©peter holst
 
 
 
 
 

de um epílogo

 

No princípio era o fragmento. E o fragmento é o fim.

A inteligência foi também o início de todas as mazelas. Desde então, a vida tornou-se cópia do pensamento. Simultaneamente, o Homem aceitou a necessidade de reproduzir verdades virtuais. Deu-se a Arte: o alimento da recriação do imaginário e do estranhamento. O mito. O acaso.

Assim o ser humano investe na tentativa de ultrapassar sua vida terrena, (des)governando a inteligência e a criatividade, em busca de alguma coisa que dure para sempre. O resultado dessa empreitada, muitas vezes, concretiza a singularidade do mistério, fazendo lembrar que o homem perde, na maioria das vezes, o domínio das suas criaturas. Porém, lembrando Epicuro, o essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima: e desta somos nós os amos.

Decifrar mitos, pois, é uma tentativa da própria ansiedade humana. É nesse aprendizado que se dá a busca eterna e infinda da perfeição, encontro de criadores e criaturas, esses seres mais que imperfeitos.

Repetir Barry Deck, um designer, é perpetuar a origem: "acho que a imperfeição é que torna as pessoas interessantes".

 

 

desculpem-me pelo rompante conceitual, mas

 

O desentendimento humano evidencia toda a tragicomédia da vida. O Homem, personagem principal desse ato, é um destruidor de imagens, um iconoclasta de sua própria sombra, como se estivesse a praticar o não-Eterno no palco do Universo. Ao aplicar-se em construir máscaras, com as quais articula a palavra e o silêncio, finda por falsificar a coletividade, pela invasão da privacidade das ruas, dos parques, dos edifícios apinhados de escritórios, dos becos, do imaginário, enfim, por recriar aquilo que melhor representa o epicentro do furacão da longeva parição do inútil: a Literatura.

Se é ousadia emprestar à Literatura a pecha de vitrine de inutilidades, o objetivo é apenas reafirmar o conceito de que no âmago dessa idéia existe a certeza de sua própria autofagia. Porém, deixando às claras, nada é mais verdadeira do que a sua autenticidade, por mais tola que seja. Então, vitrines são úteis à vaidade e ao padecimento de novas idéias. Todos somos iguais perante a regra, com as requisitadas exceções.

Nesse entremeio, o Homem se confunde com o que há de representativo no artista ou em si próprio, personagem, para quem todos olham com exigência, desprezo, carinho ou admiração.

De todos os ângulos, é esse Homem-personagem que proporciona o ranger dos elos perdidos nos abismos de cada um, quando a sensibilidade torna-se o resultado do consenso de toda uma existência. Outras vezes, a manifestação resulta apenas em gesto desafiador: medo, perplexidade ou desespero. Mas em qualquer dos casos, a simples revelação do silêncio ou sua alteração posta-se como produto de uma evidência, de algo mais extraordinário.

Como há evidências por todos os lados, o ser humano é um consumidor de desafios, tragédias e alegrias. Porém, é justo admitir que essas inquietudes assumem aparências diversas, podendo confundir-se com a futilidade, a excrescência, a rebeldia, a suplantação de conceitos e, na melhor das situações, com a genialidade.

Não é exagerado afirmar que o que torna uma evidência humana genial é a sua forma de exprimir-se, de não se deixar exaurir pela própria forma de existir no estabelecimento de infinitas (im)possibilidades.

A um recriador da existência, quer seja um poeta, um contista, um romancista, o maior desafio é manter-se coerente com a sua própria perplexidade, negando a ignorância do mundo criado.

 

 

continuando sobre quem pesam os silêncios

        

O poeta Joseph Brodsky afirmou que "a verdadeira história da consciência começa com a primeira mentira de cada pessoa".  Se aqui o assunto é Literatura, vale dizer que a verdadeira consciência é aquela que mente, reformula, reimprime soluções naturalmente falsificadas, todavia, plenas de verossimilhança. Aceita a assertiva, configura-se uma outra verdade, aquela mesma que interpreta o erro sem saber do acerto.

Ao tratar desses estranhamentos, é provável que muitos homens e mulheres de letras superem seus êxtases com esse tipo de composição. No entanto, ao longo dos séculos, muitos deles foram/são iniciados e incitados ao debate de esquecimentos, desses desvanecimentos, desses enganos da lógica literária, melhor dizendo, da política literária: "quando um homem cria um mundo próprio, transforma-se num corpo estranho contra o qual se voltam todas as leis: a gravidade, a compressão, a rejeição, o aniquilamento".

