O FLAMINGO ANDINO
na lagoa colorada os pequenos pontos nus
juncam a superfície
do líquido branco e vermelho.
movem-se em delicada dança e num átimo
a cabeça mergulha
os olhos subaquáticos.
de tanto em tanto alguns levantam do chão
em vôos solitários e às vezes em grupo
numa tensão
entre a forma e o conteúdo.
o vento de aço não os afeta
e as plumas rosadas um pouco escondidas
juntam-se às negras nas pontas das asas
numa imitação do bico.
e ainda que seja pesado o corpo
curvam tão levemente o flexível pescoço
que evocam em plena Bolívia
a graça inapreensível
de uma bailarina oriental.
MICROCLIMA
não há mais sombra onde esconder o corpo dos raios
infravermelhos.
a noite soprava os restos do nosso último encontro
desencontradamente incerto.
perto de nós o bisturi das saúvas
e um corte longitudinal no verde das sebes.
sim,
guardei os cadernos outonais em que escreveste a rama do tempo
diante do límpido retângulo de vidro.
era verão talvez, não me lembro.
agora é tarde.
o vento suspendia as folhas inquietas.
dilacerei tuas cartas para ver o sangue das letras,
o papel permaneceu rigidamente branco.
alguém arrancara a raiz das palavras
ou então foi a seca
e o lavor incessante do sol.
era um acúmulo de frases.
há muito que estavam mortas.
MARÇO NO CENTRO
era o início de março no centro.
seu corpo junto ao meu corpo, uma
proximidade assustadora.
primeiro um sorvete de creme derretia
com o calor e as frases que dizíamos
escorriam sobre os livros
do andar de baixo.
confissões de chocolate.
depois pedimos um café e eu olhava espantada
uma palavra
que se debatia no líquido escuro.
pensei em socorrê-la com a colher, mas logo vieram
outras palavras
e mergulharam no copo d'água.
(na mesa a margarida inclinava-se)
era tudo tão claro, apenas aquela palavra
turvava a nitidez do dia.
olhei novamente
e ela jazia no fundo da xícara,
imóvel.
TRADUÇÃO
Se a linguagem é uma caixa de ferramentas
com a qual eu tento
traduzir
as linhas do seu rosto,
pego o martelo
e esmago os sentidos que ficaram por vir.
você achava que havia um problema
de interpretação
e que quando eu dizia te quero
você não sabia se eu te amava ou não.
é certo que não entendo a sua língua
e às vezes entendo apenas a sua língua,
nada mais,
e por isso apanho pregos e cola
para consertar nossos equívocos.
e por mais que seja possível determinar a sintaxe
das frases
não sei como as minhas coxas vão parar
insistentemente
em cima da sua perna.
você dizia que era uma questão de pragmática,
e não de semântica,
enquanto eu me punha a procurar os fósforos
que iluminam a nossa topografia, nossas viagens
sem bússolas
nossos percursos sem mapas
– somos sempre estrangeiros.
mas se a linguagem é mesmo uma caixa de ferramentas,
que formão é capaz de abrir-me o peito?
SANTIAGO DE CHILE
Podíamos tomar um helado
sentados num coffee shop
se não fosse você quebrar o nosso velho pacto
de línguas
e dizer que gostava das tardes opacas.
sí, pero no hay frio no Rio de Janeiro
e aqui, em Santiago de Chile,
a cinza do teu cigarro parece uma
estalactite,
contando as horas,
minutos, segundos
da minha partida.
enquanto você girava a brasa
entre os dedos,
desenhando no ar elipses de estanho,
eu prendia a respiração
para que nenhuma onda
ou mesmo o pulsar dentro do peito
ameaçasse o frágil equilíbrio
da varinha mágica em tua mão,
mas você
rindo muito e declamando Nicanor Parra
cortou o ar de um golpe:
ABRACADABRA
e hasta la vista!
LETES MARINHO
estirada sobre a areia
vislumbro nuvens esgarçadas
são franjas
fiapos de memória
(os olhos refletem o céu)
e o lento pincel que dissolve o branco
no tecido oblíquo
traz nesgas de outras manhãs
de vento cabelos e água salgada
distraidamente
observo a minha pele
salpicada por inúmeros grãos
certas imagens penduradas nos
cílios
(asperezas de areia e de ciscos)
arranham as estampas
de rostos
de nomes sorvete e risos
mas de repente
desperto
sob o rumor incisivo dos corpos
em diapasão
e num súbito movimento
levanto
esbatendo as tintas
de onde revoam grãos
e vozes de outras manhãs
e com a opacidade de um olhar vazio
molho apenas os pés
na água fria