sala de ser

Em cada coração há uma sala-de-estar
onde se aguarda
o momento da permissão
para entrar
e ser

Mas quando há ferrugem nas línguas
e são antônimas as sílabas
e descobre-se que na sala principal
não há sequer
uma cadeira para se sentar,

o ser se retira
deixando vazio aquele lugar

quem estava
continua estátua
onde está

 


acordar

Prefiro os pássaros voando nos tímpanos,
antes mesmo da descoberta do corpo na cor da manhã recente.
Depois, sim, vem o ar (ou a consciência de que existe o ar)
abrigando os pulmões no ofício essencial da existência:
antes de serem tristes ou alegres,
os homens respiram a esperança.

Em segundo lugar,
os olhos descobrem no escuro alguma coisa acesa
trazendo luz ao fundo de suas retinas
antes do pequeno engano lilás do abajur ainda indeciso.

Se o dia já é claro,
as janelas fechadas não impedem a primavera das horas
onde a aurora se ergue e não pára
O medo do mundo, sim, pode quebrar a chave na porta
e deixar as palavras sem saída.
O medo do mundo é um pesadelo de olhos abertos.

Por último,
o banho reconcilia o corpo e o espaço
As mãos separadas unem todas as partes do corpo;
a água,
líquido manto rebatizando os sentidos,
fundamenta o mundo
enquanto sua heresia espia e molha.
Depois do espelho
— com meu eu refém de mim —
volta a filha pródiga de todas as manhãs:
a vida!

 


metamórfico

Ei-la
em intervalos,
curvas olhando o vinho,
castiçais à espera do fogo,
pernas cruzando limites,
deslizando em minhas pálpebras,
mãos sobrevoando punhos,
cabelos descendo a crina de alados

Ei-la
ao infinito elevada
enquanto vela
pela leve impressão
de ser
muito mais
do que estar

 


realejo

Estar a caminho dos teus desejos
não é propriamente ser uma pedra...
[é assim que eu relampejo]

O obstáculo pode ser um aviso
onde o encanto de qualquer palavra
sobressalta o mundo...
[é assim que eu te beijo]

Desejos são múltiplos
mas cada um deles é único em si
[é assim que eu realejo]

Estar a caminho do teu caminho
poderia ser um contratempo
não fosse eu espelho
disso tudo que eu desejo.

 


o poeta

No canto da boca,
o lado direito do cérebro
deixa escorrer a saliva
suando em nudez os versos.

Na ponta da língua,
o lado esquerdo do peito
mantém os lábios
lembrando do beijo
e lutando.

No punho, um grito!

No sonho, um canto:
a sensação de que tudo
poderia mudar em um minuto,
se o pensamento e o coração
igualmente avançassem
sem tumulto!

 


ressurreição

Como não olhar a pedra
sem lembrar do pó?

E escorrer o pó pela memória,
sem transmutá-lo em pedra?

 


assim na terra

De onde vem
esse vento que arrasta tudo
como se o tempo
fosse nosso único mestre?

Com um simples toque
eleva a pedra ao astro,
ou desce o rastro da estrela
às marcas profundas
dos pastos...

 


operária

A palavra lava
lima, limpa
lavra
A palavra é válida
lívida, vívida
vivida
Livre,
ali na veia do verbo
ave inteira, árvore intacta
Toda matéria é palavra-prima
pálpebra acima,
olhar sobre tudo,
como quem ama em plena piracema
Toda palavra é grave,
quando expulsa o silêncio,
e ao silêncio engravida
e transpassa
O sangue significa a sua cor
buscando o ar
que atravessa os pulmões,
tanto quanto significa sentir
o prazer e a dor
de falar

 


raiz

Lá estão minhas coisas, meu cão
Minha casa em repouso sobre a canção do mundo.

Lá estão minhas grandes causas,
graves conseqüências:
Minha cama, meu amor
O que é meu, enquanto Deus assim o quiser.

Lá estão as aves sobre as árvores
Os homens em minha memória
e a eterna marcha da terra até o horizonte.

O coração é fruto da história
O coração é raça e fome
quando agora é mar
em meus olhos que nesse poema ancoram.

Aquele luar
Aquele lugar
Aquele chão tecido em barro
onde escorre meu caminho
como um sonho
em mim.

Aquele mar de riachos
Aquele pão de sol em fatias
Aquela rede, como um cacho de banana,
pendurada na varanda
embalando meninos.

