De uma das estantes
da modesta biblioteca que possuo aqui no casarão colonial, retiro
um livro de Jorge Luis
Borges. Um livro devia ser escrito para ser lido com os olhos
fechados. Abro ao acaso e leio: "Costumo pensar, então: este é um
sonho, uma pura diversão da minha vontade e, já que tenho um poder
ilimitado, vou produzir um tigre". Alguma louça na pia. Lavo,
enxugo, guardo os pratos, as xícaras, talheres e não sei se sonho
com gata ou peixe. Se sonho com gata sem peixe, escuto certo
murmúrio renascentista na "Nuages gris", de Lizst. Se sonho com
peixe sem gata, viro água no talo foliáceo das algas, espumo,
quebrando-me na aresta do granito. Se sonho sem gata e sem peixe,
saio das nuvens, levanto a fronte e escuto. Se sonho apenas com
gata, "e já que tenho um poder ilimitado", ela se torna essa
mulher — Lucana —envolta em óleo perfumado. Finalizando: se sonho
apenas com peixe eu sonho o sonho do peixe.
Lucana grafita a
carvão, nos muros gretados que circundam a Casa de Água, a pedra
de toque de Valéry: "Devemos ajudar a Hidra a esvaziar seu
nevoeiro". E pensa
consigo a silenciosa Lucana: "Lutuosa Hidra que ressona no
lodaçal. Hidra imersa no nevoeiro. Sal e pregos vazam de sua alma
sem aragem e nem a tempestade dissolve a Hidra. Com óleos bentos
ou com o fio de ouro da consciência esvaziar o sono que a coroa e
coroá-la de chuvas. Talos de capim, águas da cacimba pode que a
destravem dos arcos-de-ferro que a ressecam. A respiração da Hidra
embaça o vidro. Os nevoeiros da Hidra: calafrio: crosta:
batráquio: se os curarmos com a benção que relaxa, a tempestade
aroma-se de ervas finas". Singramos à praia de Pinheiros-bravos. O
céu nunca naufraga: a brisa que nos envolve traz a essa alta
árvore em nossos tímpanos uma esparsa de Josely Vianna Baptista:
e nada é imagem
(teu corpo branco em
mar de sargaços)
nada é
miragem
na tela rútila das
pálpebras.
Para vislumbrar o
ponto de orvalho — que é o princípio da serenidade —, cada palavra
precisa orar sobre seu próprio escombro; e se aceita que é
escombro, a palavra se realiza, casta e sórdida, como nesse
fragmento de Rimbaud: "Feéries profanas. — estou sentado, leproso,
sobre os vasos quebrados e as urtigas, ao pé de uma parede
corroída pelo sol". Após a leitura desse pequeno texto embaixo
daquela árvore, na praia de Pinheiros-bravos, entrei no mar e
notei que o relicário movente da água marinha não é da ordem do
útil. E porque somos improvisos de céu profundo, somos rapsodos, e
hoje anoitece mais um domingo em Villa da Concha. O ponto de
orvalho recolhe e apazigua o vendaval. O mar não se destrói com
nenhuma tempestade. Um olor de cipreste na bigorna. Lavo agruras
se me chovo ervas noturnas, para que os meus olhos d’água possam
escutar os belos versos de Ungaretti:
No olho
de mil e uma
noites
repousei
Na caixa com areia ali se enfia, à
sombra dos ramos do muro, o gato mourisco de Lucana, que
philosopha: "A música de Bach é uma árvore barroca que cresce com
os ventos". K. costuma chamar a Casa de Água de Templo de
Khajuharo — e sabe que ali, nesse templo metafórico, dançam
ventanias; ventanias que nunca poderíamos esculpir na pedra —
pedra que floresce calma e pensativa. No Templo de Khajuharo — ou
Casa de Água —, a atividade da noiva Lucana sopra os pingos dos
ís. Se à meia-noite vai ou não à Missa do Domingo de Ramos, se
escuta o sopro renascentista ou lhe trazem um jarro que vaza água,
isso pouco importa. O que deseja Lucana, quando anda de lá para cá
em seu simulacro de templo, é fumar a fruta das plantas e,
minuciosa, investigar essa luz vinda do alto, pela telha de
cristal, uma luz de aquário, simples, verdosa, acalmada pelo
silêncio. E se em copo de vidro bebe o vinho forte e negro, é
porque aqui, no Templo de Khajuharo, ela pode ver e escutar,
contra o muro gretado, a árvore barroca que cresce com os
ventos.
