Actio fructus

Para Tereza Tenório

O que importa a um poema é escrevê-lo —
publicá-lo é perdê-lo — permitir
que os imbecis o pastem, qual  pérolas
ruminadas por suínos; ou que os ignorantes
críticos dos jornais detratem-no, mesmo quando
falam bem dele. E que os da Universidade torturem-no,
cozendo-o no tempero insosso da estupidez
científica, proferindo asneiras de muito maior
credibilidade. Quando escrevo um
poema, apenas o escrevo, sem cogitar
se vai ser bom ou se vai agradar a alguém.
Acaso o abacateiro preocupa-se com a
qualidade dos seus frutos, uns mais doces,
outros menos, uns maduros, outros não? Se
eu for poeta, darei poesia como o abacateiro
dá abacates. Se algum dia, atraído por meus
frutos, alguém quiser deles provar, que faça
bom proveito — goste ou não goste, a árvore
continuará a produzi-los, casca, polpa, e o
caroço que até se pode plantar — e sempre haverá
goiabas, tangerinas, cajás, umbus, maçãs e as
difíceis nectarinas, para quem goste do sabor
delas. O abacateiro continuara a dar abacates
e eu meus versos, sem jamais nos preocuparmos
com o destino que terão. Todavia, se meus poemas
forem publicados, não quero estar por perto para
vê-los maltratados pelos olhos dos porcos a
mastigar minhas pérolas, frutos que nasceram
de mim, sem que eu sequer quisesse.


Plenilúnio

Na cidade amordaçada,
ladra a distância na rua
e reluz sobre a calçada
uma indiferente lua.

Não sei se é março ou setembro,
se é segunda-feira ou quinta.
Não sei se esqueço ou se lembro,
Se fale a verdade ou minta.

O sol tarda na cidade
E a lua reluz no alto,
Esparzindo claridade
Sobre o negrume do asfalto.


Intenção de outono

Queria compreender o outono,
tantos e diversos amarelos,
caindo e atapetando o chão.
Fácil é o verão,
seu espetáculo de sol sobre o azul.
E a primavera com seu ramalhete
de bromélias febris; de acácias
e de orquídeas selvagens.

Queria compreender o outono,
seus amarelos que caem;
sua intenção de aos poucos avançar
até a neve — o inverno
com seu horizonte de chumbo.

 

O meu tempo

Não existe hora certa, existe o meu relógio,
lembrando sempre com seu tic-tac
que há a vida
para ser vivida,
que houve a vida
que não se viveu.
Não importa que o rádio renitente ruja
são tal hora e tal minuto,
hora oficial.
Afinal.
que há de oficial em minha vida?

Somente,
quebrando a paz exata deste espaço,
levando a mim a frente, sem retorno,
a tiquetaquear meu ser-serei,
existe o meu relógio, —
pulso falso,
sensato solilóquio, lento, certo,

que canta
o canto
do tempo
que é meu.

 
 
 
 
 
Réstia de luz

Ainda ontem, entrei sem querer naquela
pensão barata (mas limpa e asseada )
onde nos encontrávamos felizes nos
finais de tarde. Entrei sem querer,
eu juro. Procurava uma peça de carro
numa daquelas lojas perto da estação
e quando dei por mim, estava bem na porta.
Quem havia de resistir?

Na penumbra furtiva do corredor,
o coração descarrilou ate o quarto
17 que me aguardava calado como uma
verdade eterna. Tudo igual. A cama
imaculadamente branca; um criado mudo;
duas cadeiras puídas de palhinha; e a
bacia de louça cor-de-rosa em que te
lavavas, depois, ocultando teu gesto,
constrangida, para não te banalizares —
tua aura de deusa profanada por
essa intimidade prosaica.

Quanta vez, este teu recato ante a
promiscuidade me excitou, te enlacei
por detrás e te trouxe de volta ao
tumulto da cama! Tu sempre resistias.
Você é louco, menino? Ele chega cedo
do trabalho. Olhe aquela réstia de luz
na persiana como engatinha sorrateira
a caminho da noite. Mas resistias um
resistir indeciso, querendo mesmo te
entregares, e desta vez, com mais volúpia.

