SAÍDAS

 

Para Ronaldo Cagiano

 

         A vida se esgarça.

Fio a fio, vai se perdendo nos longos corredores dos anos.  Dos ministérios. Sem surpresas, sem glória, sem tesão algum. Agora, o destecer é bem mais ágil e sutil que o tecer, — o ato meticuloso do artesão invisível. Pouco ou nada resta ainda para se desfazer: menos de um ano, talvez, e esse trabalho corrosivo dará cabo do espírito e seu estojo de desejos.

         Devo correr contra o tempo, não é assim que se diz?

         Alguém que tenha uma doença incurável deve, sem dúvida, nesse curto espaço de tempo que ainda lhe resta, sugar das tetas da vida, avidamente, todo o líquido-prazer que ela possa liberar.

Ou não?

Por acaso o aconselhável seria que essa pessoa se recolhesse a um santuário, a uma gruta, a um lugar  ermo, inóspito, para que o seu espírito pudesse elevar-se cada vez mais até tocar as franjas do Criador?

Prazer e recolhimento. Carne e espírito.

Às vezes, pensar em tudo isso, nessas  possibilidades todas, nessa oferta de inúmeras portas, passagens, labirintos, ah, pensar em tudo isso me desespera, me aflige tanto que o meu desejo é simplesmente  ceder aos apelos da primeira tentação. A mais cômoda. A que não me obrigará a dar intermináveis explicações.

         Ninguém aqui na seção sabe, nem desconfia, mas preparo meticuloso e sádico o dia da dor infindável. O destempero. Aquele momento que, perplexos, todos definem como inexplicável, abominável, tal a violência da sua alegria e da sua crueza. Remorso algum diante das lágrimas de espanto e desespero. Mutiladas, as palavras já não farão sentido. Estaremos incomunicáveis. Intransponíveis. Tão sozinhos dentro do labirinto de nossa tristeza heróica que será como se o mundo se inaugurasse nesse instante, um fiat lux  iluminando o caos. Andarei nu nessa manhã de escombros, sem nada mais para afrontar.

           Quem espero assombrar com meus vôos rasantes?  Essa gente que aqui trabalha, sem sobressaltos, afeiçoada à rotina, e sem jamais suspeitar que a vida é um imenso buraco que, em nome da normalidade e da razão, devemos encher sempre de miudezas, futilidades, grandes feitos, bobagens, trivialidades, momentos inesquecíveis, fodas memoráveis, papéis, pastas, números, carros, viagens etc. etc. etc, e que, no momento em que nos recusamos a cumprir esse ritual cansativo e burocrático, a morte se apresenta ávida e imbatível?

Mas posso estar equivocado. Devo estar subestimando a perspicácia dessa gente: todos, com certeza, têm pleno conhecimento da existência desse abismo, le néant, e é por isso que se agarram a esse ritual de futilidades, a essa liturgia, a esse cânon, a esse falar de coisa alguma. Por isso estão felizes em sua ilha. Diluídos no rebanho. E eu os observo, junto à janela, com meu olhar doente e amargo. Súbito, apanho o paletó e digo — Vou dar um giro por aí. Saio sem que ninguém se digne de responder ou indagar aonde vou. Ignoram minhas novas manias, meu desassossego, minha vontade de voar pela janela e aterrissar no canteiro florido neste mês de setembro.

 

 

