O BARCO BRANCO

            Em memória de João Guimarães Rosa

à distância discreta da terra
um barco viaja pelas costas do Brasil
todas as noites, só pelas noites
nele não brilham luzes nem vem dissimulado
lá está sempre que alguém se lembra de procurá-lo
do alto da amurada de uma avenida tropical
das varandas panorâmicas dos arranha céus
ou das encostas dos morros, das favelas
está ele a boiar sem vida a bordo
e contra a escuridão do mar que se perde no horizonte
parece ancorar-se num só lugar
parece que o lugar onde aparece é seu lugar
mas não dura muito esta visão
para os que se recordam acalentá-la
porque tem o barco branco moto próprio
e seu destino é contar sempre os mesmos sítios
verificar se cada baía, cada pedra ou praia
seguem lá onde ele as havia deixado
se do Forte dos Reis Magos à boca do Amazonas
o movimento das dunas não se descontrolou
se a Ilha do Mel no Paraná ainda brinca
entre a Serra e a fria correnteza antártica
se o Monte Pascoal não foi de todo desmatado
se de Torres ao Uruguai nos mangues
os patos fazem imemorialmente os ninhos
sua missão é voltar a medir a altura
das torres da Igreja da Conceição da Praia em Salvador
observar a estabilidade ou a ressaca nos estuários dos rios
que revelam se houve chuvas no interior
se os casais de turistas de São Paulo
continuam a fazer o amor repetidamente,
aos bandos, aos gritos,
nas areias nem sempre limpas de Monguaguá
não tem descanso, o barco não tem sossego
vela pelo litoral do país que mergulha
nas tintas foscas de um mar soturno
não há ninguém a bordo que possa ser surpreendido dormindo
por um evento inesperado
ninguém que se responsabilize por sua rota
pelo quê naquela noite ele há-de reencontrar
ninguém que se encapriche por um rincão
nenhum provinciano que queira guardar melhor
as costas do seu estado
ele segue, mais nada, todas as noites
e branco, e este brilho que tu vês nele
vem das estrelas além no céu
e do plâncton que o circunda
à flor d'água, à distância discreta da terra
entre o Brasil e o nada

 

 

 

(New Haven, Connecticut, 1985)

 

 

 

 

 

 

ONZE TEMPOS DE PASSEIO PELA PAULISTA

 

Um

Joaquim Eugênio de Lima

 

Não queria ver

o que vejo na tela

de teus cinemas enormes

teus templos

consentidos.

 

 

Dois

Campinas

 

Que merda

andar na chuva suja

da Paulista

não queria

não queria oh cidade

teu sortilégio

que me fascina.

 

 

Três

Pamplona

Viajo

prismas de vidro tua constante

cidade que é viaduto para alguma coisa.

 

 

Quatro

Museu de Arte de São Paulo

Penso repenso muito tempo

teu sortilégio que é meu

viaduto onde renasço

frágil

com raiva

teu observador tornado prisma

carne branca como a cal

das tuas construções

ah eu renasço sempre nos teus viadutos

de onde me carregas para algum lugar cidade.

 

 

Cinco

Peixoto Gomide

 

Banho na cal.

Banho-me cotidiano de cal cidade

Tu me banhas de ti com tua cal

Ah cidade meus glóbulos brancos

São feitos de tua cal.

 

 

Seis

Rocha Azevedo

Ah teu fígado!

somos teu fígado.

Ah tua cirrose!

queremos tua cirrose,

mesquinha fruta da cal

sua pedra branca

cidade

suja.

 

 

Sete

Frei Caneca

Onanismos

em todos

organismos.

Cidade merda taí

devolvemos teu sortilégio

de cidade suja onde começa a minha raiva

                   onde me descubro também

                   filho da tua cal

espécie do meu sangue

incapaz de te afogar no jorro que quisera.

 

 

Oito

Augusta

Nos afogas na cal.

 

 

Nove

Haddock Lobo

 

Não me finques teu orgulho de Metrópole!

eu fico por teu orgulho de metrópole

cega.

 

 

Dez

Bela Cintra

 

Fico para cegar,

Os que nascemos

Com a boca cheia de cal

(tua sina tua sarna teu cheque em branco)

que se confunde aos dentes teus

nossos dentes cariados de cidade.

 

 

Onze

Consolação

Observamos

len-ta-men-te

empapados

empapando-nos de tua chuva hostil,

cidade suja,

calcinada.

