Quando do lançamento do volume Vertigens — Obra reunida (1968-1998), de Leonardo Fróes, numa resenha de Alberto Pucheu (1999) é destacada, entre "as questões fundamentais da poesia de Fróes", "a do poeta que, lançado em busca de si mesmo, encontra somente a perdição e o constante devir". Sob essa condição, a poesia impossibilita "a dicotomia entre mundo exterior e mundo interior" e, com isso, acaba dissolvendo "a subjetividade no comunitário ou, mais freqüentemente, na natureza", o que oferece ao leitor uma oportunidade para se aventurar "em uma ambiência de 'desrespeito aos limites'" — em devires de uma experiência de "despersonalização extática", na qual se fundiriam os reinos animal, vegetal, mineral e até das máquinas.

 

Poesia e êxtase encontram-se intimamente relacionados na chamada era arcaica da literatura grega1, e, "pelo menos desde Platão, sabe-se que o sujeito lírico não se possui, na medida em que ele é possuído por uma instância, ao mesmo tempo a mais íntima de si e radicalmente estrangeira" (Collot: 2004, p. 166)2. Em Fedro (Platon: 1933, pp. 31-33), Sócrates inclui, entre os quatro tipos de loucura (manía) cujas origens seriam divinas (p. 31), aquela que, ao mesmo tempo chamada de "loucura" (manía) e de "possessão" (katokokhé), vem "das Musas", "elevando" e "transportando em delírio" (p. 32) a alma (psykhé) que, então, se exprime em "odes" e em "poesias diversas" (p. 33). O mesmo tema aparece em Íon (Platon: 1984, pp. 59-72): Sócrates convence Íon de Éfeso de que não existe a arte (téchne) do rapsodo, sendo a loucura/possessão divina que produz as obras dos bons poetas épicos e líricos.

 

Apesar dos bastante diferentes contextos históricos, Hugo Friedrich (1978) acredita que este legado grego teria continuado na lírica moderna graças à "anormalidade" desta — isto é, ao fato de que os poetas modernos, procurando nos conduzir "ao âmbito do não familiar" (p. 16) e, com isso, afastando-se da realidade, ou melhor, transformando-a (p. 17), opõem-se àquela definição tradicional de lírica, "colhida da poesia romântica", "como linguagem do estado de ânimo, da alma pessoal" (p. 17). "O conceito de estado de ânimo", continua Friedrich, "indica distensão, mediante o recolhimento, em um espaço anímico, que mesmo o homem mais solitário compartilha com todos aqueles que conseguem sentir", ao passo que a poesia moderna evita exatamente essa "intimidade comunicativa" (id.), pois "prescinde da humanidade no sentido tradicional, da ‘experiência vivida’, do sentimento e (…) até mesmo do eu pessoal do artista", que "não mais participa em sua criação como pessoa particular, porém como inteligência que poetiza, como operador da língua, como artista que experimentou os atos de transformação de sua fantasia imperiosa ou de seu modo irreal de ver num assunto qualquer" (ibid.).

 

Hugo Friedrich chama a separação entre poesia e confissão empírica de "despersonalização" (p. 36)3, conceito similar ao de "escritura", formulado por Roland Barthes (1988). Escritura se define como "a destruição de toda a voz, de toda origem", como "esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve" (p. 65). Em suma, a escritura tem início a partir da chamada "morte do Autor". Como "nas sociedades etnográficas, a narrativa nunca é assumida por uma pessoa, mas por um mediador, um xamã ou recitante — um rapsodo —, de quem, a rigor, se pode admirar a performance (…), mas nunca o ‘gênio’" (pp. 65-66), Barthes denuncia que o Autor não passa de uma "personagem moderna, produzida (…) por uma sociedade, na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo" (p. 66). A partir desse prestígio, impôs-se o "império do Autor", cujo principal requisito é a busca da "explicação da obra" na vida da pessoa que a produziu, e contra o qual certos escritores vêm se insurgindo — entre estes4, consta como nome principal Mallarmé, para quem "escrever é, através de uma impessoalidade prévia (…), atingir esse ponto onde só a linguagem age, ‘performa’, e não o ‘eu’" (id.).

