©monica lau
 
 
 
 
 
 
 

Há algumas semanas, um escritor de Campinas com alguma projeção nacional, pois é colunista fixo de um caderno da Folha de S. Paulo, respondeu duramente a um jornalista que escrevera sobre o seu último livro. A resposta, em si mesma, era preconceituosa e pífia1. Mas havia nela um ponto de interesse, pois vinha à tona, despida na sua rudeza, a aversão à crítica que domina grande parte do meio literário brasileiro.

Eis o argumento: o jornalista evidentemente não gostara do livro; se, não gostando, escrevera sobre ele, ou o fazia por ser um pau-mandado da direção do jornal, ou por ser um mau-caráter, que merecia interpelação judicial. O terceiro excluído, que permitiu essa formulação dilemática, foi a idéia de que a crítica escrita se possa fazer espontaneamente, como exercício de inteligência e avaliação. A exclusão categórica dessa terceira possibilidade, como se ela pesasse pouco ou fosse quase impossível, a menos que fosse um ato de insanidade senil — e não foi, pois não foram poucos os leitores e autoridades que se solidarizaram com o revide do escritor —, devia contar, como apoio da sua credibilidade, com a existência de um acordo tácito que a tornasse palatável.

Para quem acompanha o mundo literário brasileiro, não é difícil identificar o acordo. Ele é mais ou menos generalizado, e se ergue em torno de um preceito que tem passado por regra de ética e polidez, embora seja mais propriamente o esteio do compadrio. Trata-se do princípio de que uma reação crítica deve ser publicada quando for, de modo geral, favorável à obra analisada, ou quando nela predominar o caráter de apresentação mais ou menos neutra. Caso contrário, o melhor procedimento é o silêncio público, que não será contraditório com a maledicência privada.

A infração a essa regra de ouro tem como resposta a inimizade, a censura ou a reação corporativa descarada, para a qual a crítica franca e aberta é desrespeito, insulto ou agressão.

Se o criticado não tem expressão, a crítica de fundo é entendida apenas como um ato ímpio ou pouco generoso. Se o criticado é alguém com lugar definido no mundo acadêmico ou literário, com uma posição em um dos blocos que loteiam os jornais e os bolsões da vida literária, a reação varia desde o revide por interposta pessoa até formas mais truculentas e diretas de censura.

Entre essas formas de censura pública se destaca, pela repercussão ampla na vida social, a moda brasileira do abaixo-assinado das celebridades.

O abaixo-assinado tem origem democrática. Consiste, em princípio, num documento no qual um grupo de anônimos se reúne para reivindicar, pelo número, o direito a voz ou a uma resposta que, individualmente, dado o próprio anonimato e face à indiferença do poder, nenhum deles conseguiria.

A modalidade em pauta, porém, nada tem de democrática, pois um abaixo-assinado subscrito por personalidades de expressão pública ou acadêmica, dirigido contra o direito de um cidadão se pronunciar, não tem outro desígnio que não seja o de exigir o silêncio ou a submissão, sem necessidade de apresentar argumentos. É um ato de puro poder, uma modalidade do "cala a boca" do chefe de facção ou do "sabe com quem está falando?" do poderoso do momento.

O que teve caráter de certa forma inaugural foi o que se organizou contra José Guilherme Merquior, no começo dos anos 80. Merquior encontrou, sem aspas, num livro de Marilena Chauí, alguns trechos de Claude Lefort, e registrou por escrito o achado. A conseqüência não foi a justificação do ato pela autora ou o debate sobre um procedimento acadêmico que podia dar margem a um questionamento nesses termos, mas um abaixo-assinado contra o crítico "de direita" que agredia a filósofa "de esquerda".

O fato intelectual teve, por esse caminho, a sua importância apagada, e a notação crítica foi tratada como ato a anular, e não como um texto a ser encarado e rebatido no campo das idéias e argumentos.

Uma década depois, outro documento do mesmo tipo foi publicado contra Bruno Tolentino, em desagravo a Augusto de Campos. Aqui não houve argumento. O que esteve na mira dos subscritores foi o fato inaceitável de uma figura bem estabelecida nos meios intelectuais ter sido objeto de crítica violenta por um adventício, um recém-chegado sem lugar no meio literário nacional.