 

 

(São Paulo, 1976)

 

 

 

 

 

 

DEZESSEIS GRAUS NA PAULISTA

 

I

 

dezesseis graus na Paulista

 tinha o verso tão estruturado esta manhã

e dirijo no fluxo

                 nunca houve lugar mais belo

                 nem cidadão mais fiel

 


 

II

 

chamam-te floresta de concreto    urbe d'aço

exageros         

tomo emprestado

olhares migrantes        aves d'arribação

fixei a ventania que juntou montes

d'outonais folhas na sarjeta

o céu brilhava

diadema d'Imperatriz

mulher que nunca tive

 


 

III

 

pude voltar com o meu olhar estranho

que sabe desnudar as tuas topografias

luxo supremo         

agridoce:

ninguém dirá que és

"um ninho de pelicanos"         

por aqui

nenhuma falésia

                            ainda que

                                               gratuitas

adornem bromélias as tuas

                                               árvores

 

 


 

IV

 

Clima de serra      disse a Vera

o momento exalou inspiração

quase ninguém conecta com ele

                                               teus

uma vez pristinos rios

transformados em

esgotos

                                      — quem o negaria?

exiges um olhar educado

                                      em

constante educação

                            que restitua a matéria

para lá do coriáceo do teu corpo

 


 

 

V

 

pude voltar

                   luxo supremo

Koh-I-Noor da coroa inexistente

                   só intuída

para sofrer as epifanias

necessárias

cidade vestibular

         vestíbulo para alguma coisa não lírica

         também lírica

         pré-

semi-

         para-

         meta-

         pós-

         ante-

         trás-

 

 

 

VI

 

já o sabia

         há trinta anos o sabia

não passou o tempo

o deambular permanece

                           

quando não me encontro perto

         ou dentro de ti

exilo-me e dói

                   — quem compreenderia?

os capazes de extrair beleza

do pó acumulado

sobre um arame farpado?

 


 

 

VII

 

Boa noute             professor de esquina

Sweet ladies

oh flowers of England   boa noute

 

um uruguaio havia há pouco na sauna

ou paraguaio              um cearense             um italiano

de membro parrudo como o de Michelangelo

um coreano              trabalhadores

teus

cidade viril

                   ou amante virago

suculenta virago

                   transformas em espetáculo

os teus corpos densos

         que ao olhar educam

         e satisfazem

 


 

 

VIII

 

vi o paraguaio extraviar-se na noite

                            perder-se em tua

                            magnífica maquete

e me confessei a palavra agridoce

         — que impressões ficarão de seus tênis

         sobre a rugosidade do meio-fio?

partículas de desamparo

         aquele frotar oitocentos metros

                   rumo ao metrô

                           

breve subirá o dia

prevê-se uma manhã nublada

como uma estocada

 


 

IX

 

dezesseis graus na Avenida Paulista

sucedem-se esquinas

Peixoto Gomide      

Rocha Azevedo      

Joaquim Eugênio de Lima    

Frei Caneca

Augusta

         conselheiros do Império

         o urbanista uruguaio

         o religioso autonomista

         a rua que remete a Lisboa

e tudo atravessa o teu nome de cidade apostólica:

 

sob o signo de Saulo

anuncias o nosso caminho a Damasco

e levarás o seu nome a todos os rincões

esta a tua vertigem

                            clima de serra

esta a tua

                   missão

 

até as bromélias e as epífitas

   concordam

e entoam teu

hino


 

 

X

 

incessantemente

         aqui não importa ser noite

         ou dia claro

no chiaroscuro pinta algum

Caravaggio anônimo

                            a Paulista

é teu caminho a Damasco

na América

you will prevail

                            — as folhas mortas

estarão recolhidas amanhã

antes que as hélices dos teus helicópteros

as desfaçam

                   irei com elas para o nunca jamais

                   te abandonarei

                   como faço agora


 

XI

 

onze tempos de passeio redivivos

te percorro em três minutos

                                      cubos

                                      cubos

                                      cubos

folhas que se dispersam

 

sim vou com elas

                            rumo ao meu santuário

                            interior

                            no chiaroscuro me ilumino

deslindo o que há

o agora

o agora é o que há

o onde é o agora

sob os teus

cascos

 

 

 

 

(São Paulo, 17-19/VII/05)

 

 

 

 

 

 

TRANSFORMAÇÃO DO OBJETO

 

Objeto transformado:

Eis-me aqui procurando em tua re-forma

Teu trabalho anterior, tua sombra

Que se alongou em minha memória tua,

Em minha sempre nossa memória de contatos cotidianos,

Que afastaram tua presença de meus olhos,

Tornando-te privilégio

De meus dedos compressores.