É um amor bem mais amor esse amor
que me fazes depois, tu murmuraste
um dia, abaixando os olhos, com esse
teu jeito recatado e tímido de
tudo fazer e nada comentar. Foi num
desses dias em que sentimos a terra
tremer embaixo de nós e até pensamos
que era o trem.

Lá estava a réstia de
luz que engatinhava pela persiana,
prestes a engendrar a noite. Não sei
se foi ele, se fui eu ou o que foi.
Ninguém entende a lógica das mulheres.

Faz bastante tempo que nos vimos. Foi
no meio da rua, por acaso. Tu nem
quiseste sentar para tomar alguma coisa,
conversar. Era um final de tarde. Tinhas
pressa. O que a gente tem pra conversar,
conversa aqui mesmo, em pé, diga.
 
Eu tentei reviver em minhas trôpegas palavras
nossos momentos de esplendor; cerzir
retalhos do passado como uma colcha de
delírio. Tu ouviste calada e no final
disseste. Acabou, menino, passou, esqueça.
Com um sorriso didático e nada teu.

Com um ar preocupado, consultaste teu
relógio e foste embora, sem um adeus,
pisando nas nuvens num passo curto
e ligeiro. Eu via uma pessoa mas era
outra pessoa. No quarto imóvel da
pensão barata, a réstia de luz desenhava
preguiçosamente as horas diminutas do
final da tarde, recorrente indiferença
de todos os dias. Sinete azul da eternidade.


Nossa Senhora dos Pecados

Não a vós adoro,
Nossa Senhora dos Pecados
mas aos meus pecados.
Por eles vos tive; e neles.
Por eles vos vi em Rafael.
                         Murilo
                         Angélico
                         Tintoretto,
nos vossos braços um menino lascivo.
Nossa Senhora dos Pecados sois;
dos meus pecados sois
os meus pecados sois
      meus
       sóis.

 