Mais recentemente, organizou-se um cala-boca solidário a Sebastião Uchôa Leite, contra o jornal Rascunho, com uma novidade: a usual censura e repúdio não pareceram suficientes, e algum inimigo mais convicto da liberdade de expressão se empenhou num plano para extinguir o próprio veículo da crítica, isto é, o jornal, por meio de pressão coletiva sobre o seu principal patrocinador.

E há ainda que lembrar o abaixo-assinado contra o artigo de Nelson Ascher sobre Edward Said, que reuniu, contra uma crítica também política, personalidades várias, ligadas a diversas comunidades e a grupos teóricos de extração diversa.

Alguns nomes destacados figuram em mais de um desses documentos coletivos. Pessoas que, sem esforço, conseguiriam espaço na imprensa para apresentar argumentos e razões intelectuais para desqualificar e rebater a crítica indesejada. Por que preferiram o abaixo-assinado? Por simples preguiça intelectual e alinhamento partidário? Por gosto de estar em boa companhia, no caso dos menores, e por afetação de humildade, no caso dos mais célebres?

Sejam quais forem os motivos, o que importa ressaltar é o resultado do recorrente gesto de repúdio à crítica e ao direito de criticar. Essas brigadas ligeiras de combate, montadas acima das diferenças teóricas e políticas, capitalizando o prestígio intelectual dos seus integrantes a serviço da repressão do pensamento independente, naturalizam e revestem de dignidade o que é rasa violência de censura e namoro com o obscurantismo, em nome dos bons costumes e do respeito à hierarquia. O resultado é o estabelecimento de um princípio de bom-mocismo nacional e o reforço da necessidade de alinhamento a algum dos principais grupos regidos por uma figura totêmica, sem o qual o livre-pensador fica desprotegido e sem espaço de escrita e manifestação.

Também é digno de nota que, entre subscritores contumazes desse tipo de documento se encontram membros do corpo docente das nossas melhores universidades. O que está em contradição com a imagem que a universidade constrói publicamente de si mesma, como lugar de embate de idéias e respeito à pluralidade de pontos de vista e opções teóricas.

Na verdade, o abaixo-assinado é apenas um sintoma — talvez o mais espetaculoso — de uma atitude ativa de repúdio à crítica que se enraíza na vida intelectual brasileira contemporânea. Uma atitude generalizada, que não apenas encontra abrigo e pasto privilegiado no meio acadêmico, mas ainda tem no funcionamento da universidade e no aparelhamento da mídia, especialmente a paulista, pelos grupos de poder que se formam no interior da instituição acadêmica, uma das suas fontes de renovada energia.

Na área das Letras (nas demais humanidades talvez não seja diferente, mas não posso erguer a voz em testemunho, como nesta) é costume geral as bancas examinadoras de teses e concursos universitários se montarem segundo critérios de amizade, dívida pessoal e apadrinhamento, ou ainda segundo a prática paternalista comum, que é a de se aceitarem as escolhas (e os vetos) dos próprios examinandos.

Por isso, nessa área, o exercício responsável da crítica em situações de exame é o caminho mais curto para o ostracismo. E mesmo nas situações que não envolvam exames públicos, o exercício da crítica independente, que viole a demarcação das áreas de influência ou contrarie um julgamento de chefe de grupo, recebe resposta imediata na forma de censura, isolamento institucional ou veto explícito à presença do crítico indesejado em empreendimentos intelectuais sob a influência da autoridade contrariada.

Talvez em outro país o relaxamento da crítica no interior da universidade não tivesse um impacto tão decisivo. Mas aqui, onde não há praticamente outras instituições de peso cultural, o seu papel formador é enorme e, por isso, a sua responsabilidade no processo geral de enfraquecimento da crítica é grande. Principalmente porque é no seu interior que se cria e acaba se abrigando, dada a limitação de possibilidades de vida cultural na mídia, a maioria dos praticantes das várias modalidades de crítica de literatura.

O crítico que escreve em jornal de grande circulação, hoje, no Brasil, ou é aluno, ou é professor, ou é aspirante a professor das universidades de primeira linha. Assim, ou como origem, ou como destino almejado, a universidade e o seu modus operandi, bem como as suas facções, acabam por reger também o ralo meio literário que sobrevive à sua margem ou à sua sombra.