 

Retomo agora nosso contato,

Re-amigo arrependido,

Consciente de teu poder maior que o meu

— Teu poder silencioso,

Tua alma que é tabela de claros e escuros,

Onde me insiro

Com docilidade. Manso animal

Na esteira dos teus dias e noites,

Recupero as dobras

De meu Nome.

 

                   Que me levas ao sonho

                   De te transformar/mos

                   Ainda mais:

                   Quero te ver/mos

                                      Mutantes

                   Burlando a fronteira do tempo

                   E do espaço.

 

 

 

(São Paulo, 1976)

 

 

 

 

 

 

OBJETO A

 

I

 

Cada vez mais fugidio

O Objeto A. Neste plano, ainda

Visível contra o horizonte.

Os contornos já não fotográficos,

Sujeitos a um olhar desfocado

Ou tremulante. Ainda.

Objeto A fui eu naquela tarde

Chuvosa no roseiral, com a

Maria Nadyr. Quisemos transformar-nos

Em nuvem ou vento. As rosas

Estavam à mão: espinhosas,

Não nos inspiraram. O dia

Conjugava-se inconsciente de que

Seria rememorado quarenta anos depois.

E logo, o silêncio.

 

 

II

 

Ou o barulho. O número do contribuinte

Não esquiva a ficção ruidosa

Da qual descende. Passei pelo revendedor

De rações e lá consumi a minha.

Sob um sol escarninho. A pele

Rizomatizando-se em samambaias.

Os dentes alinhando-se num mudo

Relincho. O Objeto A parece irisar-se

Antes do ponto de sua fissura

Ao final da tarde. Sou parte

Dessa condução, penetro um agora

Que mantém a aura. Ainda.

O teto de madeira, a 5,40 metros,

As vigas musicais, o crepitar

Infinitamente reconfortante

Enquanto durou. Ou durava.

Já não sei qual a conjugação

Adequada.

 

 

III

 

Objeto A: eis-te aqui ainda

Sujeito a uma cifra crepuscular.

Nenhum sinal de que não sobrevives

A não ser em mim e pouco. O tangível

Nada envia em sinais.

Não sou o mesmo e já

Não identifico as, sim,

Correspondências.

                            Afasta-se

Rumo ao nada o Objeto A?

Perdê-lo para lá do horizonte

Será também perder-me?

Apenas a memória satisfará,

Despida de sentimento e míope?

E sua sobrevivência simples,

À morte já não equivalerá?

 

Afasta-se o Objeto A.

 

 

 

(São Paulo, 1º-4/VI/2006)

 

 

 

 

 

 

INVENTÁRIO

 

Inventario.

 

Eu não sou filho do Dr. Delamare

— o dos bebês rosados e sadios—

mas poderia sê-lo. Sucrilhos.

 

Nasci em '54, quarto centenário

Da metrópole sul-brasileira.

Entre a III e a IV Bienais.

Meses apos o suicídio de Vargas.

 

Com o "Anna Nery" ia-se à terra do Salvador

Ouvir Caymmi. O styling sugeria amebas,

Dominando o plástico e as harmonias

Cromáticas ligeiramente desarmônicas.

 

Quase todo mundo era real e socialista,

Com náusea só de vez em quando, numas

De ser sartriano e V.I.P. Para ficar

Chegara a Volkswagen. Do Brasil. S.A.

 

Boeing-boeing. O Marechal Lott seria preso,

Domiciliarmente, logo adiante. Na esquina

Do meu segundo aniversário. No momento

Embrional de Brasília. A.B.C.

 

O amor nas classes médias: piegas,

Com sonoridades jazzísticas no Club Pinheiros.

Nos Jardins — metáfora! — edificavam-se mansões

E mansões neocoloniais. Vários rios quiseram

 

Imitar o Reno. Desconhecia-se,

Totalmente, o Pico da Neblina,

Em Roraima. Alguns já choravam

Os escombros do Barroco

 

Mineiro. Esta terra acontece em ciclos.