Ode Estática

Olha, Denise, se tu fores ao passado,
anos quarenta, lá no interior,
haverás de estar comigo e contigo
naquele colóquio que jamais esqueço.
Se bem mereço, estaremos juntos no quintal.
Lembras-te da hera no muro alto
ao pé do qual brincávamos em horas preguiçosas?
Dos canteiros de dálias, chapéus de couro
e margaridas amarelas? As sombras da tarde,
obedecendo aos telhados e cornijas,
traçavam formas imprevistas no cimento —
tu mostravas a mim esses desenhos
que descrevias em contornos de intensas fantasias.
Como as nuvens redondas num céu sempre
azul de sertão. O mundo era calmo.
O tempo lento. Lembro-me do vento,
açoitando as folhas pequenas de um pé de sapoti.
Lembras-te também? Vejo tudo como numa fotografia.
Vês? Tudo arrumado como a fazer pose
para a câmara de nossos mais recônditos refluxos,
olhos sutis dó nosso sentimento
(alcançam muito mais que um telescópio).
Prefiro crer que lembres. Não sei a quantas andas,
talvez casada com o Dr. Fulano de Tal, rica, gorda,
quiçá adúltera; ou tocando piano a tarde toda
como uma santa. Não importa. Importa é que
em alguma célula de teu cérebro essas coisas
haverão de estar arquivadas e por um motivo
qualquer serão tiradas do inconsciente,
nem que eu tenha de ficar famoso e meus versos
de correr o mundo. Lembrarás então — como
eu me lembro — daquele menino tímido:
tu me dizias que eu era bonito; até acariciavas
meu cabelo mas minha timidez não se dissipava.
O primeiro dia em que nos beijamos,
escondidos atrás do tronco bojudo de uma mangueira,
foste, tu, Denise, que tomaste a iniciativa,
premindo teus lábios contra os meus,
nada mais que um leve roçar de peles curiosas.
E tanto afligiu-me a consciência de um ato pecaminoso
que Domingo na Igreja da Matriz tudo contei ao padre.
Tu deves-te recordar pois no mesmo dia, o teu recato
impediu-te de ir ao confessionário — assim disseste
a mim com um sorriso sutil — como eram os teus.
Mas nosso beijo apressado abriu caminho
a caravelas nos mares dos sentidos, descobertas
de cheiros e de gostos; de tatos e contatos; de visões.
Tudo escondido. Lembras? Do esquisito sabor
de cumplicidade e de segredo? O mundo
ignorante derrotado num simples trocar de olhos.
tua mãe na sala tricotando ingenuidade
e nós dois na sala de costura atrás das cortinas,
os corações palpitando de medo e de emoção.
Tu, mais velha do que eu um pouco,
incentivavas meus avanços nos territórios secretos,
onde se esconde um cobiçado tesouro, jóias
de nome estranho; e correspondias com carícias
que eu nunca imaginara. Mais do que eu,
tu querias tudo, todo o encanto que esse esconso
universo a nós dois ofertava. Não temias
os temores que temem as mulheres tementes.
Desejavas todos os mistérios e surpresas
que colhíamos na penumbra azulada daquela
sala de costura. O primeiro dia em que te vi sem roupa
foi tão solene que até hoje nunca digo nua.
Eu me lembro. Era segunda-feira. A tarde descambava.
Nós dois na sala de costura. Tua mãe cochilava.
Tu já beiravas os doze anos, onze tinha eu.
Não sei qual demônio de mim se apossou.
Pedi e me negaste, primeiro com pudor;
depois com esquivanças, rudezas e desdém;
nervoso, eu insisti, com rogos e com súplicas;
e pouco a pouco tu calaste, sem me responderes:
numa ousadia, da qual não suspeitava,
fui doce e vagarosamente mobilizando laços,
presilhas e botões — ela não resistiu, como
eu até esperava. Súbito fez-se o encanto — Sus — era
um fascínio; eu quis gritar, ela tapou-me a boca.
Ah, nesse dia começou uma era. Ah, nesse
dia eu descobri um mundo.
Desde os cumes pontiagudos dos teus seios,
às colinas arqueadas do teu dorso,
até as penugens macias de teu vale —
tudo banhado pelo azulado da penumbra
no ambiente lascivo da sala de costura.
Um verdadeiro quadro de Velásquez,
se Velásquez pintasse meninas nuas.
Se tu fores, pois, ao passado, minha Denise
de então, anos quarenta, do interior
que sempre falou mais alto em mim do que capital,
se tu fores lá como espero, renovas nossas juras
que já são eternas; abraça-me e me beija
detrás daquela mangueira; me leva pela mão à sala
de costura e permanece nua, cravada na distância
dos acidentes breves, dos odores doces,
na visão parada do teu corpo tenro
que é o corpo ausente em que te procuro
em todos os caminhos, pelo mundo todo,
em todas as mulheres.


O Enfado de Tereu

Me irrita a paranóia dos pássaros
quando ruflam de mim
fuga e aflição
me irrita.
Jamais ousaria caçá-los
para me deliciar
com a frágil obscenidade
de seus cadáveres
dourados ao fogo com tempero e requinte.
No passado, confesso que já consumi
dessas que se caçam perdizes. Mas foi
há muito tempo. Jamais mastigaria
um lírico colibri
Ou este bem-te-vi
que fugiu de mim agora, tão amarelo.


O Barco Bêbado

Mostrou o poema a seu amigo,
com a certeza adolescente
de que ninguém, na França,
poderia estar fazendo igual.

(E, provavelmente, estava certo)

Depois, mudou as armas; mudou
de ramo. Arranjou uma mulher.
E se acabou,
como a esfuziante flor do hibiscus
que dura um dia, murcha e cai no chão.

(Há coisas grandes demais para os dezoito anos)


The Small Wee Hours

É nas horas pequenas, mais pequenas,
começo e final de cada dia,
que mais vibrante vem a mim,
vibrando, a tua imagem,
cor de sonho, resgate
de um passado de esplendor.

Corre o dia. Cresce a luta.
Cruzam ares e mares
os petardos invisíveis
do amanhã
que se armam hoje
e hoje são despedidos.
No barulho e fumaça
da cidade assaltada
de pavor e sacrifício.

Só nas horas pequenas, mais pequenas,
é que tua imagem vibra
e me estremece.


Poema Desnatal

Será Natal também em Kabul
quando chegar o dia. Mas pouco
importa. Será Natal. A fome e a
miséria prosseguirão o seu presépio.
Não importa. Será Natal. A solidão
estará solitariamente só e solitária.
A solidão estará tudo menos solidária.
Mas será Natal.