Por isso é tão recorrente na imprensa a ânsia de glosar os lugares estabelecidos pelos discursos acadêmicos mais prestigiosos, ainda que disso resultem textos contraditórios ou incongruentes. E também por isso a imagem de respeitabilidade crítica se faz por meio de uma curiosa mistura: do olhar desdenhoso que a universidade ainda lança sobre o campo do presente com o esforço historizante, que busca substituir o debate sobre objetos pela proposição de linhas de filiação nas fontes canônicas eleitas e celebradas pelas versões hegemônicas do desenvolvimento da literatura nacional.

Não espanta, assim, nesse quadro de rarefação do embate crítico, no qual a regra é evitar o confronto, que a forma privilegiada do texto dedicado à produção literária moderna e contemporânea seja a glosa, tanto nos artigos elaborados para jornais, suplementos e revistas de grande circulação, quanto nos textos produzidos para circulação no meio universitário: monografias, dissertações, teses e relatórios de pesquisa.

O procedimento comum é a paráfrase ou a transcrição, em mosaico, das formulações metalingüísticas da própria obra ou do discurso do autor sobre si mesmo, presente em entrevistas, artigos e depoimentos. O que resulta, de regra, num discurso plano, levemente acadêmico e tedioso, cujo atrativo principal é servir de resumo ao que está presente na própria obra e nos seus paratextos; ou então de apanhado dos lugares-comuns da historiografia dominante, de modo a "explicar" o objeto pela filiação a um deles, como decorrência ou contraposição.

O resultado imediato é a anemia e o desinteresse que caracterizam a maior parte da produção brasileira que enfoca os textos literários do presente, incapaz de real enfrentamento com os objetos e problemas imediatos da cultura contemporânea e, principalmente, com a questão do valor.

A propósito, o escritor Nelson de Oliveira escreveu o seguinte: "as resenhas dos cadernos literários têm me interessado apenas na medida em que põem em evidência, para o freqüentador de livrarias, meu último trabalho. Ou seja, na medida em que divulgam uma obra recém-lançada, funcionando como ferramenta da propaganda e ajudando nas vendas".2

É certo que a frase exibe algum cinismo provocador. E é certo que Nelson de Oliveira parece idealizar, em alguns pontos do seu texto, a crítica produzida na universidade, da qual é também praticante, em nível de pós-graduação.

No que diz respeito especificamente às resenhas, quem quer que venha acompanhando as páginas literárias dos jornais brasileiros não verá exagero na sua redução a instrumento de promoção de vendas. Nem nesta outra afirmação, que se encontra no mesmo texto: "o crítico literário — tanto o da imprensa quanto o das universidades — é, para os escritores de hoje, uma nova espécie de colunista social".

Uma postura defensiva seria entender a declaração de Oliveira como um exemplo da dificuldade de os escritores perceberem qual seja o real lugar da crítica, ou sua função na vida da cultura.

Quanto a isso, é certo que, para boa parte deles, a questão da crítica sequer se apresenta como questão intelectual. O que se observa, por exemplo, quando se constata que inserir a assinatura num abaixo-assinado, sem sequer ler o documento a subscrever, é menos uma recusa da atividade crítica (ou do valor de um texto crítico específico) do que uma manifestação de solidariedade abstrata, isto é, de esprit de corps. Nesse caso, a recusa à crítica é quase uma reação fisiológica, despida de maior interesse: um gesto defensivo e corporativo, dirigido contra algo que parece apenas uma ameaça ao espelho narcísico ou aos resultados de vendas.

Mas o próprio gesto automático de repúdio à crítica só é possível e freqüente porque na vida literária brasileira é muito forte o descrédito atual da crítica. Ou seja: ele não é produto, mas produtor dos múltiplos gestos afetivos, provindos do campo artístico.

