Assim ia dizendo Sidônio pela
estrada, em direção a Aparecida do Norte, no interior de São
Paulo. Saíra a pé, de Soledade de
Minas, descendo toda a Mantiqueira, palmo a palmo. Foi pagar sua promessa.
A vela enorme, maior que ele,
esperançoso de acendê-la no altar da santa negra, achada sem
cabeça por pescadores endividados, sem
peixes para pescar, no fundo do Rio Paraíba do Sul, em Guaratinguetá, por volta de mil setecentos e
alguma coisa.
Nos passos que dava na
estrada, mantinha a fé. No vento, na chuva, na bota que calçava. Em
cada conta do rosário que rezava.
Parava para beber água e comia apenas o que lhe ofertavam. Pregada às suas costas, uma placa dizia:
"Aqui vai um viajante com fé em Aparecida de Nosso Senhor. Ajude, se puder".
A promessa era para ser
cumprida a cavalo. Mas o penitente achou que poderia se sacrificar
mais pela santa milagrosa. Afinal, ela
atendera o seu pedido. Ir a pé seria comprovar mais sua crença e agradecimento.
Pela estrada ia rezando, dez
ave-marias, um pai-nosso, assim sucessivamente. Quando o terço
acabava, começava novamente. Um
passante tirava o chapéu, Sidônio benzia de longe, feito padre, com gestos no ar. Um carro em alta
velocidade, buzinava. Ele parava, virava-se para trás e cruzava as mãos em gestos de sinal da cruz.
Paralela à estrada, a ferrovia carregava gente pobre nos vagões dos trens mineiros. Quando avistavam o
pagador de promessa, o povo se
alvoroçava e gritava, aplaudindo e acenando com paixão.
Ao descansar à sombra de
alguma árvore, beijava o retrato da santa que carregava dentro do
chapéu. Todo peão que se preza traz a
santa guardada nesse lugar. Quase sempre, o santinho está esgarçado, amarelo, suado. Mas, até chegar ao
santuário para a troca anual, é esse que ele usa, beija, com quem conversa e chora junto.
Sidônio estava barbado, sujo,
com as botas rasgadas na frente, feito boca, de tanto no chão
arrastar. Já tinha passado dos
quarenta, e aquilo não era simples como numa história contada.
Era inverno, fazia frio e a estrada era
perigosa.
Promessa era dívida de honra
para peão boiadeiro.
A história era simples.
Complicado foi o desenrolar.
Sidônio tinha uma holandesa,
comprada com muito suor. Holandesa, para quem não sabe, é uma
vaca danada de cara. E a dele era uma
PO — Pura de Origem — de primeira qualidade. Arrumou com um vizinho o touro, para tirar a cria da
vaquinha. Tudo bem ajeitado, curral, alimentação, vacina. Nicole, a vaca holandesa, que era mais bem
criada que os meninos da fazenda, não queria cruzar com o touro, nem por um decreto de governador.
Sidônio, desesperado, conversava com a
Nicole ao pé do ouvido, tentando todos os convencimentos, mas ela...
nada. Quando o touro, tresloucado,
vinha brejeiro para o seu lado, Nicole pulava e mugia dando coice
para todos os lados. Só faltava gritar
palavras: "não dou pra ele, nem morta".. O homem, desesperado, quis até amarrar a bichinha e fazê-la
cruzar na marra, porém a mulherada da fazenda, gente muito enfezada, reclamava que assim era estupro e
que a vaca tinha os seus direitos! Se
ele prosseguisse com seu intento, quem não ia dar mais nada eram elas,
as mulheres, a seus homens. Fizeram
abaixo-assinado, passeata, bateram panelas, vigília na porta
da igreja, convocaram o bispo, os
vereadores e ameaçaram chamar a sociedade protetora dos animais. Coisa de mulher mineira, tinhosa, mandona,
valente, que os homens, para não ficar sem elas, abaixavam a cabeça e obedeciam calados.
Que trabalho que a Nicole
deu! O touro holandês já nem comia mais. Batia com os chifres
amalucados na cerca do curral, querendo
sapecar quem por perto passava. Babava e marchava de um lado para o outro, na maior agonia!
Sidônio, então, apelou para a
santa. De noite, ajoelhado no seu oratório, no escuro do corredor, de frente para duas velas e uma rosa
vermelha, orou para Aparecida como nunca havia feito na vida. Envergonhado, não dizia com todas as letras
o que realmente queria da vaquinha,
pois sabia, desde pequenino, que Maria foi mãe virgem e, como bom capiau
que era, respeitava mulher-mocinha.
