1. Quem assim assentou a claridade

"Inesgotável". O legado mais visível de uma vida muito breve, vivida com os instrumentos do fogo, os instrumentos da respiração e também os instrumentos dos mineiros. De uma espécie de anjo ferido na raiz, pensando-se "curado da noite de nascença", porém "nunca curado da distância/nunca curado da subida"; certas vezes "descalço por uma linha encerrada no corpo", outras vezes crescendo "na clareira de um homem que é uma palavra/na sua túnica inteira".

"Deixai-me começar a claridade/de quem vive para despenhar-se no mundo". "Há homens a abrir as mãos como livros", escreveu. "Eles abrem a palavra/a pequena giesta — essa luz (…); eles abrem/no favo o sinal/a pequena nascente no mel". "Cirúrgico/como o homem que opera nas pupilas as artérias do próprio coração", testou às vezes "a dinamite que trouxe das pedreiras": "Ainda não sei ouvir a lâmina/os gumes intermináveis com que fere, cura, limpa, penetra/os ouvidos como a espada do anjo o coração primogénito"; como também "a rosa", "a videira testamentária", "a magnólia de verdade"; "as águas", "a resina", "uma ave/persistente" (…), "o miolo de um silvo", "uma pinha na infância", "a magnólia estelar". Trabalhou "a partir da existência da luz" e do miolo dos relâmpagos e encontrou "um verbo de sangue para o silêncio arder", intenso e límpido, desarmantemente singelo, branco, culto, puro, raso. "Deus despovoa. O Apóstolo/disse: nada tendes e tudo possuís". Desceu "à escritura como os veados aos salmos". Deixou em vários livros fulgurantes, mesmo que juvenis, "desdobrada a [sua] palavra cheia de estrelas", mapa bendito onde às vezes a encruzilhada se figura "Cruz/rosa" — "Sol/que quando és nocturno ando/ com a noite em minhas mãos para ter luz".

DANIEL FARIA (montagem: Vera Vouga)


2. Quem assim praticou a humildade

Estou muito feliz por poder falar-vos de um jovem e fabuloso poeta que foi meu aluno. O meu nome é Vera Lúcia Vouga, quase sempre, aliás, abreviado para Vera Vouga. Há muitos anos que trabalho na Faculdade de Letras do Porto. Os alunos que já tive, de mãos dadas, penso com alegria, fariam uma roda à volta da cidade.

Foi meu aluno um rapaz extraordinário. Durante um ano inteiro, sem nunca faltar, sentou-se na primeira fila das minhas aulas de Estudos Literários. Estava no primeiro ano de Estudos Portugueses; era atento e calado durante o que eu expunha mas participava com entusiasmo discreto e profundo naquelas quatro horas por semana que tento sempre que sejam um encontro de festa, onde a beleza seja irmã gémea do rigor. Permanentemente disponível, como se tivesse todo o tempo do mundo, Daniel Faria trazia para as aulas a experiência de 25 anos de vida, muitas leituras e actividades artísticas e um curso de Teologia, tirado na Universidade Católica.

Era de aparência frágil. O que mais se via nele eram uns olhos muito claros onde, como num espelho luminoso, se via reflectir a aula. No fim das aulas, costumava trazê-lo no meu carro, para a Igreja do Marquês, onde nessa altura morava. Conversámos muitas vezes mas nunca me disse que era poeta e já tinha livros publicados.

Três anos mais tarde, quando estava já no último ano de Estudos Portugueses, veio ter comigo com dois envelopes grandes. Cada um era um livro de poemas em fase final. Pediu-me para vê-los, dizer se achava que devia publicá-los e para usar a caneta e corrigir tudo o que não fosse perfeito. Quando os abri, fiquei deslumbrada! O Daniel era um poeta muito, muito grande, tão grande na humildade quanto na poesia. Ajudei a rever e a organizar esses livros, com a certeza de que era uma enorme responsabilidade e um grande privilégio. Saíram os dois em 1998: são "Explicação das árvores e de Outros Animais" e "Homens que São como Lugares mal Situados".

No fim desse ano, o Daniel Faria entrou para o Mosteiro de Singeverga e no ano seguinte, como consequência de uma queda em que bateu com a cabeça, morreu. Viveu só 28 anos, mas "a respirar como um clarão". Deixou quase pronto, sobre a mesa de trabalho, um outro livro, chamado "Dos Líquidos", que acabei de rever e foi depois editado. Hoje, a sua obra principal está reunida no volume "Poesia", publicado pelas Quasi Edições, em Dezembro de 2003.