No Brasil, em Portugal.
Na Groenlândia, na Tailândia.
Na Nigéria, na Libéria.
Na Desunião Soviética.
Na paranóia norte-americana.
Na prosperidade germânica.
Na voracidade nipônica.
No imperativo britânico.
No desterror do golfo.
E no horror supremo do lugar onde o menino nasceu —

Pipocam no ar os petardos,
rasgam céus outros cometas,
matracam metralhadoras,
balas assobiam.

E em cada milímetro do solo sagrado
explode uma bomba
em comemoração pelos mortos de Belém.

Em verdade não ficou pedra sobre pedra,
nem há de ficar. Está escrito.

Quando os peixes se dispersam pelo mar,
dificilmente nadam para trás.

A roda roda para trás e eis a hora do Aquário.
Do Espírito Santo. Ruáh. De todas as
confluências. E será sempre Natal
em todas as partes deste aprazível
planeta, mesmo naquelas em que
os meninos de Liverpool são mais conhecidos
que o menino de Nazaré.

Será Natal. Nascerá um menino.
E nele, por ele, com ele nascerão
todos os meninos que houve, há e haverá
de nascer. Nascerá um menino,
determinação segura de prosseguir.
Ninguém sabe. Nem para onde.
Nasceu, viu e venceu.

Venceu o tigre dente de sabre.
Venceu o gelo, a inundação.
O ciclone, o terremoto, o vulcão.
Venceu os ares, os mares, a noite.
Venceu o outro. Venceu até a si mesmo
(sem constância, todavia). Mas lutou
contra suas certezas, essas mesmas
certezas de que é feita sua ignorância,
seu medo. E venceu-as. Venceu o medo
quando se fez imperioso e necessário.

Veio de longe, do escuro, esse menino,
essa menina a lhe enxugar os olhos. A
lhe dizer o que ninguém sabe nem pode
dizer. A lhe dar o colo, o sexo, o útero
benfazejo, o seio farto, e a palmada
na hora certa da traquinagem errada.

Menino e menina os criou. E nascem
todos os dias em um Natal cotidiano.
Nascem, vêem e vencem.
Em mais uma etapa da aventura que
começou quando, atraído pela lua,
um ser emergiu do mar e rastejou pela praia,
atraído pela lua, périplo pelas estrelas
de meninos e meninas
a  nascer todos os dias
em ininterruptos Natais. Amém.


