©Cassiano Lustosa Fróes | O autor a caminho do Castelo do Açu, a 2200m, na Serra dos Órgãos 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Pequena mostra de poemas do livro de Leonardo Fróes, Chinês
com sono e Clones do inglês
. Rio de Janeiro: Rocco, 2005
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Olha, eu não sei por quê. Aconteceu. O Chinês com sono é um livro que tem uma unidade muito grande, os poemas, com esta indicação da capa, são todos de um contemplativo na Natureza, porque é o que vivo há mais de trinta anos. Falo, evidentemente, de plantas, de morros, de animais, daquilo que me cerca na vida de todo dia, mas os poemas estrangeiros, aqui, no caso, poemas ingleses [de Clones do Inglês], também são parte do meu cotidiano. Então, achei que há uma unidade nisso, a unidade da minha vida.

 

Leonardo Fróes

Programa Livros na Mesa, exibido em fevereiro de 2006

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É um livro de face dupla.  Na primeira, Chinês com Sono, quem se revela em vinhetas delicadas e concisos contos em versos, ou story poems, é o autor premiado pelo Jabuti de Poesia, e antes mais conhecido por seus poemas em prosa, que há um pouco mais de 30 anos vive recolhido em Petrópolis,  em comunhão  radical com a Natureza.

 

Da quarta capa de Chinês com sono e Clones do inglês

 

 

 

 

Labial 

 

Não há como dizer o que se sente.

 

Há, porém, quem consiga, dando

cambalhotas verbais, ou seja, usando

as propriedades elásticas da fala,

dar a contrário do que pensa

uma formulação genial.

 

E é preciso atenção

para ouvir dos outros,

no meio dessa imensa balbúrdia

de suas falas acamadas em uma

comunicação casual ou soltas

nas molas de um desabafo,

a frase que a nós dirá respeito, a palavra

certa para orientar nossos passos.

 

 

 

 

 

 

Dançando na chuva

 

Montanhas brancas, desenhadas no céu

pelos recortes de nuvens de verão,

são afastadas bruscamente de cena

no vendaval de incerta duração,

enquanto em seu lugar o negrume

uniforme de massas mais revoltas

faz a chuva cair lavando a pele,

a alma, os ossos. Tudo gira em fusão, os passos pesam,

grudam na lama como a roupa encharcada

cola no corpo e, na terra sequiosa,

as sementes inchadas se esparramam

ao sabor do aguaceiro.

 

 

 

 

 

 

 

A segunda, Clones do Inglês, é a face de Leonardo Fróes consagrado como tradutor de Shelley e Goethe — e de poetas da prosa de estilo quase inimitável, como Faulkner, Virginia Woolf e Malcolm Lowry. Ele aqui faz um passeio de leitor por cinco séculos de poesia em  inglês, reciclando em brasilês comovido, para incorporar como seus, textos que achou em Thomas Wyatt, Philip Sidney, Jonathan Swift, William Cowper, Emily Brontë, Thomas Hardy, G.M. Hopkins, e.e. cummings, Louis MacNeice, John Berryman, Robert Lax e Douglas Dunn.

 

 

 Da quarta capa de Chinês com sono e Clones do inglês

 

 

 

 

 

 

 

A impressão que me dá, como tradutor, é que eu sou um intérprete, um intérprete no sentido musical da palavra. Um instrumentista que está diante de uma partitura, e a mim cabe  a responsabilidade  de executar — à minha moda, claro — aquela composição original de uma outra cabeça, pela qual, aliás, eu tenho uma grande admiração. Como eu não sou nada musical, a tradução é o meu momento de execução.

 

É o momento de execução literária, mas você encara como se fosse uma recreação mesmo,  que você tem a cada momento. Você  tem que fazer aquilo  com uma responsabilidade muito grande de ser fiel ao original [que foi  escrito numa outra língua, numa outra época], e sabendo, por outro lado, que você vai escrever um livro em português que não existia,  que você vai criar uma coisa nova [...]. Então, é muito prazeroso.

 

Leonardo Fróes

Programa Livros na Mesa, exibido em fevereiro de 2006

 

 

 

 

 

 

 

 

A gata recolhida

(William Cowper, 1731-1800)

 

 

Grave como a um vate convinha,

A gata de um poeta, quietinha,

Dava-se ao vício de encontrar

Cantos nos quais poder ficar,

Segura igual na toca um rato,

E ali pensar em tom pacato.

De onde lhe veio essa mania —

Não sei: ou  a Natureza a enchia

De filosofia pedestre,

Ou ela a pegou de seu mestre.

Ora subia, bem lampeira,

Num pé de pêra ou macieira

E, na forquilha se instalando,

Via o jardineiro penando.

Ora buscava o refrigério

Num regador velho e vazio

Onde, se um leque ela empunhasse,

Seria dama de alta classe

Pronta num coche a melhor sorte

Para o transporte até a corte.

Mas a mudança contumaz

Não só à  nossa raça apraz.

Também é forte entre os bichanos

Esta paixão que arrasta humanos.

A gata, ao ver que no relento

Subir  a expunha a muito vento,

Achou a lata do utensílio

Um incômodo reduto frio:

Portanto quis, como variante,

Um lugar mais aconchegante,

Imune ao frio, infenso ao ar      

Que o pêlo poderia estragar,

E o foi buscar para um bom sono

Dentro da casa de seu dono.

