Água de Lucana coroa a penumbra de K., que confessa: "Encontro, num dos becos aqui de Villa da Concha, dias meus vorazes que eu havia esquecido nas nuvens, dias mais ligeiros do que cervos e ventos que somem entre sombras e arvoredos". Enquanto olha as amendoeiras da rua onde mora, K. tenta esquecer que somos cadáveres esfolados com o céu ou cadáveres molhados com cúpulas de pedra. Porco: por dentro, o corpo dele é tão parecido com o do homem, que deveria ser utilizado nos hospitais no estudo de anatomia. Desde aquele domingo K. é perseguido pela impressão de que as cinzas o espiam. Para curar o porco em seus cancros, lava-os com láudano, bálsamo de ungüento, desinfetante lisol. Para curar o Vazio K. passa a língua

 

no salitre perfumado do pequeno bosque

no pequeno bosque de ciprestes passa a língua

no

pequeno

bosque

de

ciprestes

 

 

 

 

 

O vendaval e seu assombro afundam nas vidraças, nos azulejos e nas pedras ardentes. Nem sabe o vendaval que é invisível. Nem o invisível sabe que é vendaval. Quando nada acontece, temos duas escolhas: escutar o sortilégio que jorra dos olhos de Oxum ou irmos ao bordel cuspir aguardente na coxa das três mulheres do sabonete Araxá. O sopro de K. enfia-se no vendaval e os dois erguem a saia das mulheres, arrancam da cabeça dos pescadores os chapéus de palha, escandalizam as roupas no varal e eles invadem, também, portas e janelas das casas e, contam os pescadores, o sopro de K. dentro do vendaval pode ser visto — agora — circulando daqui para ali seu transparente movimento. No único antiquário de Villa da Concha, K. adquiriu o martelo essencial e, com ele, vai esfacelar a fria lesma, a fria sombra do agouro, a fria palavra de gelo. Sob o céu o vento faz uma imensa curva de cristal. Na livraria próximo ao antiquário, K. encontra o primeiro fólio do nebuloso incunábulo Imago Mundi, do filósofo Hervum. Tanto vendaval suspenso na altura do ar refrigera e dissolve os maciços do sol, resgata da cinza da infância o fluido fio marinho, a castidade da serpente, os fogos. K. rabisca um fino corte de faca na curva de cristal e o cristal apenas tem forças para dizer, com Quevedo, que o que desejamos é:

 

No ondas ni luciente cristal:

agua al fin dulcemente dura

 

 

 

 

 

A nuvem arrepia-se de febre até às ondas da branca espuma. Lucana folheia o livro do místico Sri Aurobindo: "Não existe mortalidade. É somente o Imortal que pode morrer. O mortal não poderia nem nascer nem perecer". Lucana agora anda, mergulha, vai ao fundo do mar — la lengua del alma es la pluma —, Lucana anda mais, singra o areal com os cabelos pensos e o pulmão opresso. Mergulha na vastidão molhada. Afunda: onde está o invólucro calcário de uma concha, está o fundo salgado e estranho do mar ondulando mar. Com as mãos consegue arrancar de cima de si as águas e, Lucana assim imersa no vento, já sabe que a língua é de água viva e que a maré vazante afasta o porco para longe daqui. A alma é fúria grande e sonorosa, a coar sombras da ânfora proibida. A mais funda sombra é o porco-demônio que pisca, nervoso, os olhos incrédulos, ri, treme-lhe a mão esquiva, o braço enlouquece, a perna adormece, o pé medita, o tronco dança maculelê, mexe-se na cadeira, levanta-se, senta na cadeira, pisca, cai-lhe o chapéu, tomba o maço de revistas "O Cruzeiro", ergue o maço acima da cabeça, fala com a parede, com o gato d'água, discute com a sombra do próprio cabelo no lajedo, tenta torcer o pescoço de pedra e chora de rir até os dentes caírem no chão. O porco-demônio (daimónion) é escorregoso, respira cloacas e, claro, nunca é sereno. Tem vezes o daimónion pode regar anêmonas com a marca viva que é, em sua voz, o sobrenatural, ou pode fingir que é pároco da pequena igreja do Carmo. Durante a distribuição das hóstias, pára tudo, as hóstias esquecidas no altar e, com o gesto supremo de quem vai cometer uma barbárie, cata no bolso da batina um pente e passa em seus cabelos de bolha de sabão. Basta um leve toque da ponta do pente em qualquer parte da cabeça do pároco e — catapám — o pároco explode em plena igreja e só se podem ver os nacos dele sujando os fiéis. O deus e o porco-demônio: o punhal de prata na água do poço. O porco-demônio é o punhal de prata que o Deus-água-de-poço dissolve lentamente. Para se distrair, o porco-demônio vai ao hall do Restaurant Palace e, ali, entre plantas exóticas e lustres de cristal, saboreia minguados caranguejos. Contrariado, ele ironiza: "Sempre que provo estes caranguejos, evoco os lagos pitorescos da Suíça". O garçom estranha: "Perdoe-me, senhor, mas na Suíça nunca houve caranguejos". O porco-demônio acrescenta, apontando com absoluto desdém, o prato: "Aqui também não".

