Eu, K., sonho que estou no alto de uma palmeira e que escrevo numa de suas largas folhas a lenda do arvoredo de ouro: "Lucana sob uma das árvores do arvoredo de ouro: a fina chuva de ouro nunca a acorda. Lucana congela um peixe salmônida (Salmo salar) na língua: a fina chuva de ouro descongela o salmo do peixe salar. Lucana no alagadiço rente à árvore de ouro: a fina chuva de ouro lava a garganta. Lucana reza o breve rosário de buirás: a fina chuva de ouro remansa olho de cacto e aquele ouriço-do-mar na gruta. Aqui envelhecem bosques nunca molhados, aqui juncos imersos no rio, arraia radiosa. O corvo coruscante, se é deserto, respira o dente do martelo. Esquecidos na larga folha de palmeira: sopros de raio e relíquias de brisa marítima. O peixe de pele fugaz, se é antigo, fura oceano de assombro, fura a pele clara da tempestade. O nervo do sexto improptus schubertiano açula a serenidade dos arrecifes recobertos de limo verde. Para a secura dos cabelos das náiades, niágara de águas, mais veludo que pedras".

 

 

 

 

 

Um sol de gelo paira a Casa de Água de Lucana. Quando se está escrevendo tudo é ímã. O que eu adoro nela é a linfa imaterial, agreste brancura da flor de mandacaru, dançar com ela em sua Casa de Água ou sonhar os olhos de Schaddei, depois rabiscar mares com o visgo em câmera lenta de barcas brancas ou navegar numa paisagem de arrozais no Ceilão. O sonho humano se abrupta nos escolhos. O melhor seria não ter nascido? Lucana lambe, com língua viva, o sal do gramofone. No oráculo, inscrito em sua alma, pode ser lido: eu fui uma Casa de Água. As velhas águas influem como as constelações; mas só os bulbos convivem com as pedras, sem dor. O excesso de não-muro permite que eu contemple:

 

1. as árvores altas vergadas pelo vendaval

2. os musgos e os besouros do Jardim de Pedra

3. as ninfas jorrando água pelos tímpanos

4. os aquários marinhos do ciúme

 

 

 

 

 

 

Antes de continuar, é preciso dizer que não sei porquê, aqui em Villa da Concha, ando embaixo das árvores. A chuva que acumula nas folhas encharca de água meus cabelos. Parece que, nas árvores, há uns frades beneditinos escondidos: com as mãos muito brancas fazem a unção de águas bentas nos meus cabelos que choram, quando ando embaixo das árvores. Contei para Lucana esse pensamento que me aconteceu e ela sorriu, porém verteu uma lágrima furtiva quando li um fragmento de Camões:

 

Quem com eles (os vícios) logo der

Na pedra do furor santo,

E batendo os desfizer

Na pedra, que veio a ser

Enfim, cabeça do canto.

 

 

Mas onde a cabeça do canto? Não distante de onde fluiu a pergunta.

 

 

 

 

 

Se é cedo, ergue-se, anda, cansa, até alongar-se novamente e adormecer na rede e sonhar que um íbis está nevando no outro mundo, que um íbis está lendo o sol. Fim do sonho, K. acorda para ver as bacias de água pelo casarão. Reza: "Esta é a confiança que temos em Deus: se lhe pedimos alguma coisa segundo a Sua vontade, Ele nos ouve". (João 5, 14). K. tenta o sortilégio e esboça uma oração: "Meus pés de ouro equilibram-se em peixes. Inciput erat verbum: no princípio era a palavra. A palavra é clarabóia sobre o pensamento escuro. Jesus cita as antigas escrituras para sugerir que somos deuses. Na fonte fria lavar cabelos, lavar cabelos na fonte fria. Pés de pluma equilibram-se em águas. Tenho confiança em Deus e a Ele peço quatro coisas, segundo a Sua vontade: a força da criança, a força das mulheres, a força da poesia, a força da música".

 

 

 

 

 

Sob a palmeira Lucana escreve uma carta a K.: "Em minha Casa de Água, meu caro K., eu penduro a chinesa de cabeça para baixo. Sempre que a torço, dela vaza água. Penduro a chinesa de cabeça para baixo. Eu que mordo conchas tão finas. A chinesa, de cabeça para baixo, morde conchas comigo. A brisa esvoaça a frágil chinesa, que não entontece, mesmo de cabeça para baixo. Eu nem diria que ela respira. Eu nem diria que ela é morta. A toalha secando ao vento estival: a efígie da chinesa na toalha de banho".

 

 

 

 

 

Vento quente no jardim da Casa de Água. Más valdría no haber nacido. Balofas ondas: no undoso céu curvas imensas de cristal emanam dos eucaliptos e, se fumo erva-cidreira, me transmudo para um filme de Fellini, no exato instante daquele take de Amacord em que uma freira anã ajuda o louco de pedra a descer da árvore. Não sei se é o efeito do capim-cidreira, que clarifica e intensifica tudo a meu redor; também não sei se essas balofas nuvens algum dia existiram. Para me distrair, enquanto Lucana se espreguiça na banheira, eu leio Arkadii Dragomoshenko na varanda da Casa de Água, sorvo ostras com limão, crustáceos com salsa e coentro. Eu lendo a ode em que Arkadii Dragomoshenko descreve o último suspiro de Oskar Kokoschka. Depois abandono as odes, contemplo na banheira a respiração daquela que, após o banho de sais, vem espraiar-se ao vento.

 

 

 

 

 

Um conto de K.: "A curva irônica de Gauss: relâmpagos de puro cristal aclaram os dois jardins da Babilônia. Um jardim é Quf: capacidade de escutar a santidade de nossa natureza. Outro jardim é criatura que ondula cristais sonoros: o mar grego okeanós. No ano 1004, em algum palácio do oriente, dentro do quarto junto do pomar, o califa al-Hakim proibiu a venda do peixe sem escamas e grafitou nos muros escalavrados um estudo sobre óptica. O califa al-Hakim convidou para a corte o astrônomo al-Haytham, que seguiu o rastro da Teoria da Intromissão, de Aristóteles — segundo a qual "a essência do que vemos penetra surdamente no oco, vítreo e aquoso, situado no centro de cada íris —, por meio da brisa marinha".

 

 

 

 

 

        Aqui, na Casa de Água, ao lado de Lucana que acabou de adormecer, descanso breves minutos, enquanto enrolo o meu cigarro com as folhas finas de um pequeno livro de mortalhas. Fiz muitos pôncios para amar Lucana, alguns pilatos, depois tive que lavar as mãos no chuveiro. Troquei Lucana por Barrabás, mas logo me arrependi e fui sorver, com ela, um chá verde numa xícara de linhagem. Composição para ouvido: eu preciso aprender a empurrar a chuva até a vidraça que a chuva quer molhar. Escuto a nostalgia que a chuva insiste em esquecer junto à porta. Mais molhada que o mar, a chuva desfaz o meu cigarro de folhas finas, desfaz meus cabelos, minha cabeça, a chuva só deixa intacto o gelo do coração que o sopro de Lucana abrasaria. Do tapete, antes de ir embora, recolho as garrafas de vinho e as pontas da erva-cidreira que fumamos desvairados, eu e Lucana, a tempestade lá fora, o perfume intenso do mar salgado lá fora, Órion e Sirius lá fora e, aqui dentro, acasos e cantigas no sereno oásis, eu e Lucana na Casa de Água escutando a última conta do rosário de neblinas.

 

 

>>> Continua