Tal descrédito deve ser debitado em parte à conta dos próprios agentes que atuam no campo crítico e definem os seus limites e regras de funcionamento. Porque, de fato, talvez seja só um pouco exagerado dizer que, neste momento, é cada vez menos necessário ler a crítica literária brasileira, especialmente a publicada em jornal. É claro que há exceções e que alguns nomes destoam do cinzento usual. Mas na espessa maioria dos casos, basta passar os olhos pelas páginas e colunas, tomar consciência do que foi resenhado, anotar quais livros receberam espaço na mídia, quais vieram acompanhados de um retrato do autor ou uma foto da capa, em que tamanho etc. O texto quase nada acrescenta à sua própria presença na página, e usualmente o título e a avaliação final, icônica, quando existe, bastam para que ele tenha cumprido a sua função.

Mas não só. Essa é apenas a maneira mais leve de encarar a questão, que lhe reserva inclusive certo glamour kitsch: a crítica como colunismo social. Mas, por conta da substituição do gesto crítico pela simples ocupação do espaço, a crítica contemporânea é mais propriamente descrita como modalidade do marketing, sendo as páginas culturais dos jornais, revistas e suplementos de grande circulação objeto do mesmo tratamento profissional que recebem hoje as gôndolas das redes nacionais de supermercados.

O estado atual da crítica não é, portanto, resultado de algum fator subjetivo ou contingencial, como a ausência de bons talentos críticos depois do que teria sido o grande momento dos anos 50 e 60. É certo que a universidade, subordinando as questões intelectuais ao aparelhamento ideológico e fugindo ao embate crítico em nome dos interesses pequenos e imediatos da luta pelo poder local, contribui decisivamente para a eliminação da tensão crítica. Mas a persistente falta de tônus intelectual e a ausência ou omissão dos agentes conseqüentes, que, juntas, promovem a demissão da crítica da vida literária brasileira, não encontram explicação na vaidade dos criadores, na pouca inteligência ou na falta de coragem do articulista de jornal ou redator de ensaio universitário. Esses são apenas os epifenômenos. O movimento completo tem um desenho mais complexo, pois, embora todos os fatores já enunciados concorram para o caráter anódino da crítica literária brasileira contemporânea, o mais importante deles, em minha opinião, tem tido pouca visibilidade: o fortalecimento e a internacionalização da indústria do livro e do entretenimento literário no Brasil, e a conseqüente valorização do campo da literatura, que, pela primeira vez, se constitui em mercado importante do ponto de vista dos resultados de vendas.

Ou seja, mesmo tendo origem autônoma, a ductilidade e a eliminação da aresta indesejada da avaliação e do embate das idéias se ajustam perfeitamente às necessidades da indústria e do comércio jornalístico e livreiro.

É, portanto, da convergência entre os interesses gerados pelo fortalecimento do mercado, por um lado, e o enfraquecimento do meio intelectual, por outro, que resulta o quadro atual da crítica brasileira. E se a falência momentânea da crítica poderia ser explicada "por dentro", isto é, a partir das formas de exercício do poder intelectual no Brasil contemporâneo, a letargia que a mantém longamente nesse estado falimentar já não pode, pois se deve à coincidência entre esse momento de fraqueza e o fortalecimento e multiplicação dos interesses industriais e comerciais ligados à produção de livros, notícias e eventos literários.

O abastardamento do crítico em divulgador, parafraseador e cortejador dos vários lugares do poder intelectual tem, nesse quadro, função precisa e preço alto, pois o que poderia parecer, a princípio, um estranho dublê de colunista social e agente secundário de marketing acaba por ser o perfil mais adequado à ocupação dos espaços de mídia. Uma ocupação, diga-se, que se processa de forma coerente e metódica, em progressão racional: das matérias esparsas ao controle e editoria de seções especializadas, e destas ao trabalho de assessoria a editoras, que se valerão, depois, desses mesmos espaços para a divulgação dos seus produtos, sem esquecer a prestação de serviços na organização e atribuição dos prêmios literários, que são uma das formas mais eficientes de promoção de vendas para as grandes editoras.

O resultado textual é, pois, o que menos importa na atividade do novo modelo de profissional das Letras. Na verdade, sequer está em causa o sucedâneo de texto crítico que hoje ocupa as páginas dos jornais e das revistas literárias, sob a denominação "resenha" ou "ensaio". A forma de discurso anódino, que evita o confronto com os objetos particulares, bem como o posicionamento perante as questões candentes da cultura contemporânea, e que homenageia e projeta na mídia os vários pólos do poder localizados na universidade, não conta pelo que diz ou deixa de dizer. Conta apenas como objeto pacífico, transparente, que, justamente pela insipidez, se oferece à indústria e ao comércio como instrumento altamente eficaz de divulgação, num ambiente no qual, por conta da demissão da crítica, o espaço preenchido acaba por ser a forma privilegiada, se não mesmo a única, de promoção do produto junto ao consumidor a que ele se destina.