Ora, a verdade só é dita quando se dejetam palavras. Nelas, incrustam-se a sublimação dos valores humanos e o presságio mais desafiador da ordem literária. A presença inanimada da vida é que a torna mais real, enquanto contraposta à especulação da alma e da volúpia. Sobre tudo, as imagens propriamente vulgares são apenas fantasias recorrentes de um discreto/secreto prazer de quem as manipula. As palavras são as grandes e excêntricas marionetes dos escritores.

Aqueles que buscam a verdade podem espelhar-se nos poetas, como exemplo prático de vida, desde que essa verdade seja induzida pelo artifício da vaidade. Essa premissa cabe perfeitamente dentro dos sentimentos da maioria dos poetas. Há aqueles que admitem o erro poético como ponto de partida da absolvição dos seus desejos. Isso já é vaidade, uma parte integrante do seu outro reflexo. Da mesma maneira, existem poetas que nunca erram, pelos menos assim são levados a pensar, e tornam-se perigosos quando contrariados. E, ainda, a vaidade verdadeira encontra poetas que muitas vezes possibilitam o erro, mas o demonstram envolvido em camadas de sutil ironia.

No caso da poesia, quase todo brasileiro é, indiscutivelmente, um modelador de versos. Esforço que, se não o condena, pode redimi-lo ou jogá-lo à margem da presa de todo dia e das algemas econômicas que o cercam, transformando-o em um sonhador ou inofensivo cidadão; ou, contrariamente, transformá-lo em hiena arrogante à cata do fácil sucesso e da pavonice. Não é difícil constatar que os poetas são cidadãos pacatos, porém, geralmente consumidos pelo próprio umbigo, não usando viver em bandos por muito tempo. Por serem celeiros de vaidade, algumas demonstrações de troca de experiências chegam a ser constrangedoras frente às possibilidades traumáticas provocadas por agrupamentos de longo ou curto prazos.

Na outra margem, narradores, personagens às vezes mais dóceis. E o texto? Em princípio, um texto narrativo tem a virtude de ser melhor absorvido pelo leitor ou, pensamento em termos de falsa qualidade, absolvido — o que não acontece com tanta facilidade quando o pecado cometido vem sob forma poética. Porém, ao aprofundar-se o leitor em meandros e enigmas de uma narrativa, certamente concluirá que essa arte desvela-se como ofício traiçoeiro, tanto faz se experimenta sintomas de romance, novela, crônica ou conto, pois cada uma dessas formas próprias descobre-se plena de peculiaridades e, naturalmente, de enormes dificuldades de elaboração.

É no conto, admite-se, que a possibilidade de acertar torna-se mais complicada, pela distância sutil que separa o escritor do instante por se deixar flagrar e se deixar realizar. Realmente, não é fácil aplicar-se à escrita da idéia que contempla um momento, um flash, uma fatia da vida.

Poderia retomar o tema da Consistência, mas recolho-me, pois larga margem disto já foi anunciado em momento anterior e ali, reuniram-se nomes importantes de nossa atual conjuntura no gênero narrativo.

 

 

agora o que peso e penso para um prefácio (sic!)

 

Um dia o circo pegou fogo, o macaco afiou a unha no rosto de menino, e uma Rural Willys permitiu que ele não alterasse a estatística e se tentasse adulto para estabelecer uma lenta construção de entropia literária.

Em 1987, deram-se os primeiros Ofícios de desdita. Certamente, uma desdita, ao se pensar em termos de segredos literários. Porém, algo transcendente à formalidade habitual das amarras do conto, do poema ou da crônica, o que não consubstanciou insinuante paixão por qualquer espécie de vanguardismo, grande devoradora de arautos. Pelo contrário, a aproximação desses processos e a visão ainda não calculada sobre os consagrados estilos foi o propulsor dessa idéia fixa de pensar a literatura como eterna fonte de motivação a novos caminhos.

Este ideal continua. Como ativo descobridor da panacéia literária, ou dela cobaia, o escritor deve entender que o aprendizado pelas palavras é a busca eterna e infinda da perfeição. Ou seja, repetir o consagrado por outros poetas e escritores passa pelo fosso da inutilidade. Entenda-se que não se trata de menosprezo, nem tampouco de arvoramento de gênio. Mas deve o escritor afastar-se do papagaísmo mudo ou da recapitulação de receitas culinárias.

Mesmo assim, é bom pensar nisto: se as estruturas são rígidas nos tankas japoneses ou frouxas na aleatoriedade da vida, cabe a cada um escolher a sua melhor forma de (im)perfeição. E ainda: ao se evidenciar na maioria dos textos a fugacidade da norma, ao leitor, o contato passa a transitar pelo estranhamento. Então, fica claro que para conciliar a sua melhor forma versus conteúdo, a literatura tem de tornar-se uma disciplina comum a todas as coisas, transformando-se em afluente da imaginação.