Eis que por sorte um escaninho

Forrado do mais puro linho,

Desse trazido por mercantes

Da Índia ao rol das elegantes,

Uma gaveta aberta à frente

No alto da cômoda imponente,

Funda e com espaço para usar,

Intimou-a a lá cochilar;

Sem expressão, tal seu deleite,

Tomou-a a gata por aceite.

Logo espichada no bem-bom

Para ninar-se ao seu ronrom,

Dormia já que nem morrida,

Alheia aos problemas da vida,

Quando surgiu a arrumadeira

E fechou-a, ativa, às carreiras;

Não por maldade, e sim, se errava,

Por não saber quem lá trancava.

Desperta ao choque, esta dizia:

"Gata tratada assim havia?

Ora, a gaveta estava aberta

Só para eu ter morada certa,

Pois bastou eu me acomodar

Para a mocinha a vir fechar.

Que lenços finos! Oh, que incrível!

Que refúgio mais aprazível!

Vou aqui descansar resignada

Até o Sol em retirada

Chame ao jantar e ela então venha

Livrar-me ao certo dessa brenha".

Entardeceu, o Sol baixou

E a gata lá continuou.

Passando a noite lentamente

(E ela no escuro eternamente),

reavivou-se a manhã trêfega,

a tarde cinza fluiu sôfrega

E, qual se a tumba já a tragasse,

Ninguém notou que se ausentasse.

Com fome agora e ânsia de espaço,

Prevendo a gata alto embaraço,

Não mais roncava nem dormia,

Cônscia do risco que corria.

À noite o poeta, atento e sério,

Ouviu unhadas de mistério;

Inquieto o nobre  coração,

Perguntou-se ele: "O que serão?"

Pôs a cortina bem de lado

E nada viu de inusitado.

Porém, de orelha em pé, supôs

Alguém preso na cômoda a sós

E, incerto, quis por previdência

Ali deixá-lo em permanência.

Por fim um som habitual,

Um longo e taciturno miau,

Ouvido em seu lírico credo,

Consolou-o e espantou o medo:

Largada a cama, ei-lo que, inteiro,

Foi explorar o gaveteiro,

Abrindo embaixo e, ao mesmo escopo,

O resto em série até o topo.

Pois é verdade bem sabida

Que, quando a coisa está perdida,

Em toda parte a gente a sonda,

Menos onde a coisa se esconda.

A gata aí pulou pra fora,

Menos cheia de si que outrora,

Já não tão tonta à apreensão

De chamar do mundo a atenção,

Mas modesta, sóbria, curada

Das hipérboles tiradas,

Pronta a aceitar qualquer lugar,

Que não gaveta, para estar.

Na volta ao leito o poeta então

Fez a seguinte reflexão:

 

 

MORAL

 

 

Cuidado com o sublime enlevo

De seu valor e seu relevo:

O homem que se julga o tal,

Dando-se importância total,

E acha que tudo, à volta, em cheio,

Se move e atua com ele ao meio,

Verá nas horas de aflição

A insensatez dessa expectação. 

 

 

 

 

 

Seria melhor  que me chamassem escritor, porque tudo que faço está integrado. Eu não faço uma distinção muito grande entre a minha poesia e as minhas traduções, nem deixo de ser poeta quando faço uma tradução de caráter científico [...] ou a tradução de textos cristãos do século Xll [...].

 

Tudo, para mim, Leonardo Fróes, é parte do meu trabalho. Uma simples resenha de livro que faço,  para mim, é parte do meu trabalho como poeta — não deixo de ser poeta quando vou criticar um livro, no jornal, para ganhar a minha vida.

 

Leonardo Fróes

Programa Livros na Mesa, exibido em fevereiro de 2006

 

 

 

 

        

 

 
 
março, 2006
 
 
 
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Leonardo Fróes, poeta conhecido por suas atividades na imprensa e como ensaísta e tradutor dos mais respeitados, já transpôs, para o português, livros de William Faulkner, George Eliot, Malcolm Lowry e Lawrence Ferlinghetti, entre outros. Montanhista e naturalista amador, traduziu também livros de especialistas em ciências da natureza, como o ornitólogo Helmut Sick e o mirmecólogo Edward O. Wilson. 
 
Algumas Publicações: 1) Poesia: Chinês com Sono | Clones do Inglês (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2005); Vertigens (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998) e Argumentos invisíveis (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1995) — este, ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia, em 1996. 2) Tradução:  Contos Completos, de Virginia Woolf, (São Paulo, Editora Cosac Naify, 2005); Esquetes de Nova  Orleans, de William Faulkner,  (Rio de Janeiro: José Olympio, 2002); O triunfo da vida, de Shelley  (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001) — tradução e ensaio; Trilogia da paixão, de Goethe  (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1999) — tradução e ensaio; Panfletos Satíricos, de Jonathan Swift (Editora Topbooks  1999); Middlemarch, de George Eliot  (Rio de Janeiro: Editora Record, 1998) — trabalho que  lhe rendeu o Prêmio Paulo Rónai de Tradução, em 1998).  Também é dele a compilação de histórias e lendas advindas da tradição oral do Oriente, Contos orientais (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2003) e a  biografia do poeta Luiz Nicol Fagundes Varella, Um outro. Varella (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1990). 
 
 
 
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