O pesadelo de K.: "Nunca estive aqui. Respiro ao modo antigo, e a matéria clara de uma Cassiopéia, que move cristal de rocha e músculo, turva-me ainda mais do que o Deus da respiração. Manah, em sânscrito: 'mente'. O vocábulo santo — Deus — igualmente do sânscrito, é grafado D'jeus e significa 'lua clara no céu: mente silenciosa, sem sonhar'. No sono já sei que o sonho é uma astúcia da vigília. No pesadelo do sono estou no calabouço, vocifero, estou no calabouço, amarrado a um tronco e à espera do interrogatório noturno. Uma nova estrela ventila as vértebras e nelas eu teclo uns acordes da Sagração da Primavera, de Stravinski. Lá, acima dos claustros altos e românicos do castelo de pedra, os ventos nunca dormem. Aqui, no calabouço, a alma cativa, chagada toda, está em carne viva. Neste lugar de lodo amor não há e o peixe de escuro dorso pétreo dilacera, com seus dois aguçados dentes de morsa, com seus dois graúdos dentes de morsa o calafrio escalavra a alma sensível. Calabouço, onde eu dormia num catre rude, mas limpo. Ali me curvei ao vasto Vazio, tendo nas mãos caules frágeis. Naquela noite em que enfiaram homens, mulheres e crianças nas câmaras de gás, naquela noite eu atravessei o pátio gelado do calabouço e, à sombra noturna de árvores, encontrei o Vazio sentado num dos bancos rociados pela neblina. O Vazio com a cabeça enterrada entre as mãos".

 

 

 

 

 

Monteverdi e a praia de Pinheiros-bravos, que é um declive arenoso e confina com os ventos e a neblina vivificante. A língua natural e o ato de respirar: um só enigma. Para proteger Lucana do sol e da chuva, K. construiu uma espécie de caramanchão e, à sombra dele, colocou um banco de pedra e um frasco d'água. Quando o espírito impuro sai do homem, perambula por lugares áridos, procurando remanso, coqueiro e céu, mas não encontra. O espírito impuro, antes de ir ao deserto, decide verificar se a sombra do caramanchão é mesmo de fresca ramagem. Lucana sopra na pele do espírito impuro, até que a pele seca se torne avena suave que daqui se escuta. Pensa Lucana: "Devo ancorar minha barca perto do caramanchão de rosas brancas e longe do sabre no mais fundo. Se os fariseus, ressoantes e vazios como tambores, ousarem insinuar que aqui não devo ancorar minha barca, logo uma irada torrente me encharca cabelos e pulmões e as árvores altas vergam até às pedras para que sumam os fariseus nas chamas de uma sonata de Monteverdi". Pequena descrição dos talha-mares, de coloração escura, na praia de Pinheiros-bravos: se próximos às águas da neblina, quase é certo que, sendo talha-mares, nunca leram livros nem ajoelharam diante do banco de pedra e do frasco d'água, mas, sabe-se que eles têm o hábito de voar junto da água, alimentando-se de tainhas e plantas subaquáticas. Sugeri à Lucana que fôssemos às termas marinhas. Ela concordou e rezou o preceito de Buddah: "Antes que a primeira vela se acendesse, a vela já estava acesa". Quando chegamos às termas, ciprestes vieram ao nosso silêncio. A única Lucana que ali estava ciciava no tímpano do salmão transparente — salmão no leito líqüido da onda. Em torno havia um mar cativo de espumas. Naquilo pedras o mar molhava: um grosso aguar. A náutica Lucana velava o incensário de ouro e fogo, abandonava a língua no apuro do açude. O gongo a serenava. Antes que o primeiro salmão se molhasse, o salmão já estava molhado. Ao mesmo tempo em que a neblina sumia por entre as árvores, eu e Lucana, afundados no vapor oloroso das termas marinhas, éramos duas cinzas frias remoçando n'água.

 

 

 

 

 

Tudo isso acontece em Villa da Concha — esse lugar no mundo perto do Atlântico. K. recolhe das linhas de água e sal o marulho e o amargo da espuma que espicaçam o interior de sua pálpebra, porque sabe que falta dizer a língua antiga com o sopro natural dos ventos. Começa a considerar, como parte do ritual, esse tempo articulado com molas de relojoaria — a hora — e bebe no fólio o ditame bíblico: "Pois serão todos salgados com fogo. O sal é bom. Mas se o sal se tornar insípido, como salgá-lo? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros". Águas do céu deixam mais pesadas as oliveiras à sombra de oliveiras. No casarão, exposto às chuvas, K. aprende que a língua das nuvens é a dos ventos e não a língua curial da fealdade. As nuvens arrastam sombras por cima dos vastos telhados do casarão. "Passar", diz K. "da palavra tosca à palavra clara é sereno purificar-se com água de Alladin, que não deixa no lençol mais do que esta marca simples". No casarão colonial a voz do orago K.: aragem nas trepadeiras da cisterna.