Breve carta e um pequeno conto de K.:
"Lucana querida, aí um pequeno esboço de narrativa escrito à beira
do ferro-gusa e de ramos sombreando arroios:
A BANHISTA E O
RINOCERONTE
"Uma névoa rósea e
palpitante de ninfas
— nereidas,
dríadas, oréadas, napéias coleantes,
oceânides
melodiosas".
Júlio Dantas
Banhista. Pessoa que se banha em mar, rio,
piscina etc. Pessoa que se submete a banhos
medicinais.
(Dicionário Aurélio)
Rinoceronte. Do latino clássico rhinoceros, otis). Mamífero ungulado,
perissodáctilo, ceratomorfo, rinocerotídeo, maciço, pesado, de
cabeça muito alongada, com 1 ou 2 chifres, situados, neste caso,
um após o outro. Cauda curta, os quatro pés com 3 dedos de cascos
separados, boca pequena e lábio superior alongado. Atualmente
existem 4 gêneros, com cinco espécies: a indiana, com 1 chifre
(Rhinoceros unicornis),
a javânica (R. sondaicus), a de Sumatra
(Dicerorhinus sumatrensis) e duas africanas (Diceros
bicornis e
Ceratotherium
simun). (Dicionário
Aurélio)
"Eu sei que a
banhista não existe, mas entre duas ondas do mar a banhista
mergulha e a respiração dela — napéia coleante — se a imagino,
existe junto do pomar e do rinoceronte. O sono íntimo da talássica
nereida me doura. Rente a um muro de Cnossos, as duas ondas do mar
nunca secam, ressuscitam molhadas no sonho da banhista. Ossos do
rinoceronte secam, não ressuscitam nunca mais, como nunca mais
ressuscitam o fel e o urinol. Assim os arcanjos nunca extraviam
suas blusas d'água e a banhista — oceânide melodiosa, napéia
coleante — respira agora na Casa da névoa".
Um poema de K.,
escrito em guardanapo de linho, numa dessas noites de beberagens.
Foi encontrado na mesa de pedra do bar Gallo del
Viento:
VIOLA DE
CHUVA
No mais mineral das profundas prosas
altas,
onde a viola de chuva se
esconde,
lá onde as piscinas ondulam
tempestuosas,
quando o escarcéu das águas se
avulta,
lá a voz selvagem e as iguanas
sedentas,
lá, na voz, se aclara a palavra nunca
vista
e a obsedante garoa rega a pedra da
elegia.
No alto-mar de transparente massa
cristalina,
quanto mais ao alto-mar de silêncio
perto,
mais a voz vai
aclarando,
se antiga é a alma que se
vislumbra,
assim das profundas mostra claro e
radiante
o mineral das prosas
altas
que serena o que,
nas sedentas, há de árido.
Em Villa da Concha, guarda-sóis na praia de
Pinheiros-bravos. Eu, K., observo a praia de longe e, após três
cigarros de erva-cidreira, passeio meus pés pelo tapete do
casarão, torno-me mais confessional e sonho que há búzio no areal.
Decido ir ao mar. Desço as escadas de pedra. "Cada um de nós é um
búzio", afirmou Kierkegaard. Vindo das angras corroídas de
salsugem, o vento nos guarda-sóis, que resistem. Então sou búzio e
sombra de búzio no salitrado areal? O vento forte não leva o búzio
nem a sombra do búzio. Ando mais um pouco pela areia fina e branca
dessa praia inesquecível e penso que não há nem nunca houve, no
azulado recamo do celeste céu, sequer um resquício de fronte
angelical ou espíritos a esparzir unções; por outro lado, na praia
de Pinheiros-bravos, pode ser que o silêncio seja o Deus que tanto
espero — o Deus do suave frescor e do mantra Om. No arco do
pensamento sopra uma embarcação que amanhece. Água molha o búzio,
molha a vegetação dos ventos. A vista abarca, de pronto, tudo o
que em Lucana é um belo relâmpago: sei de suas feridas fundas, das
duas ramas tenras que se apartam como coxas de mulher, e ocultam
na juntura um punhado de musgo negro. Os guarda-sóis continuam
ali, cravados na areia. Se escuto um azul, é o mar que escuto e o
arco do meu pensamento extrái essa voz de orvalho da pedra tosca,
voz que traz à tona as miragens internas que sopram das próprias
palavras: sargaço, caranguejo, alga. Não devemos escutar as
palavras, mas sim o fogo invisível que há nelas — e as
excede.