RUÍNAS

 

para além das ruínas

uma cidade

                      impenetrável

o viajante apenas olhava

não conhecia a senha

embora a cidade não tivesse muros

nem portas

 

recolhidos numa pequena caixa

os vestígios

aguardavam

pacientemente

 

(chegará o dia?)

 

o viajante

                    agora cansado

abria a caixa

num ímpeto de escavação

eram traços

maços de cartas

atados com barbante

e um vago bloco de notas

eram destroços

um pequeno frasco

oitavado

cuja esparsa essência

se volatizava

 

 o viajante caía perplexo

 

e para além das ruínas

a cidade

  desaparecia

 

 

 

 

 

AS ARTES DA GUERRA

 

Nem sempre o trajeto parecia pacífico

quando sentávamos lado a lado

e as avenidas corriam soltas à nossa volta,

esmagando mangues, favelas,

praças.

Em poucos minutos o sol declinava

e deixava acender-se uma promessa

de fúria.

Uma vez nós vimos um caminhão tombado,

o esqueleto à mostra.

Homens vitoriosos carregavam a sua

carcaça

como despojos de guerra,

e eu pensava nos bárbaros,

nos cavaleiros medievais,

e pressentia outras lutas

— ainda por vir.

Nós sorríamos,

cúmplices e irônicos,

talvez inocentes,

cegos para as mãos que mergulhavam

em sangue.

 

 

 

 

 

A INFELIZ

 

Roma expunha a carne nas limusines, o olhar de netuno esmorecia para além da via veneto, quando o suor  encerava as pedras do chão.

 

ela recebia moedas, procurava alguém

 

e passava atravessando as noites gastas, o corpo exposto nos púlpitos ornamentados, guiando o sonambulismo prematuro dos astros.

 

ele era ator de cinema

 

o fôlego composto nas extremidades dos nervos conduzia-os da fontana di trevi ao dossel da cama.

ela permanecia tanto ou mais.

 

vigiava a solidão armada de asas

 

um número de hipnose arriscava os cílios vibráteis no ponto em que o músculo tensiona as amarras e as válvulas disparam gotas de lava alcalina.

 

o outro era contador

 

do sonho transformado no odor infecto das rosas maceradas, ela tombava despenhadamente, junto ao rio, na proximidade das formigas.

 

a cabeça vizinha do chão

 

mas como quem roça o ocaso, ela emergia da terra envolta pelo canto das vozes, e ainda assim sorria.

 

 

 

 

 

 

RETRATO DE MALDOROR QUANDO POLVO

 

descendo de um ancestral primitivo que viveu no período pré-cambriano.

sou da classe dos cefalópodes, de estirpe pouco nobre, mas me orgulho de ser uma espécie bem desenvolvida.

 

talvez vocês imaginem que tenho uma inteligência rudimentar. puro engano.

 

se não entendem a minha linguagem é porque não me interesso pelo gume das palavras, prefiro o toque exato das ventosas e a palheta colorida da pele. sei que vocês não compreendem.

 

por vezes um vento meridional agita a linfa que corre em meus tentáculos, a parte humana vibra insensata e a saliva coagula em milhões de sentidos. não é possível atravessar as águas sem esbarrar no afiado plâncton da língua.

 

assim, de vez em quando, por descuido — ou desejo de um exercício perigoso — toco uma palavra, o sangue escorre dos braços

 

e como a ferida se aprofunda na carne, balbucio pesadamente o som em que morrem os lábios.

