A FARSA DO AMOR


1

olho seco de cobra
morta —
              chuva muito fina
              agulhas
              na carne viva

& você diz Amor
(velha senha secreta)

              lambe as feridas
              com língua de lixa
  
& tranca o trinco da jaula


2

não tente esse truque
outra vez

seja mais suja
meu doce amor

espete um alfinete
no olho do gafanhoto

toque fogo
nas asas de um anjo

capture vivo um ET
& o leve a um talkshow

mas não tente prender os lobos
quando for lua cheia

 

 

SIGNOS EM CONVULSÃO

flores
precisam de água

coelhos
gostam de folhas de couve-flor

humanas
confusões de signos

explosão de gaseduto no cairo
centenas de feridos em atentado no metrô de londres

o público alvo do jô onze e meia
américa — terra de bravos

as abelhas que pousam nas uvas
não são clones de abelhas

um bilhete no e-mail do superpateta
poeta das perdidas ilusões

ilusionista, domador de leões
amante do bom vinho

e das mulheres que uivam na lua cheia
ronrons de fêmeas, gemidos

alquimia de salivas, miados
cheiros, imagens

sem replay

o rio que passa na minha cidade
está poluído

em quais camas as grandes cópulas douradas?

um boeing me coloca diante das ondas do mar
marolas, maresias

frutos de flores marítimas
deuses do ar, deusa da água

o fogo arde a raiz das árvores
línguas de lesmas, húmus

nada que não finja
beleza que não finda

mesmos crisântemos
florescendo
na lâmina da espada

um facho de lua
sobre as pétalas
do jardim

 

 

ORQUÍDEA DO BRASIL


vívida
carícia de pétala
na aspereza da fala

no deserto da pele
pluma de outono
lívida

a orquídea
desabrocha
:
carnaval no céu de lata
veludo sobre a rocha

 

 

OLHOS NEGROS NO ESPELHO


aqui o espelho
se embaça, negra
noite, rumor
de vidro, brilho
falso
:
& no gás paralisante
do silêncio — entremim
e o próximo
instante — algo se diz
farsa, alga
sob a água, se finge
estrela, onda
(olhar que não
se cumpre) onde
lume o laser
da íris, meu amor
infravermelho
sucumbe
ante o esforço
do corpo
desmaiado, antes
que a lágrima
desfaça
o último suspiro de um deus

 


SESSÃO DA TARDE

lâminas de gelo
flutuam
no azul) mugido
inaudível
de um mito, mijo
de Minos (um breve
descanso
e o olho vê; sem
susto
:
um búfalo
branco
lacera a jugular
do cavalo
marinho —
não, não búfalo:
demônio — não
demônio: urso polar
— não e sim: todos,
búfalo, demônio,
urso polar,
cavalo marinho,
existem
e não existem
neste fugaz espetáculo
de nuvens, sucessão
de metamorfoses
no céu claro
desta terça-feira
(21.09.99)
perdida num átimo
de milênios

 

 

NA COMPANHIA DOS CÃES SEM DONO

trilhas de folhas verdes  
             tantas vezes pisadas
    e sempre frescas
parece cinema mas é só a vida
    um rápido gesto e tudo se modifica
sílabas bêbadas voam pela casa
    batem nas paredes
             libélulas de fino vidro
    miragem de sentidos
as luzes do aparelho japonês
             sinalizando vertigens
beats selvagens de um baterista kamaiurá
   chimbaus, bumbos, timbales
            no eco dos tímpanos
sob uma cortina de fumaça azulada
   os pulmões chiando
            chaleira cheia ao fogo
   transbordando
             águas de noites malucas
quantas pontas passadas
             e vozes vindas do escuro
alguém explicando como pisar em ovos
             sem quebrá-los
    chistes, chispas, satoris —
              de qualquer ponto começa-se
    um improviso
de qualquer lugar para outro & outro & outro
             até que não se saiba mais
como voltar para casa

 

 

5 DIAS PARA MORRER


            para Hector Babenco


morreremos loucos, Ana

os sapatos  
novos
em cima da mala
mala notte
o dia, a pior
foto: olhos úmidos
no vídeo
flashbacks:
a virilha imunda 
do marinheiro
os eletrodos frios
nas têmporas
as pílulas coloridas 
peixes
num aquário
cujo vidro
quase se quebra
toda vez
que o tocamos

sim, Ana  
morreremos loucos
mas
esta noite
dormiremos
juntos

 

 

TRUFFAUT NO HOTEL INGLATERRA

jules
jeanne
jim

não liguem
pr'essas falas

frias

(há sangue
demais
nas lâminas)

— lá, onde
o quando é além,

a água
espessa
se move

(latas
de cerveja
vazias)

 

 