Normal Ode

A poesia é a loucura organizada.
Nunca apenas a loucura. Seu discurso caótico.
Seu desenho anárquico. Geografia convulsa
de ignorância e desespero. Suas lucubrações
vertiginosas sobre todos os absurdos.
Seu abraço grotesco. Sua sala de estar
ornamentada com excrescências rococós.
Seu Horror, sua Ira, seu Destempero, sua Degola.
seu tempo que se desenfreia nas cordas
febris de violoncelos desafinados.
Sua constante, surda, pertinaz, traiçoeira e laboriosa
escalada até os píncaros nevados  do Poder,
de onde excrita Onipotência,
urina fel e comanda com a mão direita
os que, em transe, os cabelos revoltos,
soltam pelos campos e mares
os Cavalos do Medo e do Terror.
Donzela sinistra que crispa nos olhos
os projetos, símbolos e instrumentos da Devastação.
Eia Loucura! Eia Insensatez! Eia todos os caminhos
que se enrijeceram para transformar a Natureza
em Desrazão quando a loucura vê a Razão
no seu espelho e imediatamente abre o Dicionário
pensando que encontrará a Poesia
como um ovo de macuco num ninho de colibri.
Falo da loucura e de seus irmãos mais gêmeos e fortes,
os Desmandos da Razão.
Nunca das afecções da mente
identificadas pelos psiquiatras
que sabem, com suas exceções, domá-las com álcoois
ou sais extremamente simples. Talvez
fale dos próprios psiquiatras, empolgados
pela possibilidade de entender o sistema límbico
quimicamente; frustrados por não poderem
contrariar o livre arbítrio
do ácido desoxi-ribo-nucleico
com a onipotência científica do século XIX
que se nutre soturnamente
da ingenuidade de Kant enquanto o rejeita.
São eles, os empertigados psiquiatras,
os que desejam à socapa que todos nós tenhamos
o fígado no cérebro,
para nos injetarem extrato hepático
que de nada adiantaria
mas pelo menos não teria efeito colateral:
Salve, salve, três vezes salve
esses aplicados Sacerdotes da Loucura,
na mão esquerda uma seringa hipodérmica;
na mão direita um tratado de Farmacologia
como se o ser humano fosse apenas
esse emaranhado físico-bio-químico que eles não
entendem ou uma simples máquina de desejar
como querem outros. Isso tudo é Loucura.
Com a Loucura se faz psiquiatria
e se vive muito bem dela.
Mas ninguém faz poesia só com a Loucura. Nem
com a Insensatez. Muito menos com a Razão
caminhando numa reta inexorável
de onde nem a desvia a Morte, como o búfalo
mesmo ferido. Nada é reto.
Opte-se pela reta e no máximo chegar-se-á a ser
um poeta concretista, assim mesmo, em caixa baixa,
para usar seus códigos contra eles
essas serpentes que criaram
e que hoje lhes mordem sem que o percebam.
A redundância, por vezes, não é defeito,
dizia um célebre publicitário alemão,
ou nunca é — convence, suaviza, refresca, revigora.
Tudo que sei dizer. Falta-me
uma boa memória para números e nomes.
E as pessoas só dão credibilidade
a quem sabe manipular números e nomes. Eu mesmo
nunca contei aquela história do filósofo Zen
que publicou um livro no Ocidente,
com o prefácio elucidativo de Jung
e deu uma entrevista nos jornais da época,
dizendo que Jung não entendia nada de Zen.
Quem entende? Eu? Eu não. Eu não entendo
outras coisas, quanto mais
de Zen Budismo. Imaginem. Logo eu
que, quando estou com fome preocupo-me
com os carboidratos justamente porque
não quero ficar bojudo
como esses monges orientais
que ficam milionários nos Estados Unidos,
pregando abstinência dos bens materiais
e de toda a carne, e suas discípulas
retribuem iniciando-os nas delícias supremas
dos chocolates suíços e do "strawberry cheese cake" ;
logo eu que, quando estou com sede bebo vinho branco
brasileiro ou chileno — amaldiçoando o bolso
porque não posso beber um Chateau Laffite,
safra 1972. Logo eu que, quando estou com
vontade de escrever um poema
tenho que dar aula de literatura numa universidade
federal que nem sabe se isso existe. Aula de literatura.
Como se alguém pudesse, em verdade, dar aula
de literatura. Nem que fosse para justificar
a existência do barroco baiano.
Mas olhem, antes que me esqueça. Nunca contei
essa história porque não consigo me lembrar do nome
do engenhoso filósofo Zen. Mas é isso mesmo.
Até Freud não explicou nada.
Jung mesmo, ele nunca entendeu e incinerou
seu pensamento à luz de preconceitos científicos
que hoje são execrados pela ciência. Como fez
com Reich que não teve para onde correr.
Morreu só, exilado em si mesmo.
Como todos os gênios. Freud nada explica.
nem sequer os que forjaram metáforas fulgurantes
em cima de suas conclusões precipitadas
quando não levianas. Quem melhor
elaborou seu pensamento e dele fez poesia,
ele simplesmente desdenhou
"desculpe, Monsieur Breton, mas nada entendo
de literatura; como o senhor não entendeu
meu conceito de Inconsciente". E agora?
Que será de milhões de palavras drapejando no papel?
Que será de milhões de telas penduradas nos olhos?
E tudo o mais? Hein? Que será?
E foi justamente esse pesquisador lotado em Viena
que tentou tapar os buracos da alma humana.
Dá pra entender? Ou é mesmo Surrealismo?
Para mim é apenas um pequeno capítulo
da novela do Absurdo. Ninguém
explica nada. Não há o que explicar. As coisas
são o que são. Convém, todavia, frisar
que sou apenas um funcionário da Literatura
e que nunca fiz mal a ninguém. Mesmo
quando belisco a pele por vezes sensível
de algum Sacerdote da Loucura.
Sempre quis fazer poesia, organizando
todo o caos que já encontrei
quando cheguei, desprevenido, a esse planeta azul
que amo como poucos; organizando assim meu caos
interior, eis o melhor que fiz da minha e da de todos
loucura, fruto de minha imaginação e ansiedade.
A flor carnívora desses versos.