 

 

 

 

 

 

O SALAR DE UYUNI

 

no princípio era o branco

a página gigantesca de um livro

impresso com caracteres fugidios

na branca dimensão vazia

dos tempos imemoriais

 

ao nosso redor, branco

o solo compacto que parodia a neve

sem a suavidade da neve

e um deserto sem areia, o deserto de um flash

branco maciço do sal

 

o sol na pele

— precisamos de óculos escuros —

o sal no corpo

— por favor, um pouco d'água —

salgar a pele, salvar o corpo

naftalina na roupa

a cal nas paredes das casas

 

ao longe, branco

repetitivo, liso, uniforme

revelação da luz no espaço em branco

na folha em branco

quilômetros de sal

 

o fim, branco

branco de gelo, branco de giz

mármore em que se inscreve a letra

que o acaso grava no sal

 

 

 

 

 

 

 

 

O FLAMINGO ANDINO

 

na lagoa colorada os pequenos pontos nus

juncam a superfície

do líquido branco e vermelho.

movem-se em delicada dança e num átimo

a cabeça mergulha

os olhos subaquáticos.

de tanto em tanto alguns levantam do chão

em vôos solitários e às vezes em grupo

numa tensão

entre a forma e o conteúdo.

o vento de aço não os afeta

e as plumas rosadas um pouco escondidas

juntam-se às negras nas pontas das asas

numa imitação do bico.

e ainda que seja pesado o corpo

curvam tão levemente o flexível pescoço

que evocam em plena Bolívia

a graça inapreensível

de uma bailarina oriental.

 

 

 

 

 

 

MICROCLIMA

 

nãomais sombra onde esconder o corpo dos raios

infravermelhos.

a noite soprava os restos do nosso último encontro

desencontradamente incerto.

perto de nós o bisturi das saúvas

e um corte longitudinal no verde das sebes.

 

sim,

guardei os cadernos outonais em que escreveste a rama do tempo

diante do límpido retângulo de vidro.

era verão talvez, não me lembro.

agora é tarde.

o vento suspendia as folhas inquietas.

 

dilacerei tuas cartas para ver o sangue das letras,

o papel permaneceu rigidamente branco.

alguém arrancara a raiz das palavras

ou então foi a seca

e o lavor incessante do sol.

 

era um acúmulo de frases.

muito que estavam mortas.

 

 

 

 

 

 

MARÇO NO CENTRO

 

era o início de março no centro.

seu corpo junto ao meu corpo, uma

proximidade assustadora.

primeiro um sorvete de creme derretia

com o calor e as frases que dizíamos

escorriam sobre os livros

do andar de baixo.

confissões de chocolate.

depois pedimos um café e eu olhava espantada

uma palavra

que se debatia no líquido escuro.

pensei em socorrê-la com a colher, mas logo vieram

outras palavras

e mergulharam no copo d'água.

(na mesa a margarida inclinava-se)

era tudo tão claro, apenas aquela palavra

turvava a nitidez do dia.

olhei novamente

e ela jazia no fundo da xícara,

imóvel.

 

 

 

 

 

 

TRADUÇÃO

 

Se a linguagem é uma caixa de ferramentas

com a qual eu tento

traduzir

as linhas do seu rosto,

pego o martelo

e esmago os sentidos que ficaram por vir.

você achava que havia um problema

de interpretação

e que quando eu dizia te quero

você não sabia se eu te amava ou não.

é certo que não entendo a sua língua

e às vezes entendo apenas a sua língua,

nada mais,

e por isso apanho pregos e cola

para consertar nossos equívocos.

e por mais que seja possível determinar a sintaxe

das frases

não sei como as minhas coxas vão parar

insistentemente

em cima da sua perna.

você dizia que era uma questão de pragmática,

e não de semântica,

enquanto eu me punha a procurar os fósforos

que iluminam a nossa topografia, nossas viagens

sem bússolas

nossos percursos sem mapas

– somos sempre estrangeiros.

mas se a linguagem é mesmo uma caixa de ferramentas,

que formão é capaz de abrir-me o peito?

 

 

 

 

 

 

SANTIAGO DE CHILE

 

Podíamos tomar um helado

sentados num coffee shop

se não fosse você quebrar o nosso velho pacto

de línguas

e dizer que gostava das tardes opacas.

sí, pero no hay frio no Rio de Janeiro

e aqui, em Santiago de Chile,

a cinza do teu cigarro parece uma

estalactite,

contando as horas,

minutos, segundos

da minha partida.

enquanto você girava a brasa

entre os dedos,

desenhando no ar elipses de estanho,

eu prendia a respiração

para que nenhuma onda

ou mesmo o pulsar dentro do peito

ameaçasse o frágil equilíbrio

da varinha mágica em tua mão,

mas você

rindo muito e declamando Nicanor Parra

cortou o ar de um golpe:

ABRACADABRA

hasta la vista!