Tocar os poemas de Daniel Faria é como amanhecer com braçados de luz total. Agora digo-vos adeus para que, sobretudo nos passos em que fala o poeta (10, 11 e 12) possam comprová-lo. Podem saltar a pés juntos, directamente, para lá.

VERA VOUGA


3. Quem igualmente pede objectividade

Daniel Faria nasceu a 10 de Abril de 1971 em Baltar, Paredes. Licenciou-se em Teologia na Universidade Católica com a tese "A meditação da Paixão na poesia de Frei Agostinho da Cruz", publicada em 1999 com o título "A vida e conversão de Frei Agostinho: entre a aprendizagem e o ensino da Cruz", e em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Recebeu vários prémios escolares literários, estes últimos relativos a inéditos de poesia e conto, que viabilizaram a edição de livros de juventude que, mais tarde, preferia suprimir da sua obra poética: "Uma Cidade com Muralha", 1992, "Oxálida", 1992 (sob o pseudónimo de Cérjio Lage), e "A Casa dos Ceifeiros", 1993. Seguiram-se-lhes os livros que viria a considerar verdadeiramente sua obra: "Explicação das Árvores e de Outros Animais" e "Homens que são como Lugares mal Situados", 1998 (ambos reeditados em 2002) e "Dos Líquidos", 2000. No mesmo ano foi organizado e editado o album "Legenda para uma casa habitada". Encontra-se representado em numerosas antologias de poesia e estudos críticos.

Colaborou nas revistas "Atrium" (de que foi administrador e chefe de redacção), "Humanística e Teologia", "Via Spiritus" e "Limiar". Claramente vocacionado para várias áreas da expressão artística, fez memoráveis trabalhos no domínio da encenação e variados exercícios de escrita/montagem/desenho/colagem destinados à oferta para maiores amigos. Quando faleceu, a 9 de Junho de 1999, era noviço no Mosteiro Beneditino de Singeverga, onde se encontra o essencial do seu Espólio.

Duas Comissões articuladas, de Espólio e de Edição, em articulação coma SPA (Sociedade Portuguesa de Autores), representam o autor para efeitos científicos e legais. Podem ser contactadas através da página web www.danielfaria.org, recentemente criada, ou directamente para a Presidente, Vera Vouga, R. Costa Cabral, 2235, 8ºE, 4200-230 PORTO, T: 22 5400920, e-mail vvouga@sapo.pt

Deste trabalho, para além da investigação fundamental, a ser continuada, decorreu já a criação, por parte das Quasi Edições, de uma colecção dedicada ao autor, intitulada "Biblioteca de veres o meu lugar", contendo 1. "Dos Líquidos” (reed.) e 2. "Poesia" (Os seis livros publicados em vida pelo autor, e alguns poemas inéditos).

VERA VOUGA


(NOVE VARIAÇÕES PARA UM RETRATO)

4. Tão lírico que brilha de evidência

Não são versos apenas misteriosos mas versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós, poemas que nos inquietam um pouco, ou como diria Sócrates, "que não nos deixam dormir". (…) Versos que convocam a vida entrelaçada das criaturas da natureza, às vezes tão leves que mal os compreendemos outras vezes tão reais que ouvimos o zumbido das abelhas e a sua cólera — ou o verso sobre a formiga que carrega a ordem e armazena a fadiga — ou como o verso da flor tão lírico que brilha de evidência.

SOPHIA DE MELLO BREYNER


5. Tudo quanto à vida e à morte diz respeito

Dois dos melhores livros que li em 2001 trazem datas ligeiramente anteriores, mas, segundo creio, só circularam naquele ano. Daniel Faria: "Dos Líquidos". Livro póstumo de um jovem monge que nos deixou três dos mais importantes livros da poesia portuguesa do século XX. Peregrino no silêncio de Deus e nómada na solidão dos homens, intérprete da alma do mundo e apóstolo da natureza, Daniel Faria prova em "Dos Líquidos" (como já o havia feito nos dois livros que publicou em vida) que a poesia foi, é e continuará a ser o meio privilegiado de encenação metafísica de tudo quanto à vida e à morte diz respeito.

