soneto redundante

Pediram-me um escândalo, e é pra já.
Malversação de fundos? Nada disso.
O seio da modelo, que é postiço,
também já não excita a língua má.

A droga nas escolas? Ninguém dá
a mínima importância ao desserviço.
Seqüestro de empresário? Algum sumiço?
Remédio adulterado? Quá! Quá! Quá!

A fraude eleitoral virou rotina.
As contas no exterior não causam pasmo.
Ninguém estranha o cheiro da latrina.

Até Matusalém já tem orgasmo!
Só resta a comentar, em cada esquina,
que o cego é chupa-rola... Um pleonasmo!

engaiolado

Os pássaros povoam a visão
idílica dos bardos inspirados:
pardais e sabiás ressabiados;
o melro, o rouxinol, canoro ou não.

Algumas outras aves também são
tetéias dos poetas nestes lados:
jandaias, assuns pretos, que, furados
seus olhos, mais bonito cantarão.

Arrulhos e trinados e gorjeios
povoam os ouvidos dos poetas...
Os não sentimentais estão é cheios!

A mim, são preferíveis as discretas:
coruja, por exemplo, ou uns mais feios:
o pato e o urubu: pé chato e infectas...

decadente

Existe uma nobreza no declínio
que só quem é maldito reconhece.
Tal como haver pecado numa prece
ou arte, como em Quincey, no assassínio.

Requinte e perversão é meu domínio.
O conde anão que até a sarjeta desce.
A cortesã que manda e que obedece.
O senador que explora o lenocínio.

Alcovas. Vinhos finos. Poesia.
Bocage, Botto e Piva à cabeceira.
Chamemos de luxúria a putaria!

Um tal contexto é sopa pra quem queira
deitar-lhe o mel da tara que o vicia:
o sadomasoquismo na cegueira.

soneto político

A esquerda quer mudança no regime:
trocar todas as moscas sobre o troço;
mais gente repartindo o mesmo almoço,
pra ver se a humanidade se redime.

A situação não quer mexer no time:
o jogo da direita é o mesmo osso,
o mesmo cão, e nada de alvoroço,
mantendo o status quo que nos oprime.

Um cego como eu, politizado,
consciente de não ser tão incapaz
que não possa escolher qual é meu lado;

Pra mim, desde que seja dum rapaz
o pé pelo qual quero ser pisado,
direito como esquerdo, tanto faz.

soneto sádico

Legal é ver político morrendo
de câncer, quer na próstata ou no reto,
e, pra que meu prazer seja completo,
tenha um tumor na língua como adendo.

Se for ministro, então, não me arrependo
de ser-lhe muito mais que um desafeto,
rogar-lhe morte igual à que um inseto
na mão da molecada vai sofrendo.

Mas o melhor de tudo é o presidente
ser desmoralizado na risada
por quem faz poesia como a gente.

Ele nos fode a cada canetada,
mas eu, usando só o poder da mente,
espeto-lhe o loló com minha espada.

acareado

Pior será ser cego ou invisível?
Não sabe o cego quando alguém o espia
e o outro é gato pardo em pleno dia:
ignoto, nem é lindo, nem horrível.

Ao cego, a luz é negra; o escuro, níveo.
Ao ser fantasmagórico, a agonia
é ver que pode entrar na cova fria
e dela sair sem que um olho crive-o.

Por isso os invisíveis vagam como
sonâmbulos, capazes de atos tais
de cuja culpa exima-se o mordomo:

Esperam que, num flagra, algum ser mais
estranho que eles mesmos, seja um gnomo
ou seja um cego, os veja como iguais.l

altissonante

Barulho é o que se faz na poesia,
de dentro para fora do poema.
Se não for ruidoso o próprio tema,
a forma desafina a melodia.

Se o atonal virou monotonia,
resolve-se na crítica o problema.
É só polemizar, com tinta extrema,
se a pança deve estar ou não vazia.

A fome, última instância do organismo,
define o decibel do belo artístico,
que vai de zero a dez em ativismo.

A coisa se resume neste dístico:
Mais pintam de fatídico um abismo,
maior seu interesse e grau turístico.