 

 

 

 

 

LETES MARINHO

 

estirada sobre a areia

vislumbro nuvens esgarçadas

são franjas

fiapos de memória

(os olhos refletem o céu)

e o lento pincel que dissolve o branco

no tecido oblíquo

traz nesgas de outras manhãs

de vento cabelos e água salgada

 

distraidamente

observo a minha pele

salpicada por inúmeros grãos

certas imagens penduradas nos

cílios

(asperezas de areia e de ciscos)

arranham as estampas

de rostos

de nomes sorvete e risos

 

mas de repente

desperto

sob o rumor incisivo dos corpos

em diapasão

e num súbito movimento

levanto

esbatendo as tintas

de onde revoam grãos

e vozes de outras manhãs

 

e com a opacidade de um olhar vazio

molho apenas os pés

na água fria

 

 

 

 

 

 

 

 

NOVE VARIAÇÕES SOBRE TOM JOBIM

 

(e um pouco de Paulo Henriques Britto)

 

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É
um resto de toco, é um pouco sozinho
É
um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a
noite, é a morte, é um laço, é o anzol

 

 

I

 

Quando nas pedras estiverem gravados os nomes

com cacos de vidro

e a noite passar mutilada, movendo-se em círculos 

um peixe cansado do anzol

poderá a morte com um raio de sol

tecer o laço?

 

 

II

 

Quando os olhos

por trás dos cacos de vidro

opacos sozinhos

estiverem mais perto do fim

poderá ficar na boca

um gosto de sol?

 

 

III

 

Quando através dos caminhos

estradas de ferro rodovias

viadutos pontes postes elétricos sinais luminosos

desenharem-se mapas e colônias num formigueiro

poderá o inseto devorar o concreto

a pedra e o pau?

 

 

IV

 

Quando o sol tirar férias

e recusar-se a cumprir horários

acertar relógios movimentar máquinas

— a noite a espreguiçar de um longo sono

e as estrelas explodirem em milhões de

cacos de vidro

poderá a vida insinuar-se

nas frestas de um muro?

 

 

 

V

 

Quando entre a vida e a morte

for possível enfiar inúmeros tocos

e paus e pregos

para segurar com laços bem fortes

o fio que se prende ao anzol

poderá o sol escorrer como gema de ovo

furada no céu?

 

 

VI

 

Quando o anzol em leves movimentos

oscilações de espanto

e a nudez desesperada da morte

trouxer à superfície o peixe reluzente

caco de vidro na solidão da noite

poderá ele tornar-se tão imóvel quanto a pedra?

 

 

VII

 

Quando o dia deslizar

um pouco sozinho

como quem rasga com lâminas

o vidro translúcido de gelo

poderá a pedra amolecer por um instante?

 

 

VIII

 

Quando a morte

por entre os paus e as pedras

pisando em cacos de vidro

esbarrar em tocos e enlaçar os pés nas

raízes

numa correria frenética

poderá o toco da vela

sustentar a chama?

 

 

IX

 

Quando o corpo for um mosaico

de cacos coloridos

e a navalha do sol

iluminá-lo por dentro

até que a noite chegue

inexorável

poderá a morte encontrar algum descanso?

 

(imagens ©jason edwards e hakan hjort)

 

 

 

 

 

 

 

Izabela Leal (Rio de Janeiro, 1969). É graduada em Psicologia, doutoranda em Literatura Portuguesa pela UFRJ e professora da mesma disciplina. Tem ensaios publicados em revistas de literatura e alguns poemas publicados na Internet, em blogues de poesia, na Zunái — Revista de Poesia e Debates, na revista Inimigo Rumor e nas Escritoras Suicidas.