo o próprio redator "sairá o pobrezinho quando Deus o ajudar, e conforme a generosidade que com ele quiserem ter os Padrinhos, que são os srs. Leitores".

 

 

 

 

 

 

 

O sacerdote e escritor Lopes Gama, nasceu no Recife em 29 de setembro de 1791 e faleceu pobremente nessa mesma cidade em 9 de maio de 1852, tendo seu corpo sepultado no cemitério de Santo Amaro. Figura exatamente interessante, dedicando-se à vida religiosa, ingressa em 1805 para o Mosteiro de São Bento de Olinda, ordenando-se no Mosteiro da Bahia: logo depois regressando a Pernambuco.

 

Em 1817, ingressa no magistério como titular da cadeira de retórica do Seminário de Olinda. Nas suas salas de aula ensinou, no século XVII, o padre Antônio Vieira, além de outros famosos brasileiros. Estudou e ensinou nas suas salas: o padre Antônio Ribeiro, líder ideológico de 1817, o padre Miguelinho e o Frei Caneca. Tendo exercido ao longo de sua vida várias funções no campo do ensino, foi deputado provincial em 1835 e deputado geral em 1840, mas seu nome ganhou celebridade principalmente como jornalista político.

 

Durante o período que vai da luta pela independência e das insurreições de 1817 (Revolução Pernambucana) e 1824 (Confederação do Equador), ambas ocorridas em Pernambuco, do Primeiro Reinado, da Regência e primeiros anos do Segundo Reinado, Lopes Gama teve uma atuação destacada, defendendo sempre uma posição liberal e democrática. Ficou conhecido como Padre Carapuceiro, nome do virulento jornal de sua propriedade.

 

As idéias do famoso jornalista polemista podem acompanhar passo a passo a trajetória de um homem de imprensa que utilizava o jornal não apenas como veículo de agitação, também como instrumento de doutrinação política e de crítica social, realizada com bom humor. Em artigo datado de 1845, o articulista perfilhava a concepção da formação histórica das classes sociais e das lutas de classe: "Em todos os países, e em todas as épocas, essas classes privilegiadas, ciosas das vantagens que possuíam, desveladas por estendê-las todas as vezes que julgaram oportuno e ensejo, já por egoísmo, já por orgulho e cobiça, sempre procuraram manter-se em um poder discricionário, e por isso sempre se constituíram em guerra permanente com os povos por elas deserdados e oprimidos".

 

Noutro artigo do mesmo ano, depois de se referir a alguns utopistas do passado, acrescenta textualmente: "Em nossos dias três homens distintos têm tentado o melhoramento das classes laboriosas, mediante a reforma da sociedade em geral; St. Simon, Fourier e Owen". O fundador do Partido Comunista Brasileiro (1922), Astrojildo Pereira, em artigo publicado em 1959, diz que esta passagem nos mostra que a propaganda do fourierista Vauthier, o engenheiro francês socialista, contratado então pelo governo de Pernambuco do Barão da Boa Vista, para a execução de obras públicas no Recife,  de 1840-1846, conquistava adeptos até no clero. Vamireh Chacon na sua História das Idéias Socialistas no Brasil, chama a atenção sobre as firmações exageradas da influência de Louis-Léger Vauthier nas idéias socialistas de 1848, afirmando que ele foi mais engenheiro e arquiteto que político. Porque, intelectuais envolvidos na Praieira como Felipe Lopes Neto e Antonio Pedro de Figueiredo, já eram socialistas e ambos estudaram na Europa.

 

A adesão do Padre Lopes Gama às novas idéias, não era algo apenas superficial: "Com a escola socialista, eu reconheço que um vício radical deteriora todas as associações humanas...". Portanto, reconhecendo ainda que a humanidade marchava para o socialismo e "que o regresso é repugnante ao gênero humano de sua natureza progressivo".

 

Lopes Gama fundou e dirigiu vários jornais, desde 1822 até sua morte; cujos títulos denunciam a feição acentuadamente política do seu teor: O Conciliador Nacional, aparece em 4 de julho de 1822 no Recife, quinzenal ou mensalmente, interrompeu a circulação em outubro, quando Lopes Gama foi chamado a dirigir a folha da junta Governista. Voltou dois anos depois, em outubro de 1824, para encerrar suas atividades em abril de 1825. Diário da Junta do Governo (dos Matutos); O Constitucional, defendeu a monarquia constitucional representativa, no período de agitação política que antecedeu a abdicação de D. Pedro I (1931); A Ratoeira (circulou um único número a 3 de setembro de 1847); O Popular; O Carapuceiro; O Despertador; O Pernambucano; O Sete de Setembro, além de colaborar em outros periódicos da província e do Rio de Janeiro.