Glauco Mattoso, nascido na capital de São Paulo, em 1951, com o prosaico nome de Pedro Silva, cursou Biblioteconomia e Letras, tornando-se poeta ao adotar o heterônimo Glauco Mattoso, trocadilho com "glaucomatoso", por ser portador de glaucoma congênito, que o levaria progressivamente à cegueira no início da década de 90. Nos anos 70 integrou a chamada "Geração Mimeógrafo" e participou da "Poesia Marginal", um dos baluartes da "resistência cultural" contra a ditadura então vigente. Criou um fanzine poético-satírico chamado Jornal Dobrabil (trocadilho com o Jornal do Brasil e o formato dobrável do panfleto, publicado em folhas avulsas) e colaborou em diversos órgãos da imprensa alternativa, como Lampião (tablóide gay), Pasquim (tablóide humorístico), Escrita (revista literária), Chiclete com Banana (revista de HQ), Top Rock (revista musical), etc. Chegou a fazer crítica literária e ensaio (em livros e no Caderno de Sábado do Jornal da Tarde), mas sempre esteve voltado à cultura underground e aos temas transgressivos, como o sexo bizarro, o sadomasoquismo, a tortura, a violência no rock tribal e, sobretudo, o lado "maldito" da poesia, em seus momentos mais escatológicos e fesceninos. Com a perda da visão, foi abandonando a criação de cunho visual (concretismo, quadrinhos) para dedicar-se às letras de música e à produção de discos, como sócio duma gravadora independente. Em colaboração com o professor Jorge Schwartz, da USP, traduziu a poesia de estréia de Borges, o maior autor cego do século. A obra poética de Glauco está quase toda inédita ou esparsamente publicada em livretos esgotados e suplementos ou fanzines e no seu site: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br

Bibliografia: Jornal Dobrabil, 1977/1981 (coleção completa em um volume); Revista Dedo Mingo (dois fascículos suplementando o JD); Memórias de Um Pueteiro (poesia, 1982); Línguas na Papa (poesia, 1982); Rockabillyrics (poesia, 1988); Limeiriques (poesia, 1989); Centopéia: Sonetos Nojentos & Quejandos (poesia, 1999); Paulicéia Ilhada (poesia, 1999); Geléia de Rococó: Sonetos Barrocos (poesia, 1999); Panacéia: Sonetos Colaterais (poesia, 2000); O que é Poesia Marginal (ensaio, Ed. Brasiliense, 1981); O que é Tortura (ensaio, Ed. Brasiliense, 1984); O Calvário dos Carecas: História do Trote Estudantil (ensaio, EMW Editores, 1985);A Estrada do Rockeiro: Raízes, Ramos e Rumos do Rock (ensaio, encarte da revista SomTrês, 1988); Dicionarinho do Palavrão Inglês/Português (Ed. Record, 1990); Espírito de 69: A Bíblia do Skinhead (tradução da obra de George Marshall, Trama Editorial, 1993); Manual do Pedólatra Amador: Aventuras & Leituras de Um Tarado por Pés (autobiografia sexual ficcional, 1986); As Aventuras de Glaucomix, o Pedólatra (HQ baseada no Manual do Pedólatra Amador, desenho de Marcatti, 1990).

soneto cacoépico

É má cacofonia "heróico brado",
que faz o nosso hino ser por cada
macaco no seu galho de piada
motivo, mito presto profanado.

Galhofo quando grafo "deputado",
um réu por cuja mãe a pátria brada
e cuja nota tem que amar melada
a puta que a recebe de ordenado.

Por ti gela meu pinto, e por ti são
meus bagos esmagados qual sardinha,
ó língua de tão baixo palavrão!

Dos cacos que cuspi, calou Caminha.
A mim toca, contudo, uma questão:
Se já Camões fez caca em "Alma minha"...

kármico

Quinhentas e cinqüenta e cinco peças
perfazem as sonatas de Scarlatti.
Nivelam-se, em altíssimo quilate,
à Nona, à Mona Lisa, qualquer dessas.

Farei tantos sonetos? Não mo peças!
É meta muito hercúlea para um vate!
Recorde desse porte não se bate:
no máximo se iguala, e nunca às pressas.

Já fiz mais que Camões, mais que Petrarca:
dois, dois, dois; três, três, três; de pouco em pouco,
que a lira também broxa... É porca. É parca.

Poeta que for cego, mudo ou mouco
compensa a privação com a fuzarca:
diverte-se sofrendo. É glauco. É louco.