 

Barthes define o texto sem Autor como "um tecido de citações" (pp. 68-69); da mesma maneira, Hugo Friedrich (op. cit.) destaca que o eu presente na poesia de Rimbaud, chamado de vidente (voyant), ao desprender-se de sua pessoa empírica, "pode vestir todas as máscaras, estendendo-se a todas as formas de existência, a todos os tempos e povos" (p. 69) — trata-se, em suma, de um eu tornado "planetário" (id.) através do autodespojo da subjetividade, autodespojo cujo "ato operativo" consiste "em desordenar lenta, infinita e arrazoadamente, todos os sentidos" (p. 63)5,  "A poesia", conclui Friedrich, é uma "nova linguagem, linguagem universal (…), uma urdidura do ‘estranho, insondável, repugnante, extasiante’" (id.).

 

A potência extática se coloca, segundo Michel Collot (2004), como uma "regra" para a poesia moderna (p. 165). Contrariando, pois, "toda uma tradição que, certamente, tem uma de suas origens e maiores expressões na teoria hegeliana do lirismo, concebida, por oposição à poesia épica, como ‘expressão da subjetividade como tal […], e não de um objeto exterior’" (id.), o poeta moderno é aquele que perde "o controle de seus movimentos interiores" para "ser projetado em direção ao exterior" (p. 166). Da mesma maneira que vimos em Barthes, não há na dinâmica de composição lírica nada de genial, não existindo por que reclamar para si um sujeito que se abandona e se submete ao outro da linguagem: o sujeito lírico de que fala Collot está "longe de ser o sujeito soberano da palavra" — antes, "se encontra sujeito a ela e a tudo o que o inspira" (p. 166). "Ceder ao canto e ao êxtase" seria simplesmente "deixar se embalar pela língua, entregar-se ao mundo e aos outros" (id.) — entrar em devir.

 

Graças à ausência de fundamentos transcendentes ou transcendentais característica da contemporaneidade, essa submissão, esse "arrebatamento em direção ao outro" soa como uma "alienação" (ibid.). Esta não é, de fato, algo pejorativo: trata-se de uma assunção do caráter sobretudo performativo da experiência lírica — o fim da tirania do Autor, conforme diria Barthes. "Talvez seja nessa alienação", continua Collot, "precisamente ao se distinguir de um eu que sempre se quis idêntico a si mesmo e senhor de si e do universo, que o sujeito lírico pode se realizar" (ibid.).

 

Também Gilles Deleuze (1997), no ensaio "A literatura e a vida", procura destacar o caráter realizador que a experiência lírica pode proporcionar. Como literatura e vida são incompatíveis, não consigo mesmas, mas com a forma, com o acabamento da expressão, a literatura estaria "do lado do informe, ou do inacabamento" (p. 11): escrever é "um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida" (id.). Expressar-se é se estabelecer numa forma, sinônimo de imposição por parte da formalização dominante, o "devir-Homem" (ibid.). A literatura não se reduz à forma, tampouco a vida se confunde com o vivível ou com o vivido: estaríamos num constante devir com elementos que apresentam "um componente de fuga que se furta à sua própria formalização" (ibid.). Devir é "encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação" (ibid.), em que as características formais se extinguem. A literatura é um caso de devir na medida que "só se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal", e "só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu" (pp. 12-13). Trata-se da potência de saúde possuída pelo devir e, por conseguinte, pela literatura, já que ambos oferecem a possibilidade de desobstruir o processo de atravessamento da "Vida", demonstrando a precariedade da forma (pp. 13-14).

 

Para Leonardo Fróes, o estado poético começa com a constatação de que eu não pertenço "nem a mim, nem à ordem das coisas ou à classificação dos inícios, fins e fases intermediárias" (Fróes: 1998, p. 216): a poesia torna fracassada qualquer tentativa consciente de delimitação formal, desapossando o sujeito de seu corpo e de seus pertences — ela é um "baque que derruba a gente no estranhamento" (id., p. 162). Quando escrevo, "devo estar pertencendo a outro planeta. O do Silêncio. E no entanto essas palavras me mordem — exigem para passar para fora. Escrevo obedecendo a um registro. A fala que me conscientiza já é estranha totalmente à idéia habitual de quem sou" (ibid., p. 134). A escrita se dá como um momento erótico em que "você no máximo percebe que está entrando, gozando em outros organismos, desaparecendo, sumindo dessa idéia diária de existir um você" (ibid., p. 130).