 

Na primeira fase, colocou-se, decididamente, na esquerda liberal, como exemplifica o historiador Carlos Rizzini, autor de "O Livro, o Jornal e a Tipografia no Brasil", com alguns pronunciamentos de Lopes Gama: "Deus não quer sujeitar milhões de seus filhos aos caprichos de um só"; "as Cortes são superiores ao Imperador"; "os povos têm o direito de dissolver a forma de governo"; "os reis não são pais dos povos, antes os povos são pais dos reis". Não é de surpreender que, com essa posição, tivesse de suspender a circulação no mesmo mês em que a Corte, a suspendia nos órgãos dirigidos por Ledo e Soares Lisboa. Em sua fase inicial da longa carreira jornalística, atividade que culminaria ao fim da primeira metade do século, entretanto, Lopes Gama combateu a Confederação do Equador (1824).

 

Na fase histórica que culminaria com a Rebelião Praieira (1848), Lopes Gama variou entre a doutrinação e a polêmica mais áspera, pois sua atividade de combatividade, nem sempre esteve na posição mais justa e estas contradições, que marcaram suas atividades políticas, têm dificultado o julgamento do seu papel. Mas o período áureo de Lopes Gama, foi sem dúvida a fase do Conciliador Nacional, O Constituinte e O Sete de Setembro, que circulou entre 7 de setembro de 1845  a 16 de abril de 1846. No número de 10 de outubro, Lopes Gama se definiria, em relação ao quadro que a província apresentava: "O partido praieira em Pernambuco é todo o povo que reage contra a facção oligárquica que o oprime por tantos anos".

 

Com O Sete de Setembro, Lopes Gama atinge o plano doutrinário no auge de sua atividade na imprensa. Muitos foram os seus adversários e os partidários do regresso, como os da Praia, nunca o pouparam. A Carranca, pasquim conservador, comparou-o ao diabo, em seu número 76, de 18 de abril de 1846, numa demonstração em versos:

 

 

"O sete caras, frade de aluguel

Sete seixos atira em seus iguais

Sete partidos teve entre os mortais

Sete maldades tem, como Lusbel.

 

Mentiroso, impostor, ímpio, infiel,

Servil, libidinoso... e verão mais,

Que além das sete caras principais,

Já foi cavalcantista o pape-mel!

 

Atolado na Praia até o nariz,

Da Praia urdindo os planos d’inversão,

Não ser praieiro agora ele nos diz!...

 

Que será este monstro, em conclusão?

É tudo, é nada, é frade, é meretriz,

É moeda xem xem, negro gabão".

 

 

Realmente, Lopes Gama estivera com os revolucionários da Praieira, no período do governo de Chichorro da Gama. Combatido pelos pasquins O Lidador; O Eco da Verdade; O Clamor Público; O Esqueleto; O Rato; O Vulcão; A Barca de Vigia; O Artista; O Proletário; O Bezerro de Pêra, em represália, Lopes Gama não poupava seus adversários, às vezes enfrentando-os em estilo violento e agressivo.

 

Sua bibliografia em livros consta dos seguintes títulos: A Coluneida (1832), poema satírico contra a Sociedade Colunas do Trono e do Altar; A Farpeleida ou princípio, meio e fim das filhas de Jerusalém com seus vícios de poemas (1841); Código Criminal da Semi-República do Passamão na Oceania (1841), sátira em prosa; Lições de Eloqüência Nacional (1846), com reedições em 1851 e 1864; Observações Críticas Sobre o Romance do Sr. Eugênio Sue, o Judeu Errante (1850), e traduções de diversas obras francesas e italianas.

 

Sobre o Padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, existem inúmeros artigos publicados nos periódicos brasileiros, mas dois trabalhos se destacam em forma de livros: O Padre Lopes Gama Político, de Amaro Quintas, Recife, 1958 e Lopes Gama (antologia), organizada por Luís Delgado, Rio de Janeiro, Editora Agir, coleção Nossos Clássicos, nº 31, 1959.

 

A coleção d'O Carapuceiro já era considerada grande raridade poucos anos após o falecimento do seu redator — em sua edição de 19 de janeiro de 1857, O Diário de Pernambuco anunciava um interessado em sua aquisição. O Carapuceiro, considerado o mais agradável e variado mensário do tempo, o mais importante documentário crítico de costumes da primeira metade do século XIX no Brasil. Crítico de costumes, analista social do seu tempo, foi, sobretudo, um retratista dos hábitos da sociedade de sua época. Nada escapou aos olhos do Padre Carapuceiro.

 

Esta edição fac-similar das edições autônomas que circularam no Recife no período de 1832 a 1842, dez anos, é composta de 427 números (31 dos quais mutilados) que totalizam 1.706 páginas, distribuídas em três volumes.

 

 

 

 

julho, 2006
 
 
 
 
Gilfrancisco. Jornalista, pesquisador e professor universitário. Publicou Gregório de Mattos o boca de todos os santos; Crônicas e poemas recolhidos de Sosígenes Costa; Flor em Rochedo Rubro: o poeta Enoch Santiago Filho; Godofredo Filho & o modernismo na Bahia; Poemas de Enoch Santiago Filho, dentre outros.