Em 1989, foi a vez dos fragmentos de panaplo. Uma homenagem às letras miúdas, ao fragmento tão procurado, à sintaxe sem grandiloqüência, à profundeza na palavra medida após o abismo da inconsciência, o que foi denominado contemas. Influências da psicanálise, da escrita gauche não-drummondiana, da barbárie coletiva. Nele, todo o foco é fragmentário, seguindo as palavras de Thomas de Quincey, para quem "as mínimas coisas do universo podem ser segredos das maiores".

A reflexão possível sobre esses cometimentos é a da revelação: acalentar o sacrifício por uma dose de clarividência. O que um escritor busca? A novidade, a intromissão da glória, uma estética? O melhor é desconfiar de qualquer parâmetro cartesiano ou positivista quando se trata da (i)lógica poética. E, de outra forma, abstraindo-se de todas as convenções, evitar alcançar o teor sagrado do espírito que borbulha, que ousa ramificar nervosamente a servidão da mente. E ter como certo que a natureza humana é pródiga na incerteza. Assim, conviver com o precipício da escritura, deixando que a razão desse escrutínio de entranhas se estabeleça muito anteriormente à própria ação.

Enfim, considerar o fragmento como o aperitivo que precede as grandes transpirações. Insólito, deixar que o fragmento aniquile a unidade comum apropriada pelo senso. Mas, em contrapartida, elastecer o imaginário e conceber a quebra do vínculo das cadeias formais do pensamento. Entender que a liberdade, sendo uma frase mantida em sua própria consistência, torna o fragmento a unidade simbólica do processo da inteligência, onde deveria sempre o escritor viver exilado.

O tange/dor, de 1991, fugiu dos bons propósitos. Tem qualidades, mas peca pela tentativa de validar idéias pessoais adicionadas com a (des)forma poética e "descompromissada" de alguns poetas dos anos 70. Essência não conseguida. Perfume diferente com cheiro vencido. Um momento do acrobata pedir desculpas e cair.

A partir desse momento, o instante de reciclar e recuperar palavras, sintagmas, estruturas e o próprio pensamento. Até 1999, quando finalmente foi publicado o caos portátil. Uma novidade em busca novamente do insólito, do inusitado. Um livro de fragmas, contemas e evidências. Instante de concluir que jamais haveria agonia poética, caso a natureza humana fosse exemplarmente reconhecida pelo poder memorial de seus escolhidos. 

De lá até aqui, mais nenhum livro publicado, a não ser espasmos e esgares por vias diversas: antologias, sítios, jornais e quetais.

Mas uma certeza: conhecer e recriar sem limites o óbvio é a melhor forma de descobrir o ninho dos dragões e perpetuar o estreluzir após seu auto-apocalipse ou de repassar a sagração dos antigos sinos da catedral de todas as emoções universais. Escolher a fortuna do texto no debulhar do acaso. Deixar que nessa esfera a ausência invalide a exatidão, investindo nos segredos, perpetuando a própria vida naquilo que se repete cotidianamente. Revelar é reinventar a natureza e suas obviedades.

Enfim, não esperar conflitos. O belo é um diamante perdido. Se há ilusão de encontrá-lo, o desejo representa a verdade mais íntima. O que está inscrito na caverna mais abissal. E só.

 

definitivamente inconcluso

 

08/abr/2005

 

Jorge Pieiro nasceu em Limoeiro do Norte, num abril de águas carregadas de rio Jaguaribe escorridas desde o temido açude Orós. A cama amarrada no teto teve que descer, para receber as dores da mãe. A parteira veio de longe. Ninguém mais havia na cidade naquele 1961.

Em Fortaleza, chegando aos 17, vestibulou-se, cursou e abandonou Engenharia Química. Depois cursou Letras, dando atenção à literatura brasileira. Até ser mestre...

De lá pra cá, foi cobrador; balconista de farmácia; datilógrafo em Cartório de avó emprestada; secretário de outro tio advogado, também emprestado; datilógrafo em gabinete de Prefeitura; viveu um ano de mesada, mais uma vez emprestada, até tornar-se bancário, profissão que também abandonou depois de quase 20 anos, por pura e indissolúvel incompatibilidade. Fez incursões como aprendiz de guerrilheiro (sic), engenheiro, publicitário, técnico em comunicação social, compositor, produtor cultural e mochileiro mundo afora.

É, atualmente, diretor da Letra & e Música Comunicação e professor de Literatura.

Ensaísta, poeta e ficcionista, tem publicados, dentre outros, Fragmentos de Panaplo (prosa, 1987); Neverness (poesia, 1996); e Caos portátil (prosa, 1999). Mantém inéditos prontos para o encontro triunfal com aproximadamente 100 leitores.

Blablablá…

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