A ave navegando pelo jardim
A nuvem úmida descendo pelo olhar
até nós
e em mim.

 


longa canção do trigo

M de mãe
olhando seus filhos nas mãos
S de sol
deitando sombra ao coração
T de trabalho
uno, contínuo e nu em oração

Longe da terra,
nós jamais poderíamos lembrar da lua,
enquanto nossa comida era lama
e criava limo a friagem nua em nossa cama

Longe da terra
abençoávamos nossa própria desgraça
como se o destino dos homens
fosse mesmo de pedra, praça e pouco pão.

Ao voltar à terra
trouxemos o futuro em uma semente
e banhamos nossas palavras nos rios.

Nossa família voltou à vida
e chamou-nos novamente de homens.

Cada um de nós recebeu do sol um espelho,
um boné ainda sem sangue
e um grito vivo, verdadeiro e vermelho.

Ao voltar à terra as raízes sorriram
e nossas mãos se encantaram.

O olhar de nossos antepassados
indicaram o rumo da procissão;
estalando seus ossos
sob o chão compuseram
um novo hino.

Nossos passos agora marcam
a distância entre o murmúrio da plantação
que aguarda banhar-se em nosso suor
e o agudo silêncio da recém nascida esperança.

Veio um país juntar-se ao nosso rosto,
colher a nossa consciência
e exigir o nosso amor ao próximo.

Veio uma morte diferente,
uma forma de louvar a vida
deixando-nos cada vez mais distantes
dos buracos negros da estrada.

A chuva e o sol teceram nossas roupas
com o mistério natural das raças.

A vida, de açúcar e sal,
levou à cozinha a idéia comum
de legumes e frutas
como um bem
a ser dividido em si
como um fim.

Hoje, nossa faca que fere o pão
consagra a canção do trigo.

A enxada que rasga o chão
afaga uma oração calma.

É a volta do corpo à terra
sem o enterro da alma.

 


vapor de nós

Deito o limo de minha alma sobre o hino do teu corpo
Duo de asas nos espelhos da casa
Faíscas servindo de iscas aos faróis
alimentando de luz nosso cais.

Na canção de nossas línguas, o infinito é água,
mas o tempo não é só eternidade:
tem seu preço como um rio de sal.

Ressuscitaremos os vivos
para que a morte nunca lhes ampare
o precipício da arte.

Nosso porto mantém os navios inquietos,
extenuando a maré como viés dos oceanos.

Um corcel em teu umbigo,
ponta de língua elétrica, lírica e de lã.

Com o fogo, retorna vibrante;
dentro d'água, aproxima o instante;
sob a terra, é sêmen...
de instinto.

 


voar

Pássaros e pedras não podem caminhar juntos!
As pedras criam poeira e musgos;
os pássaros são visgos no ar.

As pedras são rudes, organizam muros;
enquanto os pássaros roçam mundos,
atravessam virtudes.

Pássaros e pedras são únicos,
jamais serão unos.

Como ciscos nos olhos, as pedras riscam;
os pássaros batem pálpebras, aliviam o olhar.

Com pedras se constroem prédios;
a partir de árvores, aprende-se a voar.

Pássaros e pedras nunca estão no mesmo lugar!

Uma pedra no ar agride o azul;
um pássaro dá asas ao sol.

As pedras no caminho lapidam-se em espanto;
os pássaros — companheiros do vento —
aliam-se ao seu instinto.

As pedras não alcançam os pássaros
e rendem-se à gravidade da Terra
caindo sobre suas próprias pernas;
os pássaros avançam acima das pedras
alcançam espermas
irradiam óvulos
e sucumbem à vida eterna!

 

 

(imagens ©victor pavez)

 

João de Abreu Borges, nascido no Rio de Janeiro em 1951, é carioca do Estácio. Sempre preocupado com as relações fronteiriças entre a Poesia e a Música, dedica-se há quase 40 anos a um trabalho engajado também no plano filosófico e político, em forma de reflexões a serem publicadas em futuros livros de ensaio como Poesia Viva e Mundo Poeta. Apresenta seu trabalho em diversos focos culturais da cidade do Rio de Janeiro, como eventos poéticos e shows de música. Com formação em Letras-UERJ, dedica-se também ao estudo e à pesquisa do processo criativo em poesia, buscando encontrar a essência do movimento interior do espírito humano quando se projeta na realidade social em que vive. Além de artista gráfico, também é editor de livros. Na Web, edita o portal Canção do Ser.