 

 

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Vêm estas considerações a propósito do lançamento do número 7 da revista Sibila, no qual foi publicada uma curiosa peça literária de autoria de Alcir Pécora, intitulada "Momento crítico: meu meio século".

Ao menos uma parte da história da origem e recepção desse texto deve ser narrada, não só para registro do que foi a sua base real, mas também porque ela permite aprofundar o quadro traçado na primeira parte desta reflexão.

No dia 14 de junho de 2004, ocorreu um debate no auditório da Folha de S. Paulo, a propósito do lançamento de um livro de autoria de Manuel da Costa Pinto. A obra integrava uma coleção, publicada sob a chancela Publifolha, cujo título é "Folha Explica". O livro em pauta se chamava Literatura brasileira hoje e a mesa foi composta pelo autor do volume, acompanhado do coordenador da coleção, e pelos debatedores: João Cézar de Castro Rocha e Alcir Pécora.

O que esteve em pauta naquele debate, porém, não parece ter sido apenas o pequeno livro de Costa Pinto. Se tivesse sido isso, como explicar, por exemplo, entre outros gestos reativos, o de uma conhecida assessora de imprensa, encarregada da organização de importantes prêmios e eventos literários no país, que divulgou e tentou sustentar, na minha presença, como testemunho, a versão de que o autor do texto da Sibila não teve coragem de comparecer ao debate,  preferindo desqualificar o livro covardemente, por escrito, a posteriori?3

Como sabem os que leram ao menos as primeiras linhas, o fingimento que dá origem ao diálogo é justamente a confissão de que o seu autor, convidado para participar do lançamento, preferira não o fazer. Sendo o dia do seu aniversário, teria optado, com a mesma irresponsabilidade e gula com que Esaú trocara um reino por um prato de lentilhas, por substituir o compromisso intelectual por um jantar com um grupo de amigos. Na ficção do autor, o debate sobre o livro da Folha se teria processado, sem a sua participação, em volta da mesa de um conhecido restaurante paulistano.

Ora, tendo o próprio autor confessado ficcionalmente que não comparecera ao debate, foi preciso apenas um curto exercício de desinteligência ou de maledicência para tentar fazer acreditar que o que foi dito no referido auditório só teria sido dito na mesa do restaurante.

Mas seria um insulto a pessoas cultas, acostumadas ao trato com a ficção, imaginar que elas pudessem ser assim enganadas pela verossimilhança de um texto. De modo que a explicação para a inverdade deve estar em outra parte e a possibilidade de sua enunciação deve estar baseada em um tipo de comportamento generalizado, que tornaria crível a versão que se pretendeu divulgar.

Em minha opinião, a história divulgada pela assessora de imprensa, que ela sabia falsa, só pôde ser considerada, por ela mesma, uma fábula verossímil por conta da vigência geral do que há pouco denominei "regra de ouro" do bom-mocismo nacional. O procedimento ficcionalizado pelo autor do texto da Sibila só pôde erguer-se em versão concorrente da história real porque se ajustava mais facilmente aos costumes nacionais, isto é, à prática corrente da omissão pública e maledicência privada, quando o resultado do julgamento é negativo.

É esse também o solo sobre o qual se enraizaram outras versões correntes: a de que o banquete escrito trazia críticas que não apareceram ao vivo, e a de que o debate ao vivo teria decorrido de modo ameno, com rebate das críticas pelo criticado.

Quanto ao primeiro item, é muito provável que existam diferenças, especialmente de pormenores, entre o que foi dito em público e o que foi depois distribuído pela boca de várias personagens do texto da Sibila. Mas como o evento do auditório da Folha deve ter sido gravado, ficam para a história literária do futuro o cotejo e o esclarecimento dessa questão que é, como fato, menor, e só adquire pleno sentido como parte de um movimento amplo de desqualificação indireta do texto da Sibila. 

