DISSIPAÇÃO

Cruzei as pernas e senti uma serpente fria passar por baixo dos pés. Um raio cortando o muro e as unhas que eu limpava planejando a chuva que devia ser às três. Você ao meu lado esquerdo, diabo dos sonhos e deus — vida. Peguei o guarda-chuva pra tapar o sol. Corri umas léguas até suar o pensamento. Volta e meia, lá estava o café quente brigando com o cinzeiro sujo: noites mal dormidas, mal lavadas. Resolvi sentar e roer o resto das unhas. Sangrar umas tapas... Gargalhar. Verdades precisas, pungidas. Queria umas moedas. Trapos na esquina mendigando corpos, bocas, seios, vida.

What's the matter Mary Jane?

O raio a serpente subindo a cabeça, planejando armações se condensando em lágrimas. Eu mona fingida. Você tutor arrastando minha coleira. 

 

 

PÉ DE IOGURTE

Tem dias que realmente tudo te faz sombras. São as folhas que caem sobre o telhado. O mudo que passa gritando e manda que todos se escondam antes que ele te dê uma cacetada. É o ladrão que te segue e você corre, corre, perde o equilíbrio e cai num canal cheio d'água suja. Escuta vozes distantes em câmera lenta. Acorda com o lençol na cara e pensa no iogurte que te espera na geladeira. E ele te faz ficar com uma sombra enorme, uma verdadeira árvore de copa grande.

Então chega o menino e diz que você é tudo o que sempre desejou. Oh, um oásis? Nesse caso, mudando para a primeira pessoa, eu fico de cara pra cima, fazendo cócegas nas costelas. Enrolando os cachos, esperando um milagre dos céus. Pobre, pobre sou uma pessoa pobre. Bem pobre no sentido pobre de dizer, entende? Enrosco com os braços uma cabeleira e faço cafuné. Quem não tem o que receber melhor dar — filosofia pobre de vida.

Claro, se digo o que não vou fazer, desconfie. Não exponho tão facilmente minhas intenções. E sou tão normal, n o r m a l. Normal no sentido previsível de dizer. E quem for tão quanto sou, entenda. Minha mente gira com as sombras. O iogurte, o rosa — choque. O peito sufocado de tanto nadar. Esse povo me chamando, essa água preta, esse ladrão, esse mudo horroroso. Dê um N de presente ao mudo, ele merece.

E eu. Invento. Recrio o que passou todos os dias. Olho a inércia. Olho os desejos ocultos. Olho todos os meus caprichos irrealizáveis. Minha ficha perigosa. Minhas fotos 3X4 de olhos arregalados. E a banca que o mundo faz para você. Banca no sentido zombeteiro de dizer. Toma banho, lava cabelos, come milho, escuta uma música legal. A tarde se foi, e ninguém apareceu pra te distrair. Só o lençol que cobre a cara e esse túnel do tempo. O iogurte...

 

 

NO SEBO

Folheio um ou dois livros rapidamente, evitando bater a lâmpada da mesa, na cabeça. Aquele anexo embaixo é um vulcão sempre disposto a espalhar sua larva quente.

Se baixo os olhos, direto pra cratera cheia de escadas, vejo uma garota feia, gorda e cinzenta, vestindo uma lingerie branca, minúscula pra seus quilos de gordura. Ela vem em minha direção e das outras pessoas que estão sentadas por lá. Faz seu stripper ao som de um flashback estridente. Que raiva ela me dá. Ao sentar no meu colo borra o esmalte fresco. Sai deixando a marca vermelha por todo o piso. Um calor infernal. Não sabia se aquela fumaça era o cigarro da noite ou a poeira das pilhas de livros por todos os cantos.

Tenho me enganado. A marca vermelha era apenas o piso cimentado muito antigo, daqueles que se levam muitos escorregões até a adaptação. Uma vila. A casa com batente alto. Vários cômodos nunca percorridos e móveis espalhados. Pessoas com olhos verdes me abraçam e falam de um parentesco de outros tempos. Já não sei quem sou eu. Ela chega bem vestida, mais magra, alta, cabelos tingidos. Pega minha mão e me guia até um quarto. Observo rapidamente e percebo que além de nós há duas camas e um guarda-roupa caindo aos pedaços. Conversamos sobre coisas amenas. Eu não estou ali.

Da cratera saem pequenas faíscas. Não consigo mais enxergar. Nem a garota, nem os outros. O que fazer? Todos os livros caminham em filas... Só me resta ir atrás.

 

 

DE ALMA E IPÊS

Traria um. Dois, se possível: litros de pinho e água. Há dias que Bea não cheirava bem. A impureza da vida. Sim, a vida de Bea. Vez em quando perdida em palavras. Andava andava sem chegar.

Algum dia — pensou Bea. Jasmim e oliveiras, algum dia. Eu vi aquele ipê amarelo. Aparece sempre nesse calor de fim de ano. Se fosse mais pálido esfriaria um pouco. Só que se fez amarelo ofuscante.

Bea míope, chorando, tapando o nariz. Rasgava carne, bebia sangue, batia nas grades a alma. Alma de Bea presa, dura. Precisava de socorro. A diferença é que se via muito bem por dentro, enquanto os outros ficavam por fora, abrilhantes com os amarelos. Ela via fundo quando estava só. Traria um. Não. Quatro objetos: rodo, vassoura, balde, pá. Queria se partir. Lavar um por um dos cacos. Colar com superbonde, mas em outro lugar. Talvez onde se tocasse Mozart e os ipês fossem roxos. Bea.

 

 

BIBELÔS

Sei lá. Estava lá entre os dois. Não era só uma. Eram outras. Aquele bibelô francês ou japonês que ganhara no Natal. Edu e eu. Falávamos de idades trocadas. Na verdade eu mais que ele. Eu tinha vinte e ele dois. Mas queríamos o inverso. Eu.

Quando Edu pegou o bibelô espatifou no chão. Então lembrei do limbo. Um barquinho subindo rio acima o fogo. Às vezes os dias são amarelos quase beirando o incolor. Indolor também? Sim este.

E se tocasse um tango? Não poderia. Hoje não há asas para flutuar sob as nuvens. E porque não uma sinfonia? É pode ser. As noites estão vazias de solidão. A embriaguez é nada exuberante quando se está fora dela.

 

(imagens ©malaryz)

 

 

Amanda K. (Cajazeiras-PB, 1985). Formada em Direito pela UFCG. Ficcionista, inédita, participa do Bagatelas! e edita o blogue Verdura.