à D. Eloiza

 

Faço um poema pra me despedir do mar.

O mar não entende pedidos nem o aço das pedras.

Sente que sou da montanha e que ainda estou

Às margens do rio Arrudas,

lugar onde nasci e hoje infância.

Vila Esplanada:

               Presídio de mulheres, enchentes constantes.

Minha mãe me tirou de lá com suas mãos grandes,

De calos e reentrâncias.

Contra minhas mãos pequenas e lisas de professor.

Cumpriu à risca o fardo de fêmea:

                       Pariu meu irmão e eu.

Mas não rompeu a lógica das estatísticas.

Saiu de São João de Manteninha aos dezoito sem letra,

Com suposta data de nascimento na cabeça.

Desceu na Rodoviária Governador Israel Pinheiro,

Praça Rio Branco sem número.

E ainda, sob efeito do êxtase da cidade de Belo Horizonte,

Descarregou as malas, tirou certificado, identidade,

Carteira de trabalho e completou seu êxodo.

Esboçou seu primeiro sorriso diante do êxito de cruzar destino

Quase ilesa, com calos e reentrâncias nas mãos.

O médico diagnosticou alergia aos produtos de limpeza,

                         Leve tristeza e hipertensão.

Vila Esplanada:

               Presídio de mulheres, enchentes constantes.

Minha mãe me tirou de lá antes da verticalização das favelas.

Ela segue sem religião mas,

                       Com uma fé abrupta,

                                         Ora ao Senhor.

Não sei se com fervor ou um ódio apaziguado

                                         Pelo excesso de amor.

Não sei se com alegria ou consternada

Pelos dias em que foi maltratada lavando chão.

Já freqüentou a Igreja Universal do Reino de Deus,

        O Vale do Amanhecer,

        As Católicas

        E Seicho-No-Ie.

        Descubriu que deus não mora numa sacada,

        Não gira em torno de uma órbita.

E que, vez ou outra, Ele irrealiza os nossos desejos.

 

 

 

 

 

 

à D. Tânia

 

Ela me deu as letras

                 uma a uma.

Colocou-as no meu colo

e eu as guardei num estojo

Pra comê-las no recreio.

Eu tinha sete anos ela dezoito.

A primeira musa que reparei

Com olhos de fome.

Porque ela tinha o que eu queria:

A chave do cofre,

A senha pro imaginário:

Letras, letras e mais letras

Inauguravam meu mundo.

E os meus garranchos se agarravam,

Não se desgrudavam de sua saia não.

Dona Tânia me ensinou a tramar destino

A cópula dos números

E como se pontua.

Ela me deu as primeiras letras,

                A janela dos livros.

Mas o poeta que sou eu não sei a quem devo

Uma ode ou desculpas.

 

 

 

 

 

 

à Frida Kahlo

 

Para os orientais a morte é o fato mais importante de nossas vidas.

E elegem o branco simbologia do luto e reservam aos enterros

Uma cerimônia mais alegre que sombria.

Para os mexicanos a morte é divertida.

E preparam o pão do morto e caveiras de açúcar

Para a festa do dia dos mortos.

No entanto, à maioria de nós

A morte é a morte pra debaixo do tapete (e o medo a silencia).

Acalanto Frida Kahlo num 13 de julho, o dia em que ela deixou

Sua capa protetora, seu acervo e este planeta,

E foi ter com o imponderável encontro sem atalho.

Já que a morte é inadiável alegoria.

Escrevo sobre o nó dos seus dedos, em suas reentrâncias,

No seu seu sexo mesmo, com largas pinceladas.

Frida Kahlo viveu a vida desregrada de forma metódica.

               Feminina.

                       Comunista.

                                Surrealista ela

e sua cadeira-de-rodas.

                (Que usava para reconfortar a dor).

Para André Breton Frida era uma "fita enfeitando uma bomba".

Para Tróstsky sedutora, curiosa, amante e merecedora de livros.

Para Diego Rivera a melhor parte de sua vida e mural inacabado.

                 Frida Kahlo.

                        Alada.

                                 Calada.

Pintou sua coluna aberta,

O sol ébrio e a solidão gigantesca,

Abortos & descobertas.

Os seus pés podres a fizeram levitar para além dos quadros,

                         dos quartos de hospital e seu jardim.

Sorveu a vida como poucos,

de dentro de um casulo,

Acaso e absurdo de ser.

 

 

 

 

 

 

à D. Nair

 

Sob a chuva intermitente todas as estradas são iguais.

A experiência de deus em nós chegará ao fim um dia,

E serão mil sóis confundindo-se com esta neblina.

Escrever é experiência religiosa, é dar razão à nossa crença

De que o mundo melhorará e isso é sem volta

(Eternos afrescos da capela Cistina).

Servos de tudo e livres como poucos,

Pela fé assistiremos o batismo do Cristo.

Acreditaremos em Lutero, em Marthin Luther King

E lutaremos a ferro & fogo afoitos,

Feito ratos de laboratório.

Porque no município de Itinga, Minas Gerais,

Dona Nair sobrevive do barro:

Artesã de mão cheia modela vasos.

Tem vida modesta, agrária, precária

Na região mais pobre do Vale.

A sua fé assusta a si mesma.

Desconhece as letras, Gustavo Gutiérrez

E a Teologia da Libertação.

Padece de fortes crises de amor incondicional

pelos homens mas, "graças ao bom deus",

Hoje tem feijão.

 

 

 

 

[Poemas da série inédita "Odes Femininas"]

 

 

 

 

 

Dublê de anjo

 

o nu do papel me impele a ser duplo:

seduz sem música

e me sugere versos brancos

e admirar o outro e sair à noite

sozinho bloco caneta: um flâneur afoito

no papel (como pele) pelejo a neve

e a gordura dos dedos compõe o esterco

que mesclado à tinta e letra

transmuta palavras em poemas

que me atropele rabo de estrela!

porque o meu novelo de fé

é branco é seco um sol de abril em novembro

no papel ou na pele o que sou é você

e soa tão sucessivas vezes

que corro o perigo de não mais eu ser

 

 

 

 

(imagem ©eva z)

 

 

 

 

 

 

Anízio Vianna (Belo Horizonte-MG, 07/03/1971). Graduado em língua espanhola e mestre em Literatura Comparada (UFMG). Recebeu o Prêmio Literário Cidade de Belo Horizonte em 1996 com o livro Dublê de anjo (poesia, Mazza Edições). Publicou Itinerário do amor urbano (1998), e faz parte da antologia O achamento de Portugal (poesia, org. Wilmar Silva, anomelivros/Fundação Camões, 2005). Um dos escritores incluídos na antologia virtual sobre poetas afrodescentes organizado pela FALE/UFMG. Atualmente, traduz o escritor chileno Enrique Lihn. Tem poemas publicados em diversos sites, jornais e revistas do Brasil, Argentina e Espanha.