Em
sua coleção de poemas e contos intitulada Elogio da Sombra
(1969), Jorge Luis Borges nos oferece uma daquelas narrativas simples e
enigmáticas que recordam as parábolas de Kafka: sucinto e levemente
absurdo, o conto "O Etnógrafo" participa de toda uma tradição de relatos
que interrogam o esforço de ler, interpretar e compreender o
inteiramente outro. O conto narra a trajetória de Fred Murdock,
aluno de pós-graduação numa universidade americana, "nessa idade onde o
homem ainda não sabe quem é" (265)1. O narrador nos
diz que "nada singular havia nele, nem mesmo essa fingida singularidade
que é própria dos jovens" (265). Ele era "respeitoso" e "não
desacreditava dos livros nem daqueles que escrevem os livros" (265).
Incerto sobre sua pesquisa, recebe o conselho de estudar línguas
indígenas: "seu professor, homem entrado em anos, lhe propôs que fizesse
sua morada numa reserva, que observasse os ritos e que descobrisse o
segredo que os bruxos revelam ao iniciado" (265).
Trata-se
de um conto sobre o que poderíamos chamar a legibilidade
antropológica. Borges retrata uma tentativa de encontro com a
outridade e a tradução desse encontro — a tese doutoral que se espera
que Murdock escreva ao
regressar da reserva. A viagem etnográfica é, a princípio, uma imersão
bem-sucedida na alteridade:
mais de dois anos
habitou nos prados... Levantava-se antes da aurora, deitava-se ao
anoitecer, chegou a sonhar em um idioma que não era o de seus pais.
Acostumou o seu paladar a sabores ásperos, cobriu-se de roupas
estranhas, esqueceu-se dos amigos e da cidade, chegou a pensar de uma
maneira que sua lógica recusava. Durante os primeiros meses de
aprendizagem tomava notas sigilosas, que rasgaria depois, talvez para
não despertar a suspeita dos outros, talvez porque já não precisava
delas. Ao cabo de um prazo pré-fixado por certos exercícios de índoles
moral e física, o sacerdote ordenou-lhe que fosse lembrando seus sonhos
e que lhos confiasse ao clarear o dia. Comprovou que nas noites de lua
cheia sonhava com bisões. Confiou esses repetidos sonhos ao mestre; este acabou por revelar-lhe sua
doutrina secreta. Uma manhã, sem haver se despedido de ninguém, Murdock
foi embora. (266).
Neste momento inicial a história
pareceria confirmar a possibilidade de uma legibilidade transparente do
Outro, ou seja, uma tradução tranqüila dos códigos indígenas à linguagem
do ocidental que os visita e descifra. A legibilidade aqui dependeria
exclusivamente de que se seguissem todos os protocolos de uma etnografia
eficiente. Murdock passa por um processo de fusão utópica com seu objeto
de estudo: seus sonhos em outra língua seriam a prova definitiva de que
a grande fronteira entre as duas culturas havia sido superada. No
entanto, como se revela no fim do conto, sua imersão no objeto — o
horizonte de perfeição para qualquer antropólogo — também representa a
destruição do seu projeto de pesquisa.
Depois
do retorno à universidade que se segue à revelação do segredo indígena,
Murdock visita seu professor e lhe diz que "conhecia o segredo e que
havia decidido não revelá-lo" (266). Quando lhe perguntam se algum
juramento o obriga a proceder assim, ou se talvez a língua inglesa seria
insuficiente para transmitir o segredo, Murdock reassegura seu professor
de que nenhuma dessas era sua verdadeira razão, e que "agora que possuo
o segredo, poderia enunciá-lo de cem modos distintos e mesmo
contraditórios", acrescentando que "o segredo, além do mais, não vale o
que valem os caminhos que me conduziram a ele" (266). À pergunta final
do professor, sobre se pretende viver com os índios, Murdock replica:
"Não. Talvez eu não volte a viver nos prados. O que os homens de lá me
ensinaram vale para qualquer lugar e para qualquer circunstância"
(267). Laconicamente, o
narrador fecha a história dizendo que "Fred se casou, se divorciou e é
agora um dos bibliotecários de Yale" (267).
O
conto é de difícil interpretação exatamente porque tudo parece muito
claro. A linguagem escassa, desadjetivada e lacônica de Borges
parece não oferecer nenhum ponto de ancoragem que pudesse transformar a
história em parábola transparente. Nesse tom epigramático e conclusivo
que costumam ter os narradores de Borges, a fascinação do conto se
constrói a partir da ausência de resposta à pergunta que poderia reduzir
o texto a um imperativo ético: será que Murdock voltou porque agora
poderia viver, mesmo nos EUA, de acordo com os princípios aprendidos
entre os índios (e assim cuidar das sementes de seu ensinamento) ou será
que escolhe um trabalho tão divorciado da experiência como o de
bibliotecário de uma universidade de elite como forma de cancelar as
lições aprendidas na viagem?