Quer um exemplo? Bem, a Escola Militar

Do Realengo mudara-se pras Agulhas

Negras, onde a paisagem é sublime.

 

Mirus-Rove. Manhã cedo, e mamãe

Me compraria o primeiro par

De sapatos. No Externato Santa Rita

Aprenderia que, depois do café,

 

Estávamos vivendo o ciclo da Policultura

& Industralização. Meu pai adorava

o que havia de tralha americana.

Cortadeira de gramado, torradeira elétrica.

 

Na U.S.P. franceses pontificavam.

Não me lembro mais se Murilo Mendes

Já morava em Roma. Quanto a Hemingway,

Sei perfeitamente que estava em Cuba.

 

Aparelho ultra-violeta. Filmadora. Nunca

Dancei cha-cha-chá. Entrei direto

No roque. Jackson Pollock orgasmava

Colorido, dançando sobre telas enormes.

 

Satchmo. O Banco do Brasil e a Boîte

Oásis. O negócio era estudar no I.T.A.

E virar bom partido. Pelos domingos

Íamos ao Planetário, novinho, em folhas

 

De alumínio. Sólidas formações humanísticas

Seguiam discordando de Einstein, na Egrégia

Academia Brasileira de Letras. A TV Tupi

Canal 3 foi minha madrinha. Peter Pan, Sininho.

 

Não fazia a menor idéia do que me esperava.

Teve kits pra tudo: navios, cidades,

Posições do Kama-Sutra. Ignorava-se a China,

Bem como o Piauí. Tudo devia ser funcional

 

Pratico lavável. Sorria-se com os dentes

À mostra. Folclorizar as favelas — uma forma

De absorvê-las. No Brasil sempre faltaram

Pescadores de águas turvas. Ban-lon.

 

(No Monte Athos

há mil anos

os monges rezam

missa.

 

Estou decidido

a queimar todo

o meu karma.

Ontem/hoje/amanhã.

 

Mantiqueira, Mantiqueira.

Com Jece Valadão, Cacilda Becker

Filmou "Floradas na Serra".

 

Acho que vou morar

 

Em Nova Iorque, mesmo,

Que se está transformando

Em ruína

Maia).

 

Os bandidos, os místicos e os líderes carismáticos

Tinham nome. Lampião, Dom Bosco e Kubitschek.

Todos os demais nessas categorias estavam além

De nossas fronteiras. Aragarças.

 

Não faltava quem vigilasse. Salazares

Embaixo da mesa, dentro do armário. O número

De baleias que subia das Falklands até Natal

Era maior, bem maior que hoje em dia.

 

Vol d'oiseau, darling, você usa, deix'eu ver…

— óculos gatinho. De slacks guia Buicks. O Bikini

Atoll foi apenas uma forma de maillot. Na cidade

Vestibular quero só ver você transcender. Bar-dot.

 

Eu abria a boca, feliz. Mamãe

Tacava sucrilho, papinha. Em caso

De dúvida telefonava pras primas,

Consultava o livro do Dr. Delamare

 

Ou o "Médico do Lar". Deu certo, creio.

Tenho 1,85 metro, peso 80 kg e posso compor

Um inventário parcial poético. Poesia feita

De bits. No consultório do Professor Carlos

 

Prado tinha um enorme aquário, por si

Produto anos '50. Nasci com a chegada

Esperada dos primeiros baianos. Nossa

Baiana chamava-se: Maria. Maria Gorda.

 

São Paulo inchava feito óleo

Nos campos de Piratininga. Óleo

Pensado pra lubrificar. Para ferver?

Jamais! Capitalismo a berrar nos desertos

 

D'América. Isto continua, no meio

Da minha vida toda. Só gravames

E agravantes, convenientemente gravados

Nos corredores da memória. Zé

 

Horacinho. Outsider­ — sim, senhor — on the left.

Trabalho cotidiano o esquecer de pouca coisa.

Hypochryte lecteur, mon semblable, mon frère,

Encontre também o teu Kellogg's/vomitório.

 

Não deixe que algum aventureiro

Lance mão do teu Nome.

Ou seja, desta inteira

 

Estranheza.

 

 

 

(São Paulo, 1980)

 

 

 

 

 

 

INVENTÁRIO

(25 anos depois)

 

 

Ponho novamente a tocar

Os monges de Simonopetra.