MANUEL FRIAS MARTINS


6. Assombroso poder simbólico

Daniel Faria: "Dos Líquidos". O livro póstumo confirma o altíssimo nível dos dois que o poeta publicou em vida. Essa poesia se destaca, à primeira leitura, pela notável capacidade de criar e desenvolver imagens e pela tematização, em registro simples, de elementos da vida rural. Conjugando e dinamizando esses dois pólos, a constante referência bíblica funciona como um grande e onipresente código, que motiva a menor inflexão da voz lírica, bem como a escolha de cada palavra do poema. O resultado é uma dicção extremamente individual e poemas de assombroso poder simbólico.

PAULO FRANCHETTI


7. A partir da existência da luz

"Passageiro num degrau invisível sobre a terra/nesse lugar das árvores com frutos e das árvores/no meio dos incêndios", Daniel Faria concedeu-nos o testemunho único de uma obra que incessantemente nos procura e conforta na nossa condição de seres expectantes e frágeis, amanhecendo quotidianamente "sem materiais suficientes para a luz total", irremediavelmente ausentes em iniciativas de auto-conhecimento (…). Dádiva generosa, ceifa fecunda de quem trabalhou rigorosamente "a partir da existência da luz".


FRANCISCO FINO


8. O nome mais secreto da alegria

Predomina na globalidade [de "Explicação das Árvores e de outros Animais"] uma dicção poderosa, deslumbrante de simplicidade, abrangendo a variação ampla do percurso da evocação dos medos ao acender do lume na pedra enquanto mundo, da enunciação definida na primeira pessoa ao pôr entre parênteses a instância enunciativa, para fixar a plenitude revelada, por evidência poética, do continente objectual; da produção de um verso raso e limpo, como que sem memória, à do poema onde, com a mesma simplicidade deslumbrada, a releitura descobre a transmutação da mais nobre e subtil memória de presenças, motivos, ritmos, rimas, serenamente assumidos como lugares possíveis da mais amada escrita do mundo.

Claro que o leitor há muito já que concluiu que este é um livro de explicações nenhumas, antes a floração fecunda das pequenas sementes de fogo, rebentando, concisamente tenras, na terra arada do terreno bom. E abençoou decerto a dádiva da graça, o nome mais secreto da alegria. E não tentou reter nas mãos a sua indiscernível e secreta vibração. Arquivou, sem sabê-lo, na memória "Socorre-me, devolve-me a leveza/Da tão primeira nuvem que avistares" — um quase objecto mágico a ser usado, em oportuno tempo, em sua vida.

VERA VOUGA


9. As medidas exactas dos vultos excepcionais

Dir-se-á que Daniel Faria, como qualquer grande poeta da modernidade romântica em que ainda vivemos, procura pela exaltação estética uma via de acesso à exaltação do sagrado e ao reino do espírito. É a pura verdade. Porém, essa via estética consiste numa via poética animada pela energia do sublime, sem a qual nenhum meio de transporte conduzirá ao êxtase. Lugar bem situado, entre o domínio da razão e a serenidade moral, a meditação poética de Daniel Faria é, não obstante, uma pesquisa e uma sondagem de um outro lugar, onde "ekstasis" e "aisthesis" coincidam na chama vertiginosa em que o Ser e o Nada reintegram a unidade absoluta.

LUÍS ADRIANO CARLOS


10. Retrato de mim, numa aula de Introdução aos Estudos Literários (inédito em livro)

As mãos

As mãos não fazem parte do retrato. Servem, apenas, para a saudação inicial e para explicarem que se trata de um exercício interseccionista para a cadeira propedêutica de Introdução aos Estudos Literários, do curso de Estudos Portugueses. Servem, também, para abrir a janela e transformar, ao teu olhar, a sala no centro da paisagem. Se ergueres a cabeça lentamente e espreitares lá me verás, num lugar escolhido ao acaso, e aí começa o meu retrato.

Agora que espreitas não compreenderás ainda o que é que eu, depois do curso de Teologia, estou a fazer aqui, mas, com alguma fortuna, hão-de estar a passar pela sala, ordenando os seus passos ao redor da desordem das cadeiras, os saltimbancos de Almada Negreiros e, então, saberás, isto é, lembrar-te-ás de que existir é procurar um lugar.


Os olhos

Primeiro verás a minha testa, porque o meu cabelo é ligeiramente ondulado e nas curvas os saltimbancos deixam de se ver. Disse “a minha testa” por descuido, porque queria dizer "A minha fronte". Quando vires que ela se enruga é porque um arado me atravessa o pensamento.

Os meus olhos são dois bois a puxar o arado, e são eles que marram contra a minha ausência, por isso regresso à aula como quem se senta para a merenda.