 

Se "sou cada vez mais eu sendo vosso e ainda vário" (ibid., p. 20) — se é tornada ilusória a fronteira entre mim e o outro, o desapossamento desencadeia não apenas a equalização entre ambos, mas também o oferecimento daquilo que ordinariamente parece me pertencer — daquilo que de fato nos pertence: sou "solidário" (ibid., p. 18), "nasço de vós, convosco vou" (ibid., p. 21), "vou convosco nas veias, vou convosco na carne" (ibid., p. 22), "vos pertenço" (ibid., p. 21), "nada tenho de meu" (ibid.), "vosso sangue é o mesmo que jorra dos meus brados" (ibid.), "vosso sangue sou eu, e eu sou dos vossos, nada em nós é distinto" (ibid.), "vosso é o meu desvario, somos unos" (ibid., p. 22). O poema que escrevo tem ritmo "arbitrário" (ibid., p. 19) e deixa de me pertencer quando faz com que eu saia de mim — "me suplanto, me extasio, me dissolvo libertário" (ibid., p. 20): "o poema, sendo vário, é sempre uma coisa minha de fundo comunitário" (ibid., p. 18); não passo de um "fiel escriturário" do "mundo imaginário" (ibid., p. 20), de um "modesto operário", que assume nunca ter sido "feliz proprietário" de um "talento" (ibid.). Minha satisfação é contemplar o poema, nosso, entranhado na totalidade dos "meandros planetários" (ibid., p. 19) e, ao mesmo tempo, pungindo "dentro do peito de onde é originário" (ibid.) — "nós-mim" (ibid., p. 153).

 

Minha dissolução no outro, minha potência comunitária, pode encontrar um obstáculo quando há entre nós uma indisposição. É o que se vê, p. e., no poema "Compromisso" (ibid., pp. 21-22), de seu primeiro livro, Língua Franca, publicado em 1968: "vossos ídolos mortos me repugnam", "vosso luto me enoja", "vossas tropas me caçam"; vós possuís "lucros e perdas", "ânsia", "grades de ferro", "ouro" que me "tenta mas não cedo"; quanto a mim, "caminho por esse labirinto de argamassa, tédio, tijolo e fezes", "e nem sei como ando, antes me empurro, vou por força do hábito", "apenas fujo, chego à beira do abismo", "vou sem rumo direto, vou sem armas, vou apenas por ir", "de albergue em albergue, sem destino", e "em cada canto de mim vosso retrato clama por mais afeto, exige amor". Na poesia de Fróes, tudo surge a partir do biográfico6 e quando foi composto "Compromisso", "estávamos no pior período da ditadura militar, você andava de carro e as ruas estavam cheias de batidas policiais" (id., p. 10): o outro que me oferece obstáculos deve ser o país ditatorial e hostil do final da década de 1960.

 

Embora tenha sido visto que falar de um sujeito lírico "despersonalizado", tradicionalmente, requer demonstrar como se opera uma quebra com a poesia baseada no relato empírico da vida do poeta, a importância do dado biográfico e cotidiano na poesia de Fróes não invalidaria a terminologia cunhada por Pucheu, "despersonalização extática", já que o adjetivo, aqui, introduz a noção de que, ao rompimento das barreiras individuais, sucede o êxtase, o mergulho numa "zona de vizinhança" (Deleuze: 1997, p. 11) que não apenas excede ao eu, mas o atravessa — o inclui. O modo como Leonardo Fróes dimensiona o aspecto empírico em sua poesia implica numa poetização do cotidiano e numa cotidianização da poesia: esse biografismo extático não poderia prescindir, portanto, daquela imprevisibilidade de conteúdos característica  da poesia moderna (Friedrich: 1978, p. 6), tampouco estabelecer-se-ia na figura onipresente e onipotente de um Autor que viesse a prejudicar ou diminuir a participação do leitor na construção do texto (Barthes: 1988, p. 66), já que o êxtase supõe uma "passividade fundamental na posição lírica", uma "submissão" de seu sujeito (Collot: 2004: p. 166). "Não sou capaz de dizer tudo sobre a minha obra. O leitor vai observar coisas que me escapam. Esse é o momento em que a literatura passa a existir, quando ela significa alguma coisa para alguém de fora que não o autor" (Fróes: 2003, p. 8). Os poemas de Fróes são registros de uma vida e de uma poesia que não se formalizam tiranicamente: "o mim elástico das ventanias evita de beber os conceitos da lata corporal tão pequena" (id., p. 154). Como num "Feitiço Fantoche", "não ajo, sou agido, sigo as molas do corpo e a noite rola por cima da ilusão do que penso puxando para onde bem quer os meus cordões de fantoche" (Fróes: 1998, p. 200).

