O ESTRANHO

 

 

Era um purista. Detinha-se atentamente por séculos nos galopes silentes das manadas selvagens. Bebia dos córregos em que a fundura não alcançava jamais a sede, e sangrava nos olhos pelas fulvas barbas dos trigais balançados pelo Zéfiro...

Os arados da mente esmagavam as leivas e diziam-se prontos os campos para os frutos do homem ao seu tempo aproveitados. Quando andava, flutuava como um anjo embriagado, e deixava um odor de estrelas quando passava pela escuridão antiga das cidades todas.

Havia seiva recente na ponta dos lábios, pulsações intensas pelo sexo como leões em caça ardente, mas se punha fora deste amor com uma ambição perigosa. Debruçava-se pela arte contemplativa e pela inclinação brutalmente filosófica.  Era um espectador que agonizava junto aos milênios despedaçados.

Conhecia todos os sentidos desregrados da matéria, o inútil e gigantesco impulso do espírito, conhecia a finitude das galáxias, as guerras últimas e a ciência futura da destruição, e ainda a miserável tentativa do desejo.

A impotente paz que levava em asas rasas e nos cabelos arruinados, o sopro na argila parda, a carne rebentada de esforços...

A que pacto diabólico despenhava as angras negras de suas pálpebras?

Que cor das palavras e lisura de modos, desnudavam-lhe os conhecimentos mortos?

Os portos inacessíveis, os pés longe dos canais sensíveis, os estertores do mar, espectador bizarro das regras sempiternas do celeste e do absurdo. Pescador de sentidos, animal torvo dos bosques vermelhos, preso a que juízo?

E tudo mergulhava o NADA, cisne, refolho, vida que se esfumava nas dores luzidas, passeio impudico das crianças soluçantes do inconsciente >>>

 

 

 

 

 

 

 

 

A MÚSICA

 

 

Porque Tu, Mestre dos mestres, e que reina entre os piolhos, ainda recende desta desgraça?

Porque vives com as mãos cheias de bálsamos distantes, se tudo o que te obedece é a casa dos Prazeres Perfeitos?

Se floresce de tua boca sempre desdenhosa, a centelha indefinível e o carvão devorado pelos caminhos das matilhas?

Correrão taças de absintho para todos, e todos se fartarão de verdes alucinações, e mesmos cobertos de êxtases pensarão em celebrar teu nome e a tua inconstância sempre melodiosa, o teu porte sempre talhado nas mãos, no sopro, nas cordas, nos trajes superiores onde te mantém intacto...

Quando exaurido destes aduladores vis, destas mulheres vulgares, destas princesas tediosas, destes livros incipientes, destes amigos mentirosos, desta forja de sensações, erguer teu braço viril de conquistador, ecoará então teu tambor furioso, tua ira de neves e fogos todos repassados, tuas colinas arejadas, teus castelos de sonhos, tua imagem de Amor Supremo e arrastarás todos os traidores pelas estradas escarpadas, chicoteará até a morte estes reis imbecis, e por fim, nu, se entregará a Maior Música, esta que se entranha como uma aguda água pelas fendas do incoercível

 

 

E escolherá Paganini como teu músico na Dor.

 

 

 

[Do livro inédito, Cavalos do inferno]

 

 

 

 

DO ESBOÇO À ESSÊNCIA

 

 

Eu me desprendia, muitas vezes, de meus dias no leito dos rios. Uma metade de mim, oculta nas águas, agitava-se a fim de superá-las, enquanto que a outra se elevava tranqüila e eu mantinha meus braços ociosos bem acima das ondas.

Uma inconstância cega e selvagem dominava meus passos.