Quanto à segunda postulação, ou seja, a da amenidade e rebate da crítica pelo criticado, tenho a dizer que, como testemunha presencial do episódio, eu também teria preferido que tivesse sido assim. A noite teria sido mais agradável e a cultura nacional teria tido um momento de esplendor, ao invés de um momento de constrangido estupor pela desproporção entre o nível no qual foi formulada a crítica e o tipo de ensaio de resposta que ela recebeu. 

O que importa notar, porém, para fugir à pequena história e retornar à visão mais ampla do funcionamento do campo literário brasileiro de hoje, é que, em face do que foi o debate, a mera possibilidade de se esboçar a lenda da amenidade ou da resposta à altura só pode ser creditada ao consenso sobre a vigência da mesma regra de ouro, que torna inverossímil, ou mesmo absurda, uma situação na qual a crítica se faça de modo direto, franco e forte, na presença do criticado.

Falta mencionar, para ter referido as principais formas de neutralização da crítica que foram utilizadas neste episódio destoante dos bons costumes, o último avatar da regra de ouro, agora na sua versão elitista, mais própria dos meios universitários, que se articula assim: o texto publicado na Sibila seria excessivo, já que o seu objeto é apenas um livrinho de divulgação. O argumento se desenvolve, na modalidade mais vulgar, na forma da metáfora do tiro de canhão para matar uma pulga ou um beija-flor.

Quanto a isso, vai sem dizer que a pulga e o beija-flor não parecem símiles adequados ao caso e à situação. Só a um olhar muito distraído, ou pouco perspicaz, pode escapar a real dimensão e escopo do embate: trata-se de um lugar privilegiado de discussão das formas de funcionamento da indústria cultural, bem como das ligações entre ela e os meios acadêmicos. Um lugar, portanto, de reflexão sobre o que há de mais específico e preocupante no panorama literário brasileiro da atualidade. E tratar esse livro, a coleção no qual ele aparece, a empresa que o publica e a rede de relações editoriais e de marketing na qual ele se move, tratar tudo isso como algo que não merece a atenção acadêmica parece tão absurdo que faz suspeitar do contrário: é justamente pelo fato de o livrinho envolver relações, interesses e poderes estabelecidos de grande vulto que se monta o argumento da sua insignificância. Ou seja: nesse argumento, vigora em plena forma a pior modalidade, porque a mais nociva, de demissão da crítica, que é a autodemissão em favor do interesse.

Do ponto de vista da recepção, ainda não li nenhum comentário de fundo ao texto publicado na Sibila, que foi imediatamente divulgado na internet.

Passados quatro meses, nenhuma contestação foi feita, que eu saiba, à crítica feita por Alcir Pécora à pertinência e representatividade das escolhas, à forma de arrumar os autores sob um nome que mereceria maior atenção e aos procedimentos estilísticos e ao método crítico de Manuel da Costa Pinto.

Tampouco soube de algum abaixo-assinado contra o diálogo, o que talvez se explique pelo caráter ostensivamente ficcional do texto, que deve ter criado um problema técnico aos usuais praticantes do gênero, menos afeitos a organizar documento desse tipo contra obras propriamente literárias.

Assim, a estratégia de apagamento, usual quando faltam os argumentos ou predomina o pacto de mediocridade, é a resposta a mais este ato crítico que veio com assinatura e foi realizado em dois momentos públicos.

Sobre esse último procedimento — o silêncio que logo rodeia as vozes dissonantes —, vale a pena também deter a atenção, pois tampouco se trata aqui de uma deformação espontânea do caráter ou de uma característica sem relevo na cultura nacional. Sendo o meio intelectual brasileiro pequeno, acanhado, nele tudo se sabe e tudo circula com nomes e sobrenomes. A maledicência privada tem um caráter que poderia ser recoberto com a denominação paradoxal de "semi-anônimo", isto é, autoria suposta ou conhecida, que pode ser assumida, negada ou modalizada, conforme o ambiente.

