Coisa de louco
Escrever é uma maluquice. Quem — senão um louco — pegaria numa pena (ou num teclado) e criaria um outro mundo ao invés de se adaptar a esse já criado? Criado desse imundo, não! Subalterno de imposições, nunca! Quando se é exilado de si mesmo parte-se logo para outras plagas, as do desterro da ficção. Ou não. De todo modo, não se trata de qualquer tipo de escrita, evidentemente, mas daquela que tem valor de escritura do traço que marcou primordialmente o sujeito. De uma autoria. E, conseqüentemente, do gozo obtido com isso. Escrevo para me estabilizar. Meus personagens são vis para que eu não precise sê-lo.
A literatura é uma tampa de ralo de banheira que se coloca, rapidamente, para que a água não escoe toda e deixe a gente a seco, nu, tremendo de frio, com a sensação de que o líquido amniótico se foi, escorreu (não se diz que o tampão se rompeu?) e o parto começou: vamos ter que respirar por conta própria, pagar essa conta, o ar entrando, queimando os pulmões. Sangue, suor, e (ainda por cima) sem cerveja. Sem ser, veja. Dor. Separação.
É uma rolha que tampona o buraco que é sempre mais embaixo — ou acima, não importa. O que há é que não se consegue determinar o lugar, seu espaço, seu diâmetro, o que se sente é a espessura de sua borda. É um risco que se borda (e se corre), que se segue, de um bordado, uma abordagem, no máximo. Um recorte num mapa, litoral. Literalmente. Sempre mente, só aí se chega (próximo, e olhe lá) à verdade: pela mentira. Literariamente também. E principalmente. É quando mais se mente: pela letra, essa inscrição de nossa mentira primeira, a fantasia. Literatura não é isso? Ilusão. Elisão da verdade. Qual? Essa. Todas. Que a vida não tem sentido, não tem objeto, não tem closura, boa forma, gestalt. A relação sexual não há, nada de metade da maçã, nem nirvana. Só uma banda, de cada lado: você pra lá eu pra cá, até quarta-feira.
E se não há nada que tampone esse furo, essa falta, nada que sossegue o leão, o facho, acho, então deveria servir literalmente (de novo) tudo. Mas nem com isso me satisfaço, com esse desfilar metonímico de objetos na cadeia significante. Que situação, que prisão, eu não! Prefiro a liberdade do criar. Do pensar. Do re-significar. Do inventar. Uma outra vida, mesmo que seja só no papel.
Domingo era dia de pescaria. Hoje em dia, é dia de virtual. Todo dia era dia de índio, agora, de aldeia global. Sem pajé. Falo de Internet. O falo da Internet. A Internet como falo. (Como falo, putz, pareço uma matraca!) Cair na rede (como peixe) pra não se sentir muito solto. Algo que dê lastro a essa insuportável leveza do ser. Domingo é dia nacional, internacional, cósmico de angústia, como se sabe. Se como — mastigando ou só engolindo — o 'se sabe' fico com o saber que angustia, esse despertar para a possibilidade de liberdade. Sem a prisão do trabalho, do estudo, de (alguns dos) relacionamentos obrigatórios. Com a soltura do tempo escorrido. Da alforria. E, tal qual um escravo, não sei o que fazer com isso. Ainda. Sempre. Nunca. Dá um vazio...
Igual a Adão e Eva depois da expulsão do paraíso. Por isso a gente vive dizendo: Para iso. Digo, pára isso que eu quero descer, tá muito estressante, me arranja um calmante, porque sem a cachaça ninguém segura esse rojão. Isso é livre-arbítrio. Não quis provar do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal? Decidir? Optar? Quem mandou? Agora agüente. Melhor quando se era criança, tutelado. Ou pra quem acredita em horóscopo, tarot, búzios, vidente: tudo determinado. Previamente. Viu? O previa também mente, mas me engana que eu gosto. E preciso. De controle. De conclusão. De limite. De fim, da história.
Seis
Daria as vidas que lhe restam
por minutos
em seus braços
Cinderela
sem queixume
à meia-noite
de volta pro borralho
Mulher-gato
retornaria
todo dia
só pra lamber sua boca
de Batman
Cravaria o gatázio em sua carne:
quem sabe alcançaria
um coração
no peito?
Pois quem gateia é ele
foge
negaceia
brinca de gato e rato
Diante disso
ela se contenta
em gatafunhar seus escritos
Poesia do real
O impermanente, eternizar
a infinitude, aspirar
sonhar
que a morte nada mais é
do que uma porta giratória
pela qual se vai, continuamente, dar
no mesmo lugar
o que poderia me fazer calar
me faz cantar, digo, escrever
esse canto, mesmo com espanto
que sai do meu bico
esse mito que invento
para não desistir
para não ter que encarar o nada
torno-me alada
e no céu da história
plano
transformo música em letra
traduzo, verto, translitero
pego o real pela cauda
e lhe dou um brilho
de estrela
tomo os excessos que escorrem
selvagens
como espuma no corpo
e os faço miragem
oásis em solo deserto
o mesmo real que, parece
partiu minha vida em metades
minou vontades
desenha uma nova imagem
e faz renascer o que não quer morrer
para sempre
estranha e súbita conversão
a arte, essa desconhecida
visita a perfumar o calabouço
onde há pouco pensava eu
cortar o pescoço
outro ser nasce diante de mim
ou o descubro, não sei
no final (a operação/batalha é vital)
atravesso o espelho
e ganho a guerra
de novo a desabrochar
a flor do desejo
aquele muro onde me recostava
no escuro
visitando sepulcros
mesmo prenhe de saudade
emoldura agora um futuro
instantes dissonantes
corpos mortos, em lajes frias
dobrados, como sinos
em bela sinfonia
pura harmonia
e eu que pensava não saber
o que fazer
com aqueles restos
de repente via, ouvia
tudo mudar de lugar e de sentido
a poesia se fazia
falei em calabouço? A liberdade
seu germe, por paradoxal que seja
lá está: na prisão da verdade
não nas tontas e vaidosas
mentiras prontas
(imagens ©jason reed, ryan mcvay e chad baker)