         Meu olhar, de uma maneira inédita e ousada, pousa nos sacros seios de Inês, a mais recatada das mulheres que trabalham nesta seção. O diabo é que nem decote ela usa, e é preciso imaginar o que está dentro, os pomos maduros, suculentos. Isso só envenena a imaginação. Seios intocáveis, pode-se deduzir facilmente. Ela vive protegida, segundo a segundo, pelo glorioso manto da fé. Recato e silêncio. Distante sempre das conversas obscenas, da lascívia, muito, muito perto de Deus, deixando escapar, vez ou outra, um oh Jesus!  Pois são os seios dela que eu quero tocar agora. Tocar e morder. Sugar o leite que ela reserva pura e convicta para o único homem que Deus lhe destinará. Não sou esse homem, tenho certeza, mas desejo ardentemente isso que, por vontade divina, não me pertence. Quero e o exijo para mim. Danem-se as suas convicções, os seus princípios! Eu, minha caríssima Inês, já não os tenho. Que me importa que você, diante dos meus olhos flamejantes, pense estar vendo as feições corrompidas do Anticristo? Quero seus peitos e sua linda bocetinha inviolável, ouviu, Inês? Acha que estará a salvo lendo o tempo todo essa sua bíblia gasta e incompreensível? Eu vou romper todas as suas barreiras, vou penetrar em seu território guardado por salmos e fervorosas orações. Seus seios arfam, Inês, eu sei, eu sei, é de tesão e terror, pois você já percebeu, em meu olhar insistente, o desejo que não recua diante de nada.  Pobre Inês, tão inocente e tão apetitosa. Diante aí do computador, fria e insondável, protelando o que não está escrito nos textos sagrados, mas que vai acontecer, como um cataclismo, por força não sei do quê.

         Devem pensar que estou louco, pois meus modos têm se alterado significativamente nos últimos meses. (Não fiz parte durante muito tempo do rebanho cordato e feliz?) É que cansei de encher o imenso e insaciável buraco da vida.  Saulo tem dito abertamente que estou jogando na lata de lixo tudo o que construí com esforço e dedicação. — Tão perto da aposentadoria, e você se destrambelha desse jeito, cara?

Quando bebemos, nossa alma acha de escorrer para fora, mostrar-se inteira, nua, imprudente. Agora sabe de minhas intenções suicidas, meus desejos inomináveis. Digo pra ele, querendo ampliar o abismo que cavo diante dos seus olhos, — Rapaz, estou pronto para o adultério. Quando vou à janela (e faço isso inúmeras vezes ao dia), seu olhar me acompanha, querendo flagrar, talvez, o momento do salto.

         Ah, Inês, Inês, que vontade de beijar a sua nuca!

Chego perto dela, enquanto trabalha no computador, digitando intermináveis documentos, e sussurro que ela é muito eficiente, que está perdida nesta ilha de incompetência e futilidades. Falo bem junto ao seu ouvido para que sinta o hálito quente e insano que carrega cada uma das minhas palavras para dentro da sua alma. Inviolável. Segura. Inatingível. Deus é fiel. O manto do Criador envolve o seu corpo e o seu espírito, e cada uma das minhas palavras cai por terra, vencida. Poderia morder logo o seu pescoço, apertar seus peitos túmidos, inaugurando de vez o dia do destempero, do caos absoluto. Mas um restinho ainda de razão cerra meus dentes e ata minhas mãos.

 

 

         Longas, longas jornadas através dos corredores do Ministério em busca do inefável. Subo e desço escadas, embarco inúmeras vezes no elevador, sem destino certo. Salto às vezes no quarto andar sem ao menos saber se me interessa ir a alguma seção. Decido assim de última hora entrar na Seção de Pessoal. Do fundo da sala vem um ih, lá vem ele de novo, que faço de conta nem ter ouvido. O Nestor, a quem conheço há anos (entramos quase ao mesmo tempo no serviço público), olha-me por sobre os óculos de velho burocrata. — Achou o que procurava, meu velho?, indaga-me com certa seriedade que, tenho certeza, logo se afundará no rasgo de um riso maldoso. — Aquilo foi uma visão, não pode ter sido real, respondo da maneira  mais racional possível, pois quero que  todos  saibam que estou em meu juízo perfeito.

Sem que me ofereçam, puxo uma cadeira, sento-me, distraio-me folheando uma revista. Folheio e logo me canso. Ando tão sem paciência e concentração nos últimos tempos que o mínimo esforço repetitivo já me enche de nojo e ira. Pouco a pouco, chega aos meus ouvidos, vindo de um passado que não desgruda nunca da memória, o tec tec  de alguém, ágil e febril, datilografando na Olivetti manual sem olhar para o teclado. — Lembra, Nestor, quando chegaram as primeiras elétricas? Que euforia! Como a gente ia saber que um dia íamos estar assim, nessa comodidade toda? Que tempos heróicos, não é, Nestor? Papel carbono, corretivo, fita, tabular... Ah, essa gente nova não sabe o que é trabalho! Você concorda, Nestor?  Mas Nestor já não se encontra mais lá: a cadeira, repentinamente vazia, tem, ao mesmo tempo, um significado pungente e irônico: é como se ele nunca tivesse estado ali. Nestor, assim como tudo o mais aqui, não existe. Todo esse tempo, foi apenas ilusão, uma imagem que nos atravessa sem deixar rastros e reverberações. Ainda tento me fazer notar, mas, diante da indiferença geral, digo — Não quero atrapalhar o serviço de vocês,  e saio, sentindo às minhas costas a navalha do riso da corja toda.