 

 

 

 

 

"É perfeitamente pensável que o esplendor da vida circule por toda parte, e sempre em toda a sua plenitude, acessível mas velado, profundo, invisível, longínquo. Mas ele está ali, sem hostilidade, sem relutância nem surdez. Com a palavra certa acode ao chamado. Essa é a essência da magia, que não cria, mas convoca". Depois de ler o aforismo acima de Kafka, partir a torrada em duas e beber o café, Lucana olha para a janela com vidraças azuladas de seu quarto. Leva um susto e argumenta em silêncio: "Não, não é uma foice, é apenas a cortina". Fica olhando a cama desarrumada, desnuda-se, as águas do chuveiro choram desesperadas e ela só tem tempo de pensar que nunca havia tocado a pele de K. O sabonete Phebo recende aroma de noite sossegada por toda a casa. Também o mantra recende, que Lucana entoa: "Tadyatha om gate gate paragate parasamgate bodhi svaha". "É assim, avance avance, vá adiante e transcenda, vá diretamente adiante, firmemente enraizado na iluminação". Ouro nos cactos que circundam a Casa de Água: crótalo, crótalo, crótalo. Folha de hortelã no chá frio. Lucana morde conchas finas. No domingo recalcitrante o fresco de águas indo entre galhadas e pedras. Lucana sorve, para assombrar o assombro: ouro-crótalo, fina água de goivo, um risco de lágrima na concha. Adoça a espinha do peixe no cantabile que vaza do gramofone e se derrama nos tímpanos. O que salva é escrever nesse estado de óbvia distração, encostado à inclinada palmeira musical que torna mais suportável a banquisa.

 

 

 

 

 

As barcas ao pairo. Recolho do céu do cronista clássico aquilo que o inunda de luz — o samudrá — depois estendo a toalha na areia fina da praia de Pinheiros-bravos. O guarda-sol é branco e Lucana me disse que chegaria às 8 horas. Percebo que ela se aproxima com um cesto de verga ao ombro, ondina que é, acena para mim que ardo com sede embaixo do guarda-sol branco e some, com timidez de virgem, a pele de seu fogo no mar. A verdadeira linguagem das preces é serva reverente do que no céu é música hidráulica. Com seu cacho de vide, suas algas, seu alumbramento, Lucana sai das águas e as esquece na fria areia. Seu corpo junto ao de K., agora, é uma delicada cena das Bodas de Canaã. O Vazio aparente das ondas — salgadas brancas espumas —, espumas que, segundo a óptica de Lucana, imitam a neve dos telhados de Kyoto. K. e Lucana adormecem e sonham que Buddah, quase invisível sob a Árvore no parque de Sarnath, indica com os olhos a pequena caixa negra. Nela uma pedra pura — lapidem esse aquam fontis vivi — pedra que é uma fonte de água viva.

 

 

 

 

 

Quis o destino, e possivelmente o deus verde dos hieróglifos, que K. folheasse "Os Manuscritos de Hervum", enquanto meditava sob leques de palmeira. Na epígrafe de tão renomado manuscrito, depois de algumas xícaras de café, lemos a epígrafe de Anaxágoras: "Chega um momento em que cansamos de tudo: amor, repolho e pôr-do-sol". Na página 31 dos "Manuscritos...", Hervum inscreve a linha de frase: "Tenha sempre um peixe à mão, finamente esboçado, que o mar pode que retorne em auras". Jogo o livro de Hervum pela janela e peço: "Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais. O que adorei até o osso, onde respira? Ido, dissoluto, se estende ar suave acima dos telhados das casas. No Oldsmobile verde-claro da ilusão chega Lucana sem me avisar, mariscando portas d’ouro entre duas ondas do mar. A çankha hindu, sabe-se, afugenta demônios, excita os deuses benévolos. A çankha da respiração de Lucana". Comentário dela, depois de ter lido a madrugada inteira: "Toda devastação traz em si o germe de seu idílio. Viemos do geena; alguns ainda estão lanhados com as labaredas de lá. O coroado nó de fogo e o jasmim preparam o córrego nupcial". Lucana ainda sugere: "Nunca esqueça de quassar a raiz das cactáceas no areento". Eu, K., aqui no meu casarão colonial, à sombra de figueiras, faço girar na vitrola a barca de Duke Ellington nascente.

 

 

 

 

 

Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas da Casa de Água, o Jardim de Pedra, a nudez de Lucana. A grave introdução de uma sinfonia de Brahms — o tumulto dos violoncelos e dos oboés — aponta para o renque de altíssimos eucaliptos erguidos verdinegros sobre a vegetação circundante. Lucana escuta Brahms e percebe, a um recanto da Casa de Água, o vaso de cerâmica — cretense, mediterrâneo — que amadurece um filete de luz em seu bojudo ventre. Lucana exposta ao sol da varanda da Casa de Água, procura salvar a mensagem da água — sombra de verdade, apenas — apura o tímpano, escuta as palavras tontas das lavadeiras e essas palavras cobrem a fonte.

 

 

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