Os lábios

Eu como os poemas como os profetas comiam livros e, se não me esqueço, partilho o pão.

Os saltimbancos comem em redor sobre a terra e nós, com os livros abertos, damos-lhes sombra e eles olham-nos apaziguados. Têm esse modo de à nossa beira lhes sermos árvores, e isso é uma benção mais do que uma vocação.


Os óculos

Falo nos óculos para ver o quadro. Tem qualquer coisa escrita, o roteiro para os saltimbancos chegarem ao céu.


Os ouvidos

Oiço-te respirar à janela. Certamente vais erguer a mão para te despedires. Mas antes repara que à minha frente há o brilho de medalhas, brincos e colares: a professora, a mãe dos saltimbancos.

Enquanto vais encostarei os ouvidos à parede para que o interior se atravesse até ao lado de fora; para que um dia regresses; para que as viagens dos saltimbancos se liguem aos caminhos do mundo.

DANIEL FARIA


11. "Sobre este dia precipitem as manhãs" (penúltima versão, inédita em livro)

Sobre este dia precipitem as manhãs
E multipliquem os pássaros que cantam
E completo o Outono venha
Folhas e folhas aspergindo a última respiração das coisas sobre a minha
Respiração
E todos os meus anos juntos se festejem de uma só vez e eu morra
Agora
E sobre este dia todos os dias
Desçam
Como inúmeras águas sobre uma gota de sangue.

DANIEL FARIA


12.Terceiro dia. Terceiro homem (Fragmento, inédito em livro)

Nunca cumpras todas as promessas. É um modo muito triste de morrer.

DANIEL FARIA



 

Vera Vouga é professora na Universidade do Porto (Portugal), onde suas aulas de Literatura Portuguesa e Teoria Literária têm constituído constante estímulo e alento de sucessivas gerações de estudantes. Além de se dedicar ao ensino, a autora se tem voltado especialmente para o estudo da poesia moderna e contemporânea. Dentre as suas muitas publicações avultam os ensaios consagrados à poética de António Nobre, que redefiniram a imagem tradicional do seu trabalho criativo, bem como o consistente trabalho de editora literária de textos fundamentais da poesia de língua portuguesa. Nessa linha de trabalho, destaca-se o trabalho de coordenação da edição das obras completas de Eugênio de Castro e, especialmente, o magnífico trabalho de fixação de texto e publicação da obra completa de Daniel Faria, pela Quasi Edições.

Principais trabalhos: Em que desvios a razão se funda, prefácio a "Clepsydra: poemas de Camilo Pessanha", estabelecimento de texto, introdução crítica, notas e comentários por Paulo Franchetti, Campinas, Editora da Unicamp, 1994; Edição e prefácio de Bohemia Nova. Os Insubmissos, edição facsimilada, Porto, Campo das Letras, 1999. Edição e posfácio (Da magnólia entre nós) de Dos Líquidos de Daniel Faria, Porto, Fundação Manuel Leão, 2000; 2ª Edição, aumentada e revista, Famalicão, Quasi Edições, Biblioteca De veres o meu lugar, Vol. 1, 2003; Poesia de Daniel Faria, edição e prefácio, Famalicão, Quasi edições, Biblioteca De veres o meu lugar, Vol. 2, 2003; edição facsimilada, em seis Tomos, de Obras Completas de Eugénio de Castro editadas pela Campo das Letras na Colecção "Obras Clássicas da Literatura Portuguesa – Século XIX" [Tomos Publicados: Tomo I, 2001. Contém: Oaristos, Horas, Silva, Interlúnio, Belkiss, Tiressias; "Como um rosto se inclina" (prefácio à edição, na sua totalidade) e "Como quem buscasse seu rosto e o errasse" (prefácio a este tomo); Tomo II, 2002. Contém: Sagramor, Salomé e outros poemas, A nereide de Harlem, O rei galaor, Saudades do céu; "Como uma chama cérula entre brasas" (prefácio a este tomo); Tomo III, 2004. Contém: Constança, Depois da Ceifa, A Sombra do quadrante, O Anel de Polícrates e A Fonte do Sátiro e outros poemas (para publicação)]; António Nobre: Les intimes contraintes (questions de métrique), "Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas", II Série, vol. IX, 1992; António Nobre: Os versos radicais, "Colóquio / Letras" n.º 127/128, "Memória de António Nobre", Janeiro-Junho de 1993.