         Sim, deve ter sido só uma visão, do contrário, como então se explicaria a beleza incomum daquela mulher?  Estava tão envolta na luminosidade da sua carne, da sua alma, que não tenho a mínima condição de detalhar suas feições. Era pura luz. A única hipótese à qual me agarro, para não me sentir um louco, é que ela não pertencia a este mundo.

         Era ainda o princípio do meu desassossego. Os primeiros sinais de esgar e dor já afloravam em meu rosto. Mas não havia  pousado ainda os olhos nos seios de Inês, tampouco criara o hábito de me aproximar tão insistentemente da janela do quinto andar. Chegava regularmente cedo em casa, ainda que houvesse, inconfessável, o desejo de estacionar em algum boteco da Asa Norte e esquecer-me de tudo. Esperava com impaciência e um certo temor a chegada da aposentadoria. Nunca, nunca havia aberto o jornal em busca de sexo pago. E, como a maioria dos mortais, ainda me sentia seguro junto ao rebanho.

Naquela tarde, porém, minha tosca existência foi tragada de vez pelo redemoinho do inexplicável.

Vi a mulher brotar de uma seção no quarto andar, como se saísse de um filme ou de um sonho, e sua luz cegou-me completamente. Quando passou por mim, ainda tentei balbuciar qualquer coisa, mas a língua estava dormente, pesada, e a boca, seca e vazia.

         Ainda atordoado, pus-me a segui-la. Ela desceu a escada com tanta pressa e agilidade que quase a perdi de vista no terceiro andar. Dobrou a quina do corredor como se fosse descer a escada ou pegar o elevador, mas desapareceu como num passe de mágica. 

Não é possível que tenha descido tão rápido assim a escada, nem pegado o elevador, que eu não pudesse alcançá-la mais adiante. Perguntei ao ascensorista sobre a mulher, mas o infeliz, com a indiferença e a frieza dos que trabalham sempre contrariados, negou tê-la visto. Lá embaixo, no térreo, obtive a mesma resposta do pessoal da recepção. Voltei correndo até o segundo andar, entrei em todas as seções indagando sobre a mulher, diante do espanto das pessoas ( ah, meu olhar era uma câmera alucinada e delirante, mas não me dava conta disso; para mim, toda aquela busca frenética era plenamente explicável ).

Por fim, esgotado, retornei à seção e passei o restante da tarde junto à janela com o olhar perdido na paisagem que tentava apagar os derradeiros tons cinza do inverno.

         Faz quatro meses que tudo isso aconteceu, e não há um dia sequer em que eu não saia e percorra todos os corredores, todos os andares, todas as seções, na esperança ainda de encontrar aquela mulher. Talvez ela pudesse me salvar, repito para mim mesmo, tentando justificar essa esperança acesa, intranqüila. Sei que sou motivo de chacota em todo o prédio. Dizem, à boca pequena, que não estou em condições de continuar trabalhando, e que o mais sensato seria me aposentar logo. Sei que em casa a dor se alastra: erva daninha crescendo sobre os lençóis, enchente devorando as margens do rio onde até então nos banhamos felizes, seguros. — São esses livros que você lê, Baltasar, não faz outra coisa quando está em casa, acusa a minha esposa, os olhos vermelhos e as olheiras denunciando a dor e a solidão em que tem estado mergulhada.

Mas o abismo já está cavado: o gesto irrefreável arma seu vôo cego, insensato. Enquanto a mulher não volta, ou eu a encontre por aí, num shopping ou num bar (lance mágico perpetrado pelo destino), planejo tomar de assalto a fortaleza dos seios de Inês.    