 

"Eu mudamos de repente como um grande manequim de brinquedo cujas articulações ignoro" (id., p. 155; grifo nosso): o devir me impele a uma pluralidade, a um processo de metamorfose contínua, de não-formalizalição, no qual tudo está entre, tudo se dá em "intervalos" (ibid., p. 124) em que ocorre uma "diluição inevitável" (ibid.) entre mim e o que não apenas me cerca: "ambos vazamos (…) e assim desaparecemos" (ibid.), participamos da "fluidez universal incessante" (ibid., p. 131), "quando não há supremacias nem trancos, obstáculos nem visibilidades, garras para iludir o vazio" (ibid.). Assim, como "provavelmente existe um rombo sem forma no espaço casual sem razão" (ibid., p. 154), somos um "monte fenomenal de areia elétrica que vaza em sucessivas cortinas e jamais se deposita numa construção exclusiva" (ibid., p. 131).

 

A partir do terceiro livro de Fróes, Esqueci de avisar que estou vivo, publicado em 1973, a despersonalização extática parece se intensificar e se voltar, aos poucos, para o mundo natural — o que tem como paralelo a mudança do poeta para a cidade de Petrópolis, mais especificamente para o bairro rural de Secretário, bem como o seu crescente interesse pela causa ecológica. "Nos últimos anos, a influência maior [na poesia] é dessa vivência da natureza. São já trinta anos que estou enfiado no mato. Vira e mexe estou na mata. E a mata você não enfrenta impunemente" (Fróes: 2003, p. 7): Leonardo Fróes encontra uma natureza forte, ameaçadora, imensa, dotada de um "ritmo nunca monótono" (id., p. 9), e que, "como a poesia, é uma ameaça, ela pode aniquilar algo que é seu para fazer você se transformar em outra coisa" (ibid.). Diante dela, ou melhor, nela, nos seus fenômenos, sinto uma "desproteção total violenta" (Fróes: 1998, p. 281), e quando a contemplo apenas espio "essa nudez de coisas que se entregam à embriaguez da própria criação" (id., p. 72), submeto-me à sua totalidade sem indagá-la (cf. ibid.), entrego-me à "participação desmedida entre todos os seres e coisas que naturalmente acontecem" — participação que chega ao "espanto", "uma conjugação maravilhada rodando que faz da separação entre os objetos e eu uma colocação absurda" (ibid., pp. 126-127):

 

 

Eu não sei mais o que sou eu e o que é a natureza. Acho que eu sou a natureza, ou a natureza me é. A minha imersão é tão grande, e já são tantos anos que eu vivo no meio das árvores, animais, dos rios e das montanhas, que não tenho mais essa noção que sou coisa distinta deles. Que a natureza é outra. Acho que sou parte disso, sinto isso de maneira carnal, corpórea. Muitas vezes, por exemplo, diante de uma árvore, não sei mais quem é árvore, quem é homem7(Fróes: 2003, p. 11)

 

 

Rompida a membrana entre que separaria os mundos, abre-se espaço para o devir que não cessa de demonstrar minha pequenez progressiva até seja atingida minha anulação: "vou virando pedra e livre vou virando cisco" (Fróes: 1998, p. 94). "Tendo entrado numa rotação de esferas" "onde tudo vai desmanchando calado", porém "se reconstruindo" (id., p. 127), posso sentir "minha insignificância perfeita" (ibid., p. 120) que não me soa, portanto, como mero desaparecimento, mas como ingresso em "parte da possibilidade que se articula" (ibid., p. 127): sou um "ponto perdido da trama perfeita que não admite definição sobre ela" (ibid.), tenho "as idéias mais animais de eu me transformar um dia em película, imagem, aragem, escama, poeira ou filtro, qualquer coisa que eu sinto sem poder definir com uma palavra qualquer no momento justamente polar de me ocupar a cabeça a qualidade que há em mim de fera e cuspe" (ibid., p. 178). Como na dinâmica sexual, sou uma "brecha na qual as outras energias se enfiam" (ibid., p. 130). Sujeito-objeto, "rapto-me e opto-me como se eu mesmo fosse me comer inteiro", "abro-me", "brinco de me dar" (ibid., p. 89) ao universo natural, onde "as coisas simplesmente nascem" (ibid.) sem forma, sem fronteiras. A poesia, em suma, é "um convite ao personagem para se tornar o que é" (Fróes: 1990: p. 9):