 

 

 

 

 

Eu escrevo o dia inteiro, cá fora, junto ao pequeno pavilhão de estilo oriental e sob a árvore daquela frase; árvore que finca raízes no calcário friável composto de sílica e argila. Não esfrego serpente nem ostra na cara. Não falo grego e siríaco, mas o silêncio escuta o movimento hierático de minha clara língua. Eu, K., a caminho da ilha de Creta, extravio luz no vão de cercas. A caminho da nuvem, eu, morador de Villa da Concha, me’n vaig arran de l’aigua i recullovou rente à água e recolho — grãos de música para os dias frios e desesperados. Nos cactos, nos vinhedos e nas paredes pintadas a cal, perpassam manadas de sombra. Por aqui o olho das velhas loucas até parece um lugar de siri. Escrevo: "O Jarro Sereno — no jardim de Quf — sonha que não cessam os oráculos. E o que poderiam revelar os oráculos?". O Deus tenta uma resposta: "Os oráculos revelam que é necessário esgrimir contra a monotonia para que o texto do Jarro Sereno — lumen naturae — nos alcance". Eu, K., no horto, certo dia, mergulhei a cabeça oca na pipa d'água — ia morrer afogado, o Jarro Sereno me puxou da pipa d'água". Escrevo, depois do susto, algumas letras nupciais: "Lucana, o que eu desejo pra ti é que chovam capinzais e a Cassiopéia na tua frase. Chovam brasas no teu gelo e que os esguichos do unicórnio ágüem os cajueiros do quintal, ágüem o meu amor e a tua concha — que a água-perfumada lave teus ossos até que reste apenas essa caixinha de música e a música é tudo, bem sabes. De branca espuma coroada a onda, de barcas o mar de sal grosso, de Vazio coroado o ar e de água pura a fronte, enquanto a brisa zaranza da turmalina ao matadouro, das altas árvores à torre da igreja do Carmo, dos cílios aos capinzais, a brisa por tudo passa e serenamente entra pela janela e no quarto se acalma. E que te cale a chuva no Jardim de Pedra. Durma até, durma Lucana, que eu te ressuscito com carícias na nuca. E, ao adormeceres comigo, sem que me toques, possa a árvore branca das cantatas de Bach oxigenar a tua pura fonte no pedrento, meu amor, meu labirinto de relva". Escuto um pouco o riscado vinil de Chet Baker. Leio, antes da pequena refeição noturna, este versículo de Manoel de Barros: "Eu ouço a fonte dos tontos. Quem ouve a fonte dos tontos não cabe mais dentro dele". Ontem sonhei que eu caía na cisterna abobadada de Bahr El Khabeer para escutar mel nas ostras, para escutar a fonte dos tontos, para escutar o sumo solar. Consultava o relógio da corrente: quadrado branco de fino vidro. Na cisterna havia orgias de latim e eu era virgem de mulheres. Meus olhos cobertos por vidros fumados, de aros muito grossos e talvez prateados. A cisterna mormacenta sufocava, enquanto eu rememorava os vaticínios daquela noite de runas: eu só poderia clarear o inverno sombrio, se eu mesmo fosse o inverno sombrio ou esse trecho de pedra fria que me serve de cama. O mal há, é sombra que enfraquece. O real é uma alta árvore no ouvido, o "em-constelação". Folheio Eça: "Onde não há água, não está Deus. Chão de greda é condado do demônio". O baal zebuh não há. Existe é o céu humano. Um cristal ou uma enguia me muda.