 

 

 
 

 

 

RETIRADA DA LAGUNA

 

 

ATO Nº 1

 

Sabe que é hora de recuar, dizer adeus aos bons momentos, cerrar as cortinas e retirar-se para a penumbra. Outras vozes ressoam nos bastidores. A arena já não lhes pertence mais: o movimento irrefreável das massas avança sob o comando dos velhos líderes. Tudo isso vai se juntar  aos mil motivos que ele  apresentará  a  Helena, daqui a pouco, para justificar sua decisão de romper com ela.  Quando chegar ao apartamento, onde sempre se encontraram alheios a toda essa agitação que toma as ruas e as praças, o discurso já estará pronto.

Ela sentirá o golpe. As primeiras palavras vão atingi-la como uma rajada de metralhadora.  O sangue, indo em defesa de outros órgãos, deixará seu rosto exposto à palidez cadavérica. Dominado pelo nervosismo, pela angústia, talvez lhe falte tato ao revelar-lhe a sua decisão.  Não há dúvida de que  ela vai chorar, e copiosamente. Afinal, durante todo esse tempo, ele alimentou suas esperanças de viverem juntos, viajarem, terem filhos. Pode antever as lágrimas deslizando rente ao nariz, remansando-se no canto da boca borrada de vermelho, formando minúsculas poças junto aos pés. Os lábios trêmulos,  úmidos, deformam parte do que ela balbucia, mesmo assim é possível  capturar filetes de frases como, — Não posso acreditar nisso/ ... a nossa história?/ o que isso tem a ver com coragem?/ te esperei ontem, anteontem.../ ...que estou sofrendo. Talvez nesse momento, comovido pelo tom do seu discurso,  ele a abrace forte, e ela, em desespero, aperte-o como se quisesse colar o seu corpo ao dele para sempre. 

         Alguma coisa vai se partir dentro dele, irremediável. Porém, duro e seco, ocultará a miríade de cacos no mais profundo do seu ser.

 

 

ATO Nº 2

 

         Entre os Ministérios, com o Congresso às suas costas, a Bandeira Nacional tremulando bem alto, como se tocasse as nuvens, a Torre de TV à sua frente, apontando o infinito, o major  Diogo Fontes dirige o carro sem pressa alguma. Pudesse, retardaria indefinidamente o encontro. O sofrimento.  A tortura das palavras nos labirintos da alma. O vidro do olhar embaçado, prestes a romper-se sob a pressão das lágrimas. Procura, há horas, ordenar as idéias, dar-lhes uma certa consistência, alinhar os argumentos sem deixar brechas para os contra-argumentos. Não quer demonstrar nervosismo, fragilidade, menos ainda rudeza, por isso tenta vestir cada palavra com traje delicado, bem engomado (a farda de corte preciso),  para que, assim que escape da trincheira dos lábios, atinja o alvo nos pontos vitais, indolor, encerrando enfim a história ( o embate )  sem deixar vestígio algum de mágoa,  nenhum desejo de vingança. Quer evitar lágrimas, prantos copiosos. Será preciso fazê-la entender que isso será o melhor para ela. Nem está pensando nele, dirá, e espera que isso a reconforte. Se, porventura,  ela se atirar nos seus braços, implorando-lhe que fique, que esqueça tudo o que lhe disse, — Três anos, acha que foi brincadeira? — talvez lhe falte forças para prosseguir, para lhe virar as costas e ir embora. A melhor estratégia talvez seja esta: ser incisivo, impiedoso até. Uma lâmina de corte preciso e fulminante. Ao se retirar do campo de batalha, não pretende olhar para trás, para que não seja surpreendido pelo remorso nem pela ternura que se esvai. 

Quando  bater a porta às suas costas, ela entenderá enfim que tudo acabou, e sua alma de porcelana, oprimida ao extremo,  se fragmentará por inteiro.

 

 

ATO Nº 3

        

         Hora de esvaziar as gavetas, rasgar papéis, apagar vestígios. Parece uma retirada tranqüila, sem alardes, sem feridos, sem afogados nem coléricos abandonados pelo caminho, mas toda essa calmaria é falsa: esconde em sua brisa a tempestade e o pânico. Foram longos anos onde a força e o silêncio imperaram. Mas a ternura ( e ele nem sabe como isso pôde acontecer, nem esperava mais por algo assim, tão inefável) também conseguiu brotar nessa dureza toda: três anos na clandestinidade alimentando uma relação que ele, desde o princípio, sabia fadada ao fracasso.