De profundis. Nunca, entretanto,

Visitei como quisera o Monte Athos:

 

Em Tessalônica disseram-me

Que o visto demoraria meses.

Tivesse 26 novamente

Arriscaria um emprego

 

E esperaria servindo café.

Things a celebrated poet won't dare

Exposing himself to. No lungomare

Desfiei memórias como quando só

 

Como agora.  Já próximo está

O momento de calar-me: percebo

O abraço do silêncio temido

Tanto como sedutor contumaz.

 

Já não se me ocorrem palavras

Quando espelho o meu corpo

Quando saltam nexos fortuitos

Quando sobe o soluço tão-só mental.

 

Ainda, surge o poema que não inventaria

A cidade a idade a trama e os joanetes,

Os ligamentos rotos, a artrose herdada

Com o grisalhismo e os olhos castanhos.

 

A recusa à depressão, ao ódio

E à promiscuidade. Sendo-me congenial

A alegria, exploro-a terminadamente

Como o asfalto à terra batida

 

E o colunista à notícia de ontem.

Nenhuma afora esta: 25 anos

Depois de publicado o meu livro

Primeiro

 

28/6

preparo-me ao silêncio à espreita

para que se cumpra o destino do poeta

que dia a dia me habita, corpo duplo

 

aparte. Sedutor de horas e instantes

e abandonante de mim. Com suas

milhentas formas de calar-me

e a dedicação de um devoto ortodoxo.

 

Enquanto não desce a cortina

Inventario as palavras que escrevo

Em profunda estranheza, e calo.

E ouço ainda uma vez as vozes

 

De Simonopetra.

 

 

 

(São Paulo, 4/V/06)

 

 

 

 

 

 

EU

 

SOU AGORA

 

KEM EU KERO

 

Q VC SEJA

 

SEMPRE

 

 

 

Marcio Giannetti/Horácio Costa

(São Paulo, 6/VIII/05)

 

 

 

 

 

 

A TERCEIRA FACE DE JANO

 

não olha ao futuro

nem mede o passado

a terceira face de Jano

mora em São Paulo

olha para o lado

                            tenta

virar o rosto

                            não pode:

aí estão as siamesmas

faces irmãs

                   a do futuro

                   cega como Borges

                   a do passado

                   rouca como Proust

e nenhuma que veja

a Marginal do Pinheiros

 

sobrou para ti

                   terceira imobilizada

face perplexa

         estar face

a face

         com o

presente

 

 

 

(São Paulo, 16/V/06)

 

 

 

 

 

A FRONTEIRA DO DIZER

 

                   A Haroldo de Campos, in memoriam

 

 

— Conecta com isso.

E é uma pedra.

— Conecta com isso.

É terra.

— Conecta com isso.

É nuvem. Tem a forma do dragão.

— Conecta com isso.

É onda. Tem a forma da onda.

— Conecta com isso.

É chip. Parece Shangri-lah.

Não é sílica. Nem silêncio. Nem palavra.

 

Conecta com isso.

 

 

 

(Struga, Macedônia, 27/VIII/03)

 

 

 

 

 

 

CAIXA DE ÁGUA AZUL

 

Entre a ramagem da árvore desconhecida,

Caducifólia, nem de Jessé ou genealógica,

Um volume azul sobre uma laje, caixa de água

De polietileno ou poliuretano.

Notação distante na paisagem urbana,

Obsedante recordação no agora-agora,

Calle Río Poo 108, Colonia Cuauhtémoc,

Suites Parioli, México, Capital.

 

O mar, não. O mar, não. O mar, não. O mar, não.

Um exagero de zéfiros, então: o expresso

Descia a serra em Simcas-Chambord tangerina,

Rumo à baía divisada entre montanhas:

Ao longe, o porto e as torres, guindastes e praias;

Ao pé a pantanosa terra, como espaguete, úmida.

O talento da oitava real quereríamos,

O seu sempre imarcessível horizonte.

 

Nele seguia a senhora duas vezes por ano,

Qual a ordem das vogais, dos ritos identitários,

às vilegiaturas; se lhe encolhera

o mundo à mínima possível transumância.

Para lá da paisagem, a sós uiva o engenho,

Aquilo que em linguagem transforma a língua.

A árvore que se agita em eterno lenho

Enraíza no presente o espectro que mingua.