Dizia bem baixinho: "Ai, minha santinha, faz a Nicole acalmar o
Sansão, o touro do meu vizinho. Nós
andamos tão precisados de uma bezerrinha para aumentar o rebanho e ajudar na lida! O caso é que a vaquinha
acha que é igual à senhora e quer parir sem ter trabalho. Mostra para ela, mãe querida, como é que se faz
um filhinho, que lhe juro cavalgar até
o seu santuário com uma vela do meu tamanho na mão".
Assim foi que, no dia
seguinte, milagre ou coincidência, um matuto da fazenda sonhou com uma
solução: retirar do pasto vizinho um
touro gabiru, pretinho, misto de nada com coisa nenhuma, que ficava à espreita, com olhar quarenta e três,
vesgo que piscava demais. Ali havia uma paixão da Nicole pelo tal sem eira nem beira. Foi só tirar o
tosco para a vaca logo se aconchegar no
bem-bom do PO, sangue azul. E assim foi feito, na frente de uma multidão
que aplaudia e gritava "viva!" a cada
cobertura, várias vezes durante o dia, até o touro quase estrebuchar, deitado no chão.
Sidônio achou que o milagre
aconteceu das mãos da santa de Nosso Senhor e logo partiu para
pagar a promessa, depois de saber que,
inconformado, o touro traído, o tosco danado, lutando muito e arrebentando diversas cercas, chegou também
à manhosa Nicole, no... lugar certo que eles queriam. Isso, para a alegria e o orgulho das mulheres da
fazenda que diziam: "É amor mesmo,
compadre. Com amor ninguém pode". Mas ele nem ligou. Estava convencido
de que não tinha erro, afinal, o puro
de origem, era muito mais forte e fez bem feito, muito mais vezes,
apesar de saber que, com criação, isso
é espeto. A cadela de raça quando foge e cruza uma vezinha só com o vira-lata da esquina... pode
contar: depois de cruzar mil vezes com o seu par da raça, a ninhada toda nasce vira-lata. O danado
tem o sêmen forte e elas sempre têm que contrariar o dono, apaixonando-se pelo vagabundo. Sidônio
preferiu nem pensar nisso!
Não iria esperar quase um ano
para ver a cria nascer. Partiu logo em direção à cidade da
santa.
Depois de dias e mais dias
caminhando pela estrada, Sidônio, enfim, alcançou o lugar sagrado
dos católicos. No altar, vela acesa,
lágrimas a correr pelos olhos, o homem cantou, orou, conversou, confessou, comungou, fez tudo que tinha
direito.
Na saída, à porta do
santuário, virou meio que de banda, olhar fixo para o altar, coçou a
barba cheia, ajoelhou no chão e com as
duas mãos juntinhas recitou mais um dedo de prosa com a santinha, Nossa Senhora: "Mãe de Jesus, faz o
Espírito Santo ir na barriga da Nicole e colocar lá dentro uma holandesa, do contrário pode nascer um
bicho esquisito, bastardo de tudo, e toda essa nossa conversa sagrada vai virar um trelê-lê de birosca
de beira de estrada, cheia de ofensas e
palavras de baixo calão, pois nunca mais volto aqui e ainda sacudo no
mato aquele oratório lá de casa, com
vela, imagem e o que for. Ouça bem, minha santa, sou um homem
calmo, crente e honrado, mas sou muito
pobre e estou cheio de dívidas, e um homem justo, com dívidas, é um cão danado. Fique esperta comigo,
pra não perder umas boas rezas e o amor de um homem de fé. E tenho dito, minha santa, em nome do pai, do
filho, do espírito santo, amém, que eu
já vou embora, pois volto é de trem".
E, assim, Sidônio retornou à
fazenda, crente, crente, na sua ameaça.
A promessa?... um homem
honrado sempre paga adiantado. O pedido atendido?... aí é com a
santa, que eu não sou contista-adivinha
para decifrar o desejo do céu.
Há quem diga que o bezerro
nasceu legítimo, com a cara de holandês. Mas na cidade pequena
do interior das Gerais, a boca da
mulher romântica afirma a mesma coisa que a boca do povo maledicente: "o bezerrinho tem um olho vesgo e o
outro que pisca demais".
(imagem ©andy
warhol)