Sentirá saudades da sala de onde se vê parte da Praça dos Três Poderes, do conforto da cadeira executiva em couro natural, da mesa sempre coberta de pastas com recortes de jornais,  dos subordinados, civis e militares, ainda que pouco ou nada saiba da vida deles. Horas a fio ali, sozinho, sentindo-se quase inútil. Quando estiver longe, servindo talvez em outro estado, tem certeza de que será sempre visitado pela  imagem dos longos corredores do Anexo do Palácio do Planalto. Ali, às cinco da tarde, seus passos, por várias vezes,  ressoaram afoitos, acossados pelo desejo e pela saudade dos carinhos de Helena. Era impossível resistir. Então, como um desertor, abandonava o seu posto e, numa fuga desesperada, buscava o conforto dos braços da amante. Quantas vezes atravessou o corredor de ministérios sob a vermelhidão de um crepúsculo sangüíneo, inesquecível?  Quantas vezes teve de inventar histórias, reuniões de emergência, secretas,  para justificar a chegada sempre tarde em casa? Quantas viagens a serviço servindo de álibi para as noites e dias passados longe de casa. Quanto desgaste, para que tudo acabe assim, burocrático, rancoroso, melancólico. E o pior ainda estará por vir. Quem poderá garantir que toda essa história vai acabar assim, sem maiores problemas, com simples palavras, pedidos de desculpas, apertos de mãos?

         Nem pode imaginar como será o dia de amanhã. Uma porta se fecha, outra porta se abre. Quando chegar cedo em casa hoje, sentar-se no sofá para assistir televisão ao lado da esposa, talvez possa experimentar um pouco de alívio como há muito tempo não tem experimentado.  É o que deseja. É o que o seu corpo e a sua alma reclamam. Mas talvez não seja tão simples assim, já que os sentimentos,  mergulhados ainda nas profundezas abissais, esmurram-lhe o peito e arranham-lhe a alma em desespero.  E o mais provável é que a dor e a tristeza, sem querer lhe dar trégua, aniquilem de vez sua vontade de renúncia e sossego.

 

 

 

ATO Nº 4

 

         Poderia ter resolvido tudo por telefone. Isso evitaria o desgaste maior de vê-la sofrendo ou  acusando-o de covardia.  Já havia deixado alguma coisa subentendida no último telefonema, mas achou que seria muita falta de consideração simplesmente dizer-lhe, — Olha, decidi acabar tudo, é melhor para nós, as coisas estão mudando... — Que coisas?!, ouviria a sua voz estrangulada do outro lado. — O que você está querendo me dizer e não diz logo? Por que não acaba com esse tormento?

Não, não, seria muito cruel resolver tudo assim, a distância.  Afinal, são três longos anos. Tanta coisa boa aconteceu entre eles, mesmo que misturada sempre ao gosto amargo da coisa feita clandestinamente, sob a camuflagem da mentira. Seria preciso lhe dizer que o poder está mudando de mãos, que eles, os militares, deverão retornar aos quartéis, ao comando das tropas. E ele nem sabia ainda qual seria o seu destino, — Posso ser mandado para longe daqui, para o interior, para o meio da mata, você sabia? — Eu vou com você, ela retrucaria, firme, comovente. — Não vale a pena, nosso amor não sobreviveria a isso. — Então nunca foi amor!, ela quase gritaria. — Talvez nem seja mesmo, nunca tivemos tempo de colocá-lo à prova. — Você está sendo covarde. — Pense, não demora muito e estarei velho, você é ainda tão jovem, pra que desperdiçar  sua vida assim? — Você está jogando no lixo tudo o que vivemos, isso é crueldade. — Há outras razões que justificam tudo isso. — Nada pode justificar o que você está fazendo.