 

Ia a senhora, olhos de pomba, um único anel

De coral; cruzou-se a morte entre ela e o poema.

O mar, não. Caixa de água azul entre prédios alheios.

Este o horizonte, marchetado em fragmentos,

Reduzido a um puzzle no qual o montador

A si se vê como uma das peças faltantes.

O agora não sabe o que diz: memoria vincitrix.

Desce uma vez mais o expresso a estrada de Santos.

 

 

 

(Cidade do México, 9-10/IX/00)

 

 

 

 

 

 

CANÇÕES DO MURO

                  

 

1

 

Quem botou o reboco neste muro

não tinha bom domínio de espátula,

ignorava a mescla correta da argamassa,

não era bom pedreiro.

 

Ou será o tempo apenas o culpado

pela destruição do seu trabalho?

Não faz assim tantos anos

que levantaram este muro.

 

Pintaram-no de branco

e várias vezes repintaram-no,

de branco primeiro, depois só de tons ocres.

 

 

2

 

O sol batia a pino sobre o muro

que parecia estar ali

desde que é o mundo mundo:

os passantes não o percebiam mais.

 

Usaram-no como suporte

de campanhas políticas & publicitárias,

Kolynos & logos

& siglas & partidos

impressos com tinta barata.

 

 

3

 

Usaram-no também para grafites:

escreveram sobre rostos & restos

de affiches & argamassa

como se sobre uma folha em branco.

 

Virou a carne do muro

uma espécie de pasta: um Tàpies

esquecido num canto de cidade, obra in progress

de significado igual & forma instável

(do lado de lá, escondia-se /

esconde-se

o velho jardim de rosas).

 

 

4

 

Quem reparou na progressão das gretas

sobre a sua superfície & mediu

a deslavagem & a erosão milimétricos?

Quem leu as pautas que se formavam?

Quem viu o reboco cair como icebergs

no oceano da calçada?

 

A sós se desfazia /

se desfaz o muro,

sua música para ninguém cantada,

surdina para surdos, cantochão para o chão,

nu descendo a escada numa casa vazia,

natividade num museu antártico.

 

 

5

 

Por isso cantaria eu o muro?

Por isso eximiria eu

o pedreiro do mau reboco

de seu mau trabalho

de há quarenta & mais anos?

 

Sua obra resultou em obra d'arte

-que vive na retina, que não no espaço-,

mas não é esta a razão,

nem este poema a sua defesa

nem a épica do descobrimento súbito

do muro.

 

 

6

 

Canto o muro porque sim,

porque sua pele & a minha se assemelham

posto que também já tomei sol & tomei chuva,

posto que sobre o meu corpo discursos

& campanhas se imprimiram /

imprimi:

já tive tantas caras & sorri

como foram da minha vida os meses

& as idéias políticas ou não

que se sobrepuseram

umas sobre as outras.

 

 

7

 

Canto-o & dou-lhe olhos & ouvidos

para cantar-me a mim;

ao emprestar-lhe minha voz /

tomá-lo emprestado para a minha voz

 

canto-me a mim:

 

edificado por acaso numa esquina do tempo

(do outro lado, o velho jardim de rosas)

ruminando, cantarolando o que me apraz

(sim que há rosas, me disseram)

 

& os Tàpies, os topázios

sobre a minha pele

(& as pétalas)

 

 

8

 

& as fraturas

& os desmoronamentos

& as cantigas da gravidade

& o caminho ao pó

                           

o meu caminho

& o muro.

 

 

 

(Cidade do México, 25/VIII/96)

 

 

 

 

 

 

CONVERSAÇÃO COM TÀPIES

 

 

I

 

há uma montanha de lixo

ao lado do mercado

há peixes que bóiam

na lagoa, o rio

transformou-se em espuma

— que me dizes?

como conciliar tais detritos

com o pai-olhar

e a ur-palavra?

 

 

II

 

Tàpies ensina:

com o gesto.

                   Ouço

o barulho do graveto

que incide sobre a superfície rugosa

da caixa de papelão desdobrada

em intenção de anatomia

e observo

a incisão de mais um alfabeto

que nasce com cara infante

sobre o balcão do invisível

 

 

III

 

Tàpies, há desmesura

nessa tua empresa:

                            o caixote resgatado

canta agora o seu epos:

foste tu ao seu encontro

ou veio ele ao teu?

quando termina a matéria,

quando começa a história?

e o xingamento, quando se faz

oração?