Como
resolver essa questão se o conteúdo do ensinamento permanece bloqueado
ao leitor, incomunicável na própria linguagem em que se escreve a
história? O comentário de Murdock ("o segredo não vale o que valem os
caminhos que me levaram a ele") sugere uma primazia da
experiência sobre qualquer tentativa de traduzi-la em conhecimento.
A história tematiza, então, uma incomensurabilidade fundamental entre a
lição aprendida na tribo e o projeto inicial de escrever uma tese sobre
ela. Terá sido a renúncia do projeto de estudar os índios o próprio
conteúdo aprendido na viagem? Deixar o outro ser, deixá-lo, sem mais,
não seria aqui a mais ética de todas as tarefas, a única forma de
realmente responder ao chamado do outro?
O abismo que separa
Murdock-transformado-em-índio e Murdock-o-etnógrafo tem uma natureza que
poderíamos chamar de indecidível. Ao escolher um lado, você perde
ambos. O conto depende da indissociabilidade entre a experiência
bem-sucedida de Murdock como etnógrafo e, por outro lado, a
impossibilidade de escrever a tese. O texto se sustenta sobre a relação
entre o sucesso da viagem (a aquisição de um saber real sobre o Outro) e
o fracasso da empreitada que motivou a viagem (a tese que apresentaria o
saber adquirido). É impossível optar entre o saber experiencial dos
prados e o saber formalizado da tese doutoral: se aquele é inicialmente
pensado como condição deste (todo antropólogo deve "tornar-se" índio), a
aquisição perfeita e completa do saber experiencial dinamita,
implode o saber acadêmico que se formularia a partir dele.
Ao
longo dos anos tenho utilizado esse texto como porta de entrada para que
os alunos — especialmente os alunos norte-americanos com os quais
trabalho — reflitam sobre as assimetrias do processo de conhecimento no
caso dos saberes em que o objeto de estudo é outro ser humano. "O
Etnógrafo" põe em crise o desejo apressado de legibilidade fácil, na
medida em que aponta para uma relação assimétrica: a Murdock está dada a
possibilidade de produzir conhecimento sobre a tribo indígena, mas o
vice-versa não é verdadeiro. Um desequilíbio nas relações de saber (que
são sempre, também, relações de poder) torna possível que o pensamento
indígena seja apropriado por uma metalinguagem exterior que o transforma
em matéria-prima, sem que essa metalinguagem seja forçada a passar pelo
mesmo processo. Não há simetria possível entre os que estudam e os que
são estudados. O etnógrafo é dotado — pelas relações de poder nas quais
está inserido — de uma possibilidade de conhecimento exotópico do Outro,
enquanto que o Outro só pode conhecer seu estudioso endotopicamente,
como visitante que penetra em seu espaço.
Esta
assimetria está na raiz de todo o auto-exame que, não sem certa culpa,
realizou a antropologia moderna. A crise disciplinar vivida na
antropologia a partir da descolonização remonta a uma espécie de
"consciência culpada da Europa": a antropologia moderna seria assim uma
tentativa perenemente fracassada de dar conta do desequilíbio que subjaz
à sua própria fundação. Essa tentativa é visível em toda a história da
antropologia moderna, desde o funcionalismo de Malinowski (que insistia
no relativismo cultural como eixo que deveria orientar o pesquisador)
até correntes mais recentes, representadas pelo norte-americano James
Clifford e outros, que investigam as formas como a "autoridade
etnográfica" é constituída. Um momento chave dessa história é a
demonstração de Johannes Fabian, num livro intitulado Time and the
Other, de que a antropologia cria seu objeto convertendo a distância
espacial em distância temporal, ou seja, pensando o Outro lá
longe como se ele fosse sempre um Outro lá atrás. Essa
conversão da distância espacial em distância temporal foi batizada por
Fabian de "negação da coexistência no tempo" [denial of
coevalness], operação chave na criação de uma linha temporal
evolucionista ao fim da qual se encontraria sempre, claro, a cultura do
próprio antropólogo, modelo de progresso e de modernidade.
O
conto de Borges mostra, convincentemente, que o abismo que separa
Murdock-índio de Murdock-etnógrafo — em outras palavras, o abismo
insuperável que separa experiência e conhecimento — é na realidade a
condição de possibilidade do próprio etnógrafo, é aquilo que torna o
etnógrafo possível e necessário. O paradoxo aqui é que a consciência
acerca deste abismo, se levada às suas últimas conseqüências, implicaria
a implosão definitiva do próprio chão da disciplina. Com sua parábola,
Borges nos oferece um quadro assustador: o estudo antropológico, na
medida em que supera a cegueira e a distância que o constitui, implode a
própria disciplina.
Não
se trata, então, somente do fato mais ou menos óbvio de que "um
conhecimento total do Outro não é possível". Trata-se de uma proposição
bem mais radical: o conhecimento do Outro só tem lugar dentro de uma
completa cegueira, tão mais completa quanto maior for esse conhecimento.
A experiência genuína estaria atravessada por um divórcio
irreconciliável com o saber. Talvez seja este o aprendizado de
Murdock, e o desafio abismal que nos coloca esse enigmático conto de
Borges.