         Os dois sangrariam nesse momento. A fadiga quase os aniquila. O major sabe que essa luta é vã, que Helena não entenderá, nem aceitará seus argumentos.  Mesmo assim é preciso lhe dizer com  ênfase, com frieza, — Olha, meu amor, meu sogro é um general da reserva, foi um dos conspiradores do golpe, esteve lá, na Marcha da Família com Deus, pela Liberdade, e isso aqui pra ele é execrável, inconcebível... — Você já me disse isso, não precisa repetir. — Mas estou dizendo de novo para ver se você entende por que estou acabando tudo! Nesse momento, sua garganta estará seca, quase trincando, e as palavras, por conta do atrito,  sairão com mais dificuldade, quase o sufocando.  Urge, no entanto, retomar o discurso, ser rápido, não permitir que o coração assuma o comando, — É ele   que tem ajeitado as coisas pra mim, e ele pode tanto ajeitar quanto entravar. Você entende?  Ela está atônita, pedindo para que ele pare. — Pensa, acha que quero estacionar nessa patente, como um simples major, se posso ainda almejar um posto mais elevado? — Ambição, é só isso o que te importa gora. — Que seja, mas não sei se poderia viver sem isso, se o nosso amor sobreviveria sem isso. Tenta adivinhar como estariam os olhos dela nesse momento. Estariam mergulhados na tristeza, na decepção profunda, ou flamejariam de raiva, de ódio? Provavelmente ela daria uns dois passos para trás e balançaria a cabeça perplexa, como se ele estivesse se dissolvendo diante dela. Já não  reconhecia nele o homem que a carregava nos braços até a cama e a cobria de palavras ternas, apaixonadas, como um jovem  capturado pela primeira paixão de sua vida. 

         O céu, de um azul gritante, sereno, contrasta com a tempestade que lhe agita o íntimo. Do apartamento, pode-se avistar uma nesga do Lago Paranoá, e por várias vezes os dois ficaram na sacada contemplando esse horizonte líquido. A grama seca, a fumaça e a baixa umidade revelam os incômodos do inverno. Lembra-se de que Helena tem problema de rinite, e, entre os vários  planos que traçaram, estava o de irem embora de Brasília por causa do seu clima terrível.  

Enquanto se aproxima, sente como se o Sol escapasse-lhe das mãos. 

        

 

ATO Nº 05

 

         A porta  está aberta,  generosa como sempre, porém, preso ao piso, o major Diogo Fontes reluta em entrar. Teme ultrapassar essa fronteira e nunca mais encontrar o caminho de volta. O coração se abalaria de vez dentro desse ambiente de ternura e expectativa. Do lado de dentro,  todas as armas estão com a amante: o cheiro, a voz, o toque das mãos, o corpo de pele morena dentro do vestidinho de alça, decotado, deixando exposta parte dos seios.  Ele tem tudo ensaiado, a razão no comando, mas está tão impregnado dessa mulher, do que ela pensa e exala, que... — A experiência do amor, esse ao qual se renuncia, é dolorosa, incurável, mas esse é o que fica encravado dentro, eterno. Ia dizer isso a ela, mas.

Ela  lê no rosto dele, sem muito esforço, o que  mais temia: a carta-renúncia, o bilhete de suicida, as garatujas de desespero. O texto agônico está exposto lá, feito uma chaga.  Se tudo já está dito, então. Queria não chorar, mas as lágrimas não lhe obedecem.  Ele queria dizer tudo de uma vez, num jato só, mas as palavras desertaram. 

O silêncio os aprisiona e os  petrifica.

 

 

 

[Contos do livro inédito A saga do nada]

 

 

 

 

(imagens ©darkshape)

 

 

 

  

 

Geraldo Lima (Planaltina-GO, 1959). Vive em Sobradinho-DF. É professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Publicou  A noite dos vagalumes (contos; Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, 1997);  Baque (contos; LGE Editora/FAC, 2004); Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora, 2004). Tem contos publicados nas revistas Zunái — Revista de Poesia & Debates; Bestiário e Famigerado. Participou, em 2004, da Antologia do Conto Brasiliense (Projecto Editorial, org. Ronaldo Cagiano). É autor das peças de teatro Error (encenada pela Oficina do Teatro de Periferia, 1987) e Trinta gatos e um cão envenenado (inédita).