Correndo ao lado do silenciamento público, a crítica semi-anônima é o seu complemento natural, e se revela eficaz por vários lados, especialmente quando é metacrítica. Em primeiro lugar, contribui para a demissão geral da crítica, minando, em lugares de poder, a credibilidade e a respeitabilidade do crítico, que dificilmente poderá usar um espaço público para defesa contra a descaracterização de seus motivos ou argumentos; em segundo lugar, é também uma estratégia de corrosão do criticado, que se vê apenas rodeado de solidariedade privada, mas sem defesa pública — o que é sempre útil, especialmente para os concorrentes à mesma seara do criticado; por fim, permite a todos, mesmo aos que, em foro íntimo, concordam com a crítica e o dizem, o conforto de se reservarem o direito da dúvida e, assim, não correr o risco da retaliação ou do ostracismo.

Por fim, cabe, face ao quadro traçado, uma indagação sobre o sentido e o alcance da crítica no Brasil de hoje. Ou melhor: uma indagação sobre os sentidos do ato crítico e sobre o alcance e a repercussão pública da crítica. O que é o mesmo que indagar sobre as formas de crítica ou metacrítica que escapam ao papel de mero serviço de mercado, de banal instrumento de manifestação de esprit de corps ou confirmação ritual do aparelhamento da mídia pelos grupos de poder cultural, especialmente os instalados na universidade.

Aqui, não há lugar para otimismo. Não é possível erguer nenhuma utopia. Com as condições a que se tem submetido a educação no Brasil, com o constante rebaixamento do nível universitário, que decorre da falência do ensino médio, e, principalmente, com a hegemonia cultural exercida pelos grandes órgãos de mídia impressa e audiovisual (que ocupam sistematicamente os espaços deixados pelo esvaziamento da escola e das instituições votadas à preservação e difusão da cultura), algumas poucas vozes isoladas, que se erguem em nome da autonomia do pensamento e do prazer que provém do exercício livre da razão, jamais se poderão impor como paradigma para a grande massa de produtos exigidos para preencher as páginas de jornais e revistas, as orelhas e prefácios de livros e as centenas de teses acadêmicas defendidas todos os anos.

Mas também não há espaço para o pessimismo desistente. Ao longo do tempo, sempre foi pequeno o número de escritores que realmente contaram no panorama da crítica da literatura e da cultura brasileira. Que ainda se encontrem alguns poucos que encarem o ofício da crítica como uma conversa inteligente sobre princípios, formas de pensar e interesses em jogo, uma conversa que vá além da mera glosa dos lugares já sabidos, é motivo de júbilo pela manutenção da qualidade e não de lamento pela perda da quantidade. Especialmente porque, se a qualidade esparsa sempre existiu e teve grandes manifestações, a quantidade nunca teve lugar, e talvez não tenha, a julgar pela história recente, no campo da excelência crítica.

O que compete a nós, que temos da crítica uma imagem na qual a independência do pensamento e o embate com a opacidade do presente têm o maior peso, é apenas manter acesa a sua prática, à margem ou contra o núcleo duro dos interesses contrários à sua existência. Nec spe, nec metu. Sem esperança nem medo. Era uma das divisas de Ezra Pound. E ela ainda soa bem.

 

 

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1 Rubem Alves, "Mascando pimentas". Campinas: Correio Popular, 27-02-2005. Sobre esse texto escrevi um artigo, intitulado Orgulho e preconceito, que foi publicado no mesmo jornal em 02-03-2005.

2 Verdades provisórias: anseios crípticos. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 38.

3 Selma Caetano, em Campinas, no lançamento do programa CPFL de cultura para 2005, para os jornalistas Sérgio de Sá (Correio Braziliense) e Julio Daio Borges (Digestivo Cultural), entre outros.

 

 

 

Texto lido no lançamento do número 7 da revista Sibila, no dia 12 de abril de 2005. Será publicado na edição número 8, integrando um dossiê sobre o estado da crítica no Brasil.

 

 

 

abril, 2005
 
 
 
 
 

 

Paulo Franchetti. Professor de literatura na Unicamp. Autor de estudos sobre literatura brasileira e portuguesa dos séculos XIX e XX, dedicou-se por vários anos ao estudo do haicai japonês e seu aproveitamento pelas literaturas modernas do Ocidente. Além de ter publicado livros de ensaios, de haicais e de contos, é crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos. Desde 2003, dirige a Editora da Unicamp. Mais em Germina:  Encarte e Paulo Franchetti.

 

 

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