 

 

 

 

 

Um pedaço azul de sabonete caído no ladrilho. O clarão súbito e breve de um relâmpago de Heráclito conduz as coisas todas ao fluxus. Eu traio Lucana com essa morena que encontrei na rua das Larissas Descalças. Estamos no Motel Agreste. Daqui posso ver a Casa de Água pela janela que, parcialmente fechada, deixa penetrar o ar, mas torna sombrio o ambiente. Se Lucana me telefonasse, eu lhe diria que mergulhava no mar, quando, na verdade, o que eu mergulhava eram os dedos entre as coxas dessa morena de olhos azuis, cabelos pretos. Os ramos afundados ungidos de Vazio, para não esfolar a pele quando o andamento de águas um contra o outro esfregamos. Daí é o instante em que as águas virgens jazem ao lado da friez de corais ouro-alaranjados, águas virgens estiradas no silêncio. Claro que Lucana nem desconfia que estou aqui nesse motel e acariciando esse paraíso de olhos azuis, cabelos pretos. A morena é uma dessas colhedeiras de mariscos e sopra de minha alma a ferrugem e o remorso. Sobranceira, ela rapta-me da ante-sala da loucura, e é por isso que, com haste de bambu, tatuo na minha pele a silhueta que é divina da colhedeira de mariscos. Ela esquece ervas-de-cheiro entre meus pés, nas cortinas e nos lençóis onde trançamos leves desesperos. Coroada quer coroar o que no silêncio é gramática da fonte. A de olhos azuis, cabelos pretos, é um lagar onde não há uvas cáusticas. O que eu sei, dela, é a jângal, e aqueles olhos, com sede, como se vindos de um céu de safira oriental. Dançamos, num andamento vivo, a sardana com o tamboril e a flauta e, à sombra de grandes barcas, com os corpos nus passamos por sobre as algas, os náufragos, as florestas submarinas, os hortos subaquáticos, os bosques molhados. Fora do Motel Agreste, o mar adora o abandono de toalhas molhadas que jogamos no piso eu e a morena — duas águas que se encontram na madrugada: mesma estrela na proa e uns poucos cabelos na correnteza. A presença de Lucana na minha mente culpada — o cheiro dela, de sassafrás, que chega do extenso de cercanias em grossas ondas de luz salina, beatifica de longe, aclara os lençóis, os olhos azuis, cabelos pretos dessa morena e penetra, essa presença de Lucana, a minha cabeça cravada com os espinhos da culpa. Penso que eu não deveria ser como as virgens imprudentes e que devia andar sempre com uma caixa-de-fósforos no bolso ou ser como a nadadora que esquece nas águas formas exóticas de jarras. Um pedaço azul de sabonete e nunca mais vi sequer um resquício dos olhos azuis, cabelos pretos. Apenas restou, de nosso encontro, o que resta de tudo: a brisa, o incenso, o mar como uma louça que se quebra nas pedras.

 

 

 

 

 

Um dos textos de K. principia assim: "A língua inchada suja de livores de azoto e de crostas, no lábio seco de tanto fumar. A lavanda que sobe da roupa branca estendida na arca. Aproxima-se um dos assassinos, puxador do fumo louco, e seu nome é Jairo. Toca numa das franjas do manto do Homem Puro e diz: 'A língua da deusa está morrendo. Vem e impõe nela as mãos para que ela respire'. Ainda balbucia gosmas de fala, quando chegam alguns e comunicam a Jairo a notícia árida: 'A língua da deusa morreu. Por que perturbas ainda o Homem Puro?'. No sobrado verde, em Villa da Concha, essa língua: órgão muscular, musgoso, situado na cavidade bucal da deusa, é uma barata leprosa com caspa na sobrancelha ou carniça do sovaco da cárie. O Homem Puro, em surdina: 'Não temas; crê somente'. Em torno e dentro do sobrado mulheres de saia florida e homens de chapéu negro choram e os punhos em faca clamando contra o céu. O Homem Puro ainda pergunta: 'Por que este alvoroço e estas lágrimas? A língua da deusa não morreu, está envolta em sono'. E descreve, com o dedo, um pequeno arco na têmpora da língua: 'Língua deusa talitha cum' — o que significa: 'Língua da deusa, eu te digo, cura-te'. A cárie leprosa com barata na sobrancelha não se curou — mas a língua da deusa, sim".

 

 

 

 

 

        Então K. sai do quarto e caminha à varanda. Percebe, na enseada, os primeiros movimentos que aparecem ao longe, no ondular de canoas mansamente próximas de cascalhos, canoas abandonadas ali por nativos quase nus. K., durante a tempestade que açoita Villa da Concha, vai ao peitoril da varanda do casarão colonial e lê aos quatro ventos o texto que escreveu em oferenda à Santa Teresa de Ávila "Ela não cultiva pássaros azulados em gaiolas de ouro: rebebe, sim, o encharcar dos brejos. Aí, se acorda, suspende uma folhagem. Sob o chuvoso arco do mosteiro se deu o que se deu — o isto é! — Santa Teresa de Ávila avança pela escadaria de pedra para se espiar parada, imersa na luz. Ela respira o sono tempestuoso de lianas durante o vendaval; é o ferrão escuro do escorpião, a cantaria barroca e o sino: queima, com as palavras ferro e brasa, a pele transparente dos anjos".

 

 

>>> Continua