Marcelo Ariel

 

Sonhando com Philip Dick

 

Philip Dick estava sentado no meio-fio da Avenida Paulista, que estava completamente deserta, ele diz enquanto toma um sorvete. Para nós, os sonhos são a ressurreição da carne, você sabia que os celulares apareceram num sonho de Leonardo Da Vinci? Como você sabe? Digo. Eu sou uma das partes dele agora, Philip Dick diz, os celulares são a pré-história da telepatia, ele continua. O que você achou dos vários filmes baseados em seus livros? Blade Runner é meu preferido, onde eu moro, ele está acontecendo, moro em uma espécie de Blade Runner na África. Repito dublando minha própria voz, nos sonhos falamos sem mover os lábios e nossa voz é dublada por nós mesmos. A África já foi anexada ao Brasil? Ele pergunta. Ainda não respondo. Sabe quem é o presidente dos Estados Unidos aqui? Nem tenho a mínima idéia? Jean Luc Godard. Philip Dick depois de dizer isso, se levanta para fumar um cigarro de oxigênio e antes de jogar as cinzas transparentes no ar, aponta para o chão, percebo que o chão é formado pelo corpo de centenas de milhares de crianças mortas incandescentes. Parecem mortas, mas estão dormindo elas são teleportadas do mundo das chacinas para o mundo dos sonhos e quando chegam aqui, permanecem misteriosamente mortas, nós caminhamos pisando nesses corpos e nem percebemos. Tente levantar a cabeça e olhar para o céu. Ele grita e eu acordo.

 

 

 

 

 

Marcelo Torres

 

Por ti e por nós

 

Observemos o redemoinho,

cada qual com sua alma.

A humanidade quer o amor

dos moradores

de Realengo,

quer as inconclusões apresentadas

da tragédia no fundo no precipício.

Suas faces crianças são coradas

veementes como o sol carioca.

Cantaremos a pulsação vital da vida,

por ti crianças,

por ti famílias,

por ti esferas humanas,

fixaremos a ciranda,

a bandeira branca,

o abraço coletivo,

a bola que desce a rua,

e

acima de tudo o amor por nós

e

pelos outros.

 

 

 

 

 

Márcio Almeida

 

À paz que jaz na memória dos vivos

 

Viva o Mengo!

Viva o dengo!

Vivam os anjos do Realengo!

 

Por que WELL Lee nton

— terrorista tupiniquim —

dizimou crianças aprendizes do tom

de que viver é perigoso e malsim?

 

Por que, tíbio, não matou na Líbia?

Se Oliveira, BALAnçou a Tasso Silveira?

 

Quem lhe desamou tanto

pra fazer média com tragédia?

De que vale ressuscitar no canto

a besta morta sem rédea?

 

O que fez a menina de sua chacina?

O que fez o menino pro seu assassínio?

Ela lembrou que amor é sina?

Ele lembrou que ódio é desígnio?

 

[à moda de Cecília]

No diário de uma delas,

com certeza estava escrito:

— Sou feliz, não procela,

feita de amor, não mito. 

 

(à moda de Camões)

Alminha pueril que em vão partiste

tão cedo desta vida, e tão vilmente,

repousa lá no céu eternamente

e vivam os seus na terra sempre tristes. 

 

[travelling]

Paredes furadas

corpos em sangue

em salas, escadas,

bangue, bangue.

 

Um tiro na barriga,

um tiro na cuca,

doze mortos sem briga,

doze mortos sem culpa.

 

E os pais, o que fazem?

As mestras, que ensinam?

Rezam e dizem: aqui jazem

que nem viveu e assassinam.

 

TV repassa a desgraça,

jornal registra e suíta,

revista esgota na praça:

ninguém ressuscita.

 

Em Realengo ou Winnendem,

em Kauhajoki ou Dunblang,

só morre gente de bem:

Bangue! Bangue! Bangue!

 

[mo (r) te final]

Das doze crianças mortas

poucos vão inda lembrar

a paz só abre uma porta

se faz lição de matar.

 

Uma vez mortas por nada

adubem de sonho esses entes

e em coro se faça a chamada:

— Memória da paz, presente!

 

 

 

 

 

Marco Aqueiva

 

Pela paz de um gole

 

quando escorre um tom fundente

depois de uns dias de aguaceiros

carregar no cantil nuvens

nuvens arqueadas de olhares

tensos e elásticos sonhos

moldados por este sopro

dados a beber a esperança

: apenas na paz de um gole

 

 

 

 

 

Maria da Conceição Soares Bastos

 

Realengo

 

Os tiros

 

Alunos em fuga

Gritos

 

a câmera impotente

 

               corpos pelos corredores

               sangue

 

a escada

um corpo

 

 

 

 

 

Mariel Reis

 

Antinome

 

Caça anjo exterminador

Àquele cujo nome

É impronunciável.

Nos desvios do acaso

Oh, Abaddon impossível!

 

 

 

 

 

Mário Alex Rosa

 

Tiro na Memória

 

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