 

Pacientemente, ardentemente, eu esperava tua vinda. Entresonos, igualmente ardentes, em sonhos amargos afogados de papoulas. Como a ceifa assassina do trigo virgem eu me encontrava soluçando nas portas antigas do começo. Eu tinha as mãos enxugando a fronte a face inteira o suor alagadiço, e o sangue vertido das manhãs da ausência... eu contei o quanto o amor havia se despedaçado desde os juncos de ouro últimos. Soletrei meus primeiros versos e como ordinários eu os achei. como ratos velozes eu disparava raios dos olhos, eu tinha o sangue seco como o pó.   estava inerte como o remo guardado no galpão, sedento das águas para atravessar.

Na última manhã, eu já havia partido de mim. amanheci com o coração puro.

como a quilha que corta as ondas.

 

Já não tinha mais os nomes.  de todos eles.  meus irmãos.  meus fraternos hipócritas, meus derradeiros dardos, minha beleza inatingível, eu os açodava. eu os mutilava a golpes de baioneta, o quanto derramei de pureza sobre os pútridos cadáveres, sobre as suas almas perfumosas de incensos e flores azulíssimas, já os amava, tanto quanto o tédio exposto das pedras dos Fortes.

Os golfinhos revoavam em minha cabeça, tinha extirpado as terríveis citações.

Os fragmentos, os aforismos, o pescador abaixava o rosto e me estendia as mãos calejadas como que me incentivando ao mergulho.  na hora fatal eu não divisei seus trapos dos do mendigo.  nem do deus que cuspia a semente esfiapada.  Na loucura da música eu tombei no bosque estriado de rumores.  eu cravei minha chaga na estrada vermelho-lilás.  um único vulto de bronze delatou a idade.  e eu voltei naquela criança inconsciente das cinzas.  a pira era a esfinge.  a esfinge a cruel asa da leoa esfomeada.  pedaços de meus braços voaram no pesadelo.   e por vezes o poço era mais raso que se supunha.  tornei-me o pintor daquela desgraça tão antiga.  e recente esperma ejaculado de Zeus.  eu esperava tua vinda.

Guardei todos os esboços obscenos.  Dos que falavam das partes íntimas.  das cópulas eternas e douradas.   Dos deuses que encharcavam os limites da estrofe.

Guardei todos os pobres livros da memória.  eu tinha poucos deles.  E miserável lugar para se guardar os melhores versos.  jovens selvagens, velhos sátiros, as ninfas do ócio, as bacantes e velhas idades do instinto, eu cruzava as ilhas murmurando as horríveis feitiçarias, eu já havia sido degolado pela arte soberba dos mentirosos, onde eles flutuavam livres.

 

Amanheci com a alma pura.  como a quilha que corta as ondas.  e de ti, ó enganadora, só contenta-me a voz   do outro lado do rio como um sopro revel de marítimas viagens, como uma máscara bestial, eu cavava bufando de ódio o teu cheiro salgado de carne.   fauno   doce menino.   fui acorrentado, pois colhia na hora proibida a fruta dos vinhateiros, e ao meu tropel invisível já ameaçava o sem-sabor da humanidade estúpida.

 

Veloz o mormaço do tempo.  um bafo ardente.  sem citações.  sem nomes.  Estaremos desta maneira sendo modernos.  cruel para com Deus.  Amoroso para com quem ama o vinho.  Uma vez mais estaremos dentro.  De nossa alma-ruína.  Mas a viagem só é real para quem confirma a sua sede destrutiva.  Nu, o peixe perdoou a fome do tubarão.  E os remos então giraram, e me lancei na procura de tua carcaça.  não espero mais tua vinda.  pois para mim, tu és a condenável adúltera.  procurarei os piores versos para ti.