 

 

IV

 

posso dizer-te que era de manhã:

pela última vez nomeou o meu olhar

a radical estátua disforme

— o Tamanduateí se escondeu

no pêndulo do instante

detrás da montanha de alface pisada

detrás da montanha de frutas passadas

e as varejeiras bordavam o ar

como filosofemas

 

e então eu vi:

eu vi o meu olhar

nomear a descoberta

(noite iluninada, manhã da alma)

e transferir o montante

para a certeza de uma

das tuas telas

 

 

V

 

quantas vezes me debruço contigo

sobre São Paulo?

                            sobre as superfícies

sempre um borrão,

sobre as idéias

sempre uma ranhura,

mesmo sobre a música de fundo

sempre uma cruz

                            que alimenta-se

do agora

 

e sobre a fainéante canção dos muros

a epifania dos graffiti

que desvelas?

 

meu olhar é tanto teu

quanto pode um olhar pertencer

a um outro preciso

— porisso, porisso contigo converso

e vejo contigo e através de ti

 

 

VI

 

(um rio que é tinta)

um ranho que é alma

um lenço que é lírio

um anjo que é tudo

(e as varejeiras)

 

e joga um jogo imemorial

o acaso com o ser

e o ser com o sentido

 

 

VII

 

monta-se aí for a a nuvem

da chuva:

                   era o que faltava

para a minha/nossa

estátua (efêmera) / tela (mental)

— um rabisco de água, asa

sobre a cidade, instantâneo

petrificado

                   anunciação

                   profana

 

 

VIII

 

e a unha que cresce?

e o cobertor do mendigo?

e o fato isolado?

o editorial sistemático?

a aldeia global, o pêlo

na cama, os pêlos nas pernas,

a espuma no rio?

 

e o biografema, o caixote de livros,

a juba estrelada, o cordeiro Luís XV,

e o fundamental?

 

 

IX

 

e Tàpies responde

com um gesto que enquadra o monturo

e inclui a sua aura:

 

que tudo o que há se anuncia

livre

belo

nobre

ágil

 

— anjos esverdeados

no momento da transformação.

 

 

 

(São Paulo, 9-10/I/05

 

 

(imagem ©alternative) 

 

 

 

 

 

 

Horácio Costa (São Paulo-SP, 14/12/54). Formado em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP, 1978); Mestre em Letras (New York University, 1983), PhD em Yale (1994). Professor na UNAM (México), 1987-2001. Desde então, é professor da FFLCH-USP. Publicou 28 poemas 6 contos (São Paulo, 1981); Satori (São Paulo, 89; atualmente sendo traduzido ao espanhol), O livro dos Fracta (México e São Paulo, 90), The very short stories (São Paulo, 91; México, 95), O menino e o travesseiro (São Paulo, 93; re-edição 03; México, 98); Los jardines y los poetas (Caracas, 94), Quadragésimo (México, 96 e São Paulo, 99) e Fracta — antologia poética (São Paulo, 04). Livros de poesia por publicarem-se: Ciclópico Olho e Ravenalas. Traduziu e publicou Octavio Paz (Piedra de Sol/Pedra de Sol, Rio, 88), Elizabeth Bishop (Antologia Poética, São Paulo, 90), César Vallejo (Poemas Humanos; México, Rio e Lisboa, 92), Xavier Villaurrutia (Nocturnos; Lisboa, 94); por publicarem-se Xavier Villaurrutia (Poesia Completa, São Paulo) e Blanca Varela (Canto Vilão, São Paulo). Organizou dois eventos internacionais de poesia: "A palavra poética na América Latina, avaliação de uma geração" (São Paulo, Memorial da América Latina, 90; publicada em livro) e "O veículo da poesia" (São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade, 98). Outros livros: José Saramago: o período formativo (Lisboa, 97 e México, 03) e Mar abierto: ensayos sobre literatura brasileña, portuguesa e hispanoamericana (México, 01). Foi júri de vários certames literários na Venezuela, no México e no Brasil. Tem mais de 60 artigos publicados em livros e revistas internacionais. É assessor da Fapesp e da Capes. Tem poemas ou livros traduzidos ao espanhol, inglês, francês, romeno, macedônio e búlgaro. Atualmente é presidente da ABEH — Associação Brasileira de Estudos da Homocultura.
 
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