 

 
(imagens ©lazar segall)
 
 

Ildásio Marques Tavares (Ubaitaba-BA, 25/01/1940). Registrado em Ubaitaba, nasceu em Pedrinhas, na Fazenda São Carlos, hoje município de Gongogi.

Formou-se em Direito em 1962 e, em Letras, em 1969, pela Universidade Federal da Bahia. Começou a escrever versos aos doze anos e publicou-os pela primeira vez no Jornal da Bahia, em 1962. Foi redator do jornal A Palavra e da revista Ângulos, ambos da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Participou do Movimento Poesia Som, que promovia recitais e comícios de poesia. Seus poemas saem em antologias de circuito nacional e internacional.

Tradutor e professor de Inglês e Literatura Norte-Americana por dezenove anos. Publicou, em 1994, o ensaio A arte de traduzir. Publica artigos de filosofia, contos, poemas e traduções na Bahia, Rio, São Paulo e Lisboa, na revista Colóquio e no Diário de Notícias em Lisboa. Colabora também com jornais de Minas e Pernambuco e tem poemas traduzidos na Argentina, Uruguai, Chile, Bulgária, Estados Unidos e Alemanha.

Seu livro de estréia, Somente um conto, mereceu elogios da crítica: Otto Maria Carpeaux, dando-lhe destaque, no Jornal do Brasil; e no exterior, William Meggerney, na revista Alaluz, Califórnia; Ramon Solis, no Estafeta Literário, Madri; em Portugal, Ferreira de Castro, Fernando Namora, Álvaro Salema, Urbano Tavares Rodrigues e Luiz Farjaz Trigueiros. Nelson Werneck Sodré afirma sobre sua poesia: "É fácil compreender a alta qualidade na linguagem do poeta. Em primeiro lugar, pelo domínio da arte poética na linguagem de síntese que é sua essência. E ainda pela capacidade de, nessa linguagem, praticar aquilo que Brecht ensinou: as diferentes maneiras de dizer a verdade".

Professor de Literatura Brasileira, em 1970-71, na Southern Illinois University, onde, em 1971, tornou-se Mestre em Literatura de Língua Inglesa. Em 1984, tornou-se Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Possui Pós-doutorado, desde 1990, pela Universidade de Lisboa. Em 1993 ganhou o Prêmio Nacional de Poesia Jorge de Liam, no centenário do poeta.

Tem três romances publicados: Roda de fogo (Coleção Edição do Pasquim, 1980), A ninfa (Nórdica, 1993) e O domador de mulheres (Imago Editora, 2003). Em 1996, reuniu seus artigos sobre cultura afro-brasileira e publicou-os sob o título de Nossos colonizadores africanos. Possui coluna semanal no jornal Tribuna da Bahia, desde 1987. Escreveu o drama lírico Lídia de Oxum, primeira ópera afro-brasileira da Bahia, e encenou-a em 1995 em Salvador, São Paulo e Brasília; em 1996, novamente em Salvador, com direção sua.

Professor titular, aposentado, de Literatura Portuguesa da Universidade Federal da Bahia, de 1975 a 1997. Ficcionista, dramaturgo, jornalista, tradutor, ensaísta e letrista de música popular brasileira; tem canções gravadas por Vinicius de Moraes, Toquinho, Maria Bethânia, Alcione, Nelson Gonçalves, Cláudia, Maria Creuza. Coordenador da Coleção Poemas Soltos, comemorativa dos 450 anos da cidade de Salvador, IV séculos de poesia. Coordenador da coleção Bahia Prosa e Poesia da Secretaria de Cultura e Turismo da Bahia em co-edição com a Imago Editora, desde 1999. Representou o Brasil no encontro Poesia em Lisboa, em 2001 e tem feito conferências a convite na Academia Brasileira de Letras. Mais no Jornal de Poesia e aqui.