E me dizes: — É louvável procurar e encontrar a menina ou quase mulher de fogo rajada, de uma doçura e inocência divina, a mais virgem e ingênua espécime feminil, que guarda todo seu amor para um único homem, de uma formosura e submissão fantásticas, que saiba de doar todos os dias com paixão renovada, que te prepare o melhor alimento, que te sacie a mais implacável sede, que te proporcione a mais linda paisagem da memória e depois dela, que te eleve aos sete paraísos perdidos, que te pinte com todas as cores a melhor têmpera de Géia, que te acorde mansamente com este lábio preciso, que te faça dormir harmoniosamente sob este sussurro, e que depois de todos estes milênios deliciosos, — passa a jogá-la no inferno mais impuro, na imundície, na sujeira mais abjeta, que a torne a mais viciada das putas, a mais brutal das assassinas, a mais vil das mentirosas, que possa fazê-la comer meu excremento, beber de todos os meus líquidos, de rastejar no mais infame lodaçal jamais revisitado, para depois com igual doçura, igual paciência e ardência, abandoná-la à pior sorte que possa existir.

 

Lento o violino no tempo.  sem arrependimentos.  é preciso encontrar a única melodia.  vai-nos vaidade afora.  sem vaidades.  sem amor.  é preciso ser duro. Amanheci com os membros puros.         como os remos que subjugam as ondas.

 

Caminhemos.  com o rumor voejando.  caminhemos neste bosque cruel.  Avante.  São tardias as respirações do monstro.  vou te encontrar menina.  Vou te estrangular, sonho vermelho de pulsos cortados.

 

Como são puras as minhas lágrimas, que horror!  Como posso assim chorar?  Não houve, ah! a bela união do amor!  Ah!  que parvoíces! Quão meloso é este quinhão, todos os seus estandartes, arpões, risos, canhões, todos estes marciais piolhos, avante, marchemos, vamos pulular de vermes e guerra esta terra ingrata!

 

Não houve, ah!  a bela união do amor!  esboços de barro em minhas mãos de mendigo! Chegarei à hora santa! chegarei contigo no altar sagrado do bendito! Chegarei estraçalhado eu sei, mas com aquele tom profético, com aquela veste adornada de jóias, com aquele porte de guerreiro, sou um samurai de sorte, disse uma única vez ao irmão.

 

Se só com as mãos foi possível isto, sim isto, meus versos de barro a te iluminar a face-centelha, o teu corpo magnífico, minha menina!

Pudera te esculpir na mais alta estrela, e contigo retornar ao pó.  e contigo viajar na única verdade.  Estaremos livres no amanhecer.  com os corações arfantes de bondade, com as maquinarias todas enferrujadas e distantes deste puríssimo amor, não houve, ah!  pestilentos atos, vamos coroar este rebento horrível sem alma.  Vamos chorar sob estes olmos vencidos de azeite e cólera.

 

Sou o deus das forjas.  Agora sei, tarde demais.  Encontrei a face da incerteza, o amor e seu duplo.  As águas.  o fogo.  adúltera mulher.  Meu título se estampa em meu peito traído por Hera.  Vem meu igual.  Hefesto.  Fogo nascido das águas celestes.  É bem dura esta hora a do sofrimento.

 

Vem, meu querido, com ouro e prata e bronze corromper o mundo.  Pois a BELEZA para nós, foi a fútil vingança dos deuses, e a ARTE a bela sentença do homem.

Estou vingado.  Zeus está morto.  Afrodite e Hera arruinadas.  Cheguei à hora de meu duplo e mais puro amor.

 

Encontrei mais que a ti, imunda menina, eu fumeguei o pranto na Sabedoria.

 

 

 

(imagens ©image source pink / nanette hooslag)

 

 

 

 

 

Anderson Dantas, gaúcho, mentor e colaborador do Grupo literário PÉGASUS, onde estudava literatura e psicanálise, pretende um fluxo aplicável entre a Arte e a Alma. Publicou os livros SCHATTEN, Gravuras nocturnas (EdUFSC, poemas) e A leveza de Leonardo (Insular, Novela). Possui uma dezena de livros inéditos de poemas, contos e novelas. Na web, assina o blogue Álbum Zútico e participa do blogue e grupo de discussão Língua Epistolar. Atualmente, mora em Florianópolis-SC.