PROVÉRBIO 3

 

o pássaro voando

é um deus confuso

entre se e quando

 

 

 

 

 

HOMEM-BOMBA

 

em que pensa

o homem-bomba

no exato

momento

de soltar o pino

e estancar

o tempo?

 

em que pensa

o homem-bomba

na hora imensa

em que o sangue

se adensa

e todos os sóis

e todos os poros

e todas as luas

do universo

projetam

forças vorazes

de gravitação na

explosiva

nave de

seu coração?

 

em que veia

cava o

medo crava

seus tentáculos?

em qual

infinitésimo

de segundo

a mão trêmula

avança para

o pino e

vence a inércia

do ser vivo

que deseja

permanecer

capaz de semente

não de idéias

mas de

carne viva?

 

 

 

 

 

SUPERMERCADO

 

no código de barras

as garras do tigre

 

na câmera espiã

os olhos do tigre

 

em tua cabeça

ativo como um chip

o fulgor do fetiche:

a cabeça do tigre

 

 

 

 

 

 

BOOLEANA

 

o deus verdadeiro

é falso

diante de outro deus

verdadeiro

 

se meu deus é único

e verdadeiro

e teu deus

verdadeiro e único

 

então teu deus

é falso e púnico

 

 

 

 

 

 

CÂMERA

 

How you die is the most

important thing you ever do.

Timothy Leary

 

 

uns preferem

a morte discreta

asséptica

sem vexame

 

outros apostam

no alvoroço:

enxame

de câmeras até

o osso do nada

 

timothy leary

guru

lisérgico não quis

o analgésico

do silêncio

 

morreu em show

cibernético

câmera aberta

para o olho

poente

 

 

 

 

 

 

AÇAFRÃO

 

um ou dois poemas

de sentido oculto

um galho seco

de açafrão

e a necessidade

de ficar

sóbrio sobre as cinzas

 

— eis todo o meu saber

 

se me perguntarem

— por quê?

vou jurar que não sei

não sou

desses que sabem

 

talvez um dia

eu tenha pensado

conhecer os

pontos cardeais

fases da lua e

frases da rua:

       mas o sol

é sábio e ensina

todos os dias

sua lição de incerteza

 

uma vez

no oco branco

da noite

pensei que

o amanhecer me

traria pássaros

fáceis

e obedientes

 

falhei —

o ferro quente do erro

o ferro fértil do erro

 

 

 

 

 

 

CENA

 

uma poça de sangue fake

massa de tomate trágica

com diálogos de Nelson Rodrigues

 

é tudo sério insuportavelmente sério

mas haverá tédio traições adultérios suicídios vitupérios

em completa [[[surdina]]] até o pano final

 

o homem casto se tornará promíscuo

a dona-de-casa vai se prostituir

em dia limpo

com o verdureiro, o estafeta, o lavador de vidraças

o técnico da companhia telefônica

e a irmã solteira do marido

 

e os homens, quase todos, se tornarão travestis

         mais femininos que a rainha de Sabá

 

e as mulheres, completamente loucas, serão putas

         ou santas maníacas, o que dá no mesmo hospício,

         vestidas de branco ou lambuzadas

         de pomarella trágica

         com os pulsos falsamente cortados

 

ninguém sai vivo desta aplaudida tragédia brasileira

é proibido ser comum

é impossível ser feliz

 

 

 

 

 

 

HAIKAI

 

Na tarde viúva

o cinza do céu ranzinza

se desfaz em chuva.

 

 

 

 

 

 

CANÇÃO DE MÁRIO E FERNANDO

 

estética e angústia

traços-de-união

entre dois orpheus

desencontrados

 

um sem biografia

o outro sem história

arte longa curta vida

 

— e ambos viraram

sílabas

                

sombras fugidias

sobre as águas

do Tejo ou do Sena:

 

a vida escrevivida

         vale a pena?

 

orpheus na sala

de espelhos

divididos

multiplicados

 

ai tortuosa

aritmética da alma

 

1 é número múltiplo

 

 

 

 

 

 

CURTO-CIRCUITO

 

o amor não engendra prêmios

nem tece ventos de pêssego

na carne exausta dos dias

 

o amor são outras romarias

peregrinações para

dentro de uma gigantesca

orquestra de guizos

 

algaravias

eletricidade estática na pele

confronto de signos

 

o amor são objetos de bolso

chaveiro  cartão de crédito

aspirina —

 

e a carteira de identidade

para não esquecer

o próprio nome

depois da orquestra de guizos

 

o amor

confunde deus e o diabo

       no curto-circuito da pele

 

o amor

inventa todos os fogos 

       desanda todos os pêndulos

 

 

 

 

 

 

FRUTO

 

em espanhol

tâmara é

         dátil

 

fruto sensual

com

dedos embutidos?

 

ou convite aos

dedos para

exercício

         tátil?

 

 

 

 

 

 

ENTRE AVE E RÉPTIL

 

interessa-me

entre ave e réptil

a condição

ambígua

 

confesso meu

fascínio por

essa corda estendida

entre uma e outra

palavra

e sua falsa noção

de equilíbrio

 

trago na raiz

do gesto o alvoroço

do circo

 

nervo reteso

lanço-me no ar

risco a

superfície do inútil — e vôo!

 

por vezes

uma palavra mais ágil

me subtrai

do precipício

 

mas quase sempre

me esborracho

no chão

em meu vôo solo

sem tambor nem

auxílio

 

reconfirmado

sísifo

amador de seu ofício

alço-me outra vez

ao risco dos trapézios

 
 

(imagem ©lilbenne)

 

 

 

 

Carlos Machado nasceu em Muritiba (BA), em 1951. Jornalista, reside em São Paulo desde 1980. Edita na internet o boletim semanal poesia.net. Tem poemas publicados em revistas e jornais literários.