 

As pessoas em suma não existem. São fragmentos. O que também não é verdade porque assim pareceria que as pessoas são coisas. Elas são articulações hipotéticas onde a energia ambiental se polariza e se encaixa. Você pode se contentar com a forma estática em uso, considerar-se em segurança num blusão colorido, reconhecer detalhes desse corpo como a pinta no ombro, plantar na cabeça objetivos aéreos e achar que sua pele oportuna é uma fronteira, que existe entre um dentro e um fora essa homogênea separação protetora. Você pode também pegar pessoas na mão, supondo entre as partes que se tocam alguma solidez confortável (…). Mas tudo isso desmancha de repente quando você penetra fundo e é comido sem dor. Agora não tem ninguém definido por objetivos, detalhes, referências, explicações consoladoras do espelho sobre a forma estonteante e banal que estaciona em seus olhos. (Fróes: 1998, pp. 130-131)

 

A montanha é a imagem da imensidão da natureza, da "sobrenatureza" (ibid. p. 197); escalando-a com esforço, perco minha identidade, meu corpo, o comando de meus movimentos — passo de "animal" a "um organismo em movimento reagindo a passadas" (ibid., p. 243) que "confia apenas nos instintos que o destino conduz" (ibid); "puxado sempre para cima", o organismo é um "ímã, numa escala de formiga, que as montanhas atraem" (ibid). O animal "conhece alguma liberdade, quando chega ao cume" (ibid): submeto-me à anulação extática para encontrar-me liberto. "Não há paredes para o grito de se sentir existente" (ibid., p. 67). O devir é a "travessia" cujo "mapa" é "sem contorno e sem trajeto" (ibid.), sem forma8 o devir é um "gesto de agarrar o sem corpo, febre, fúria, perseguição grotesca do invisível" (ibid.), é a entrada "na esfera brumosa de uma incauta geometria" (ibid., p. 73). Só posso me definir a partir da transformação, do devir que a natureza proporciona — "não me acho enquanto solidez: vou flutuando como onda inconstante na correnteza" (ibid., p. 281): diante da "impressão incerta de estar numa travessia sem freios" (ibid., p. 81), "me torno um navegante do possível" (ibid., p. 73), um "artesão do possível" (ibid., p.74), "um ledor de indecifráveis" (ibid.), um "doutor em absurdas ciências que, ao nada explicar, conduzem à alegria do escuro — ao urro da aceitação animal" (ibid.). "Eu como sempre estamos sempre perdidos porque não há o que encontrar entre os pensamentos e a porta que corta a nossa imagem mordida em fatias urradas" (ibid., p. 153): o devir me impõe a imprevisibilidade da chegada ao pico da montanha, "onde eu viramos alguém como um vulcão de fantasias" (ibid., p. 153), e me sinto "disperso entre as nuvens", achando ter reconhecido meus limites (ibid., p. 243) — não sabendo, contudo, que agora tenho de aprender a descer (ibid.). "Sei apenas que estou"9 (ibid., p. 178).

        

 

 
 
março, 2006
 
 
 

(Estudo publicado em Garrafa, n. 6, maio-agosto de 2005)

 
 
 
 
 
 
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Mauro Cezar de Souza Junior, aluno do curso de mestrado em Teoria Literária do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Sua dissertação, a ser defendida até o final de 2006, terá como objeto de estudo a poesia de Leonado Fróes (pelo que se sabe, trata-se do primeiro trabalho acadêmico de grande fôlego sobre o poeta). Publicou SOUZA JUNIOR, Mauro Cezar de. Poesia e possessão extática na obra de Leonardo Fróes. In: Revista Garrafa no. 6, Rio de Janeiro, maio-agosto de 2005. Disponível em www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa6/14.html. (Em breve, outro artigo seu, a ser publicado na próxima edição da Garrafa. Nele, o autor procura traçar paralelos entre a poesia de Leonardo Fróes e de Gary Snyder.) Mais em www.zervan.weblogger.com.br
 
 
Mais Mauro Cezar de Souza Junior em Germina
 
 
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