TALVEZ A LOUCURA MANDE UM CARTÃO POSTAL


perfeitos estranhos
pássaro com asas incendiadas

sim, chegamos à beira do penhasco
cego sem asa-delta

salto no riacho de uísque e cubos de gelo

leões famintos no zoológico urbano
mordem as próprias orelhas

não, ninguém responde a campainha
fantasma com guizos

apago todos os arquivos do cérebro

jatos explodem nas janelas dos edifícios
kiwis embolorados na porta da geladeira

talvez uma estrela caia dentro do copo
talvez a Loucura mande um cartão postal

bombons e duas garrafas de licor de damasco

 

 

RAIVA É ENERGIA


                     para marcelo montenegro


a máquina que move o mundo, o tilintar
de moedas virtuais, cartões de crédito,
senha bancária, fobias sexuais, papos de velhos
sapos peludos, papudos otários dando
de espertos, mirando a terra como campo
de erros, onde crescem heras que enfeitam
os muros, enquanto monturos de gente
azedando no lixo, emporcalham a festança
dos donos de seguros, como se a vida fosse algo
seguro, como se estrelas não se acendessem
no escuro,

 

 

IEMANJÁ, AFRODITE

A leoa tomba sobre a lua
refletida na areia, cabeça entre patas.

Noite suspensa pela sombra de Urano.

Quente, como uma placenta,
o oceano envolve minha nudez,

lambe, com sua língua de ondas
a pele sanguínea do meu pau

— carícia forte e feminina —
o corpo freme, teso
se contorce — molusco de um deus atlântico

A lua eriça um facho prata
na escama das águas. Rugido felino,

invejosa.

— espuma espessa, branca,
gozo de colossos:

líquido que sai do meu corpo
e entra no corpo do mar


praia brava, abril 94

 

 

RAIO X

sensibilidade à flor da pétala
    escuto o estalido de estrelas distantes
rotação de azuis, labirintos, esfinges
    levo um lero com deus puma
animais da floresta me escoltam
    do gavião aprendo o vôo
da leoa a astúcia do bote preciso
    a corrida mágica do leopardo
o pavor do coelho nas garras da águia
    estico, encolho, disparo um chapéu de couro
no peito da sombra que me cerca
    não desprezo inimigos, meus amigos
eu mesmo escolho
    entre os anjos e ETs que o acaso rege
com eles festejo um novo reino
    sem rei, sem lei, a não ser
as delícias da poesia
    asas leves de sanhaço
sonho meus sonhos, caminho pelas ruas
    assovio velhos blues, belas baladas
não esquento se o vento me despenteia
    me viro, me safo, me invento
danço um tango com a chuva
    travo a língua, beijo as fadas
gosto dos sons de peles se roçando
    afago aqueles que amo
me deito em qualquer leito
    medito, reclamo
manhoso, maluco, pateta
    às vezes me estranho
batalho, desvio das balas, me ganho
    jade de macho manha de fêmea
um moleque erê deus menino
    capeta safado, serafim encapetado
eu sou apenas um bardo
    bêbado
vertendo o vinho da vida
    gota a gota
comendo as folhas da vida
    uma a uma

 

 

CAVALA


            para antonio risério
            e maria angélica abramo


lá, onde os dedos são grossos galhos
percutindo o couro dos animais
& as palavras dissolvem-se no ar
antes
de vestirem a couraça dos significados

lá, onde sóis azuis
luzem a noite inteira

lábios sorvem o suor
sede de saliva — a espada
rompe o espelho

o sangue ferve, febre
vapor quente nas narinas

— possuída, ela convoca éguas
luas & golfinhos

cascos tinem
um estranho batuque

ranhuras na pele — unhas
de lontra
cravadas nas costas

rainha dos raios
a xota risca fogo
nas savanas

.....

assim é
o amor da cavala
riscos
rasuras
talhos de gilete

tratados com pétalas
de lírios selvagens

 

 

ORAÇÃO A DIONISUS


deus salve a deusa buceta
e inche com sangue o caralho dos meninos

deus salve o deus cu
e encha de sangue o caralho dos meninos

deus salve os dedos, os grelos
as bocas, as bundas & os pêlos

para que não falte amor neste mundo
para que a vida viva neste mundo

 

ANTI-ODE AOS PUBLICITÁRIOS
(DE UM GUERRILHEIRO MORTO EM COMBATE)


querer eu quero
que vocês morram

sufocados em nuvens
de inseticidas

talvez limpóis, bombris
e bemdefuntos

como baratas que comem
as próprias patas

olhos vendados
com vendas garantidas

e uma estaca
cravada no prepúcio

assim eu possa
propagar em outdoor

a dor de um jovem
promissor e sanguessuga:

aqui jaz um bom rapaz
cuja vida se reduz a um anúncio

 

NOTA: Poema especialmente dedicado aos publicitários que usaram a imagem de Ernesto Che Guevara (morto por balas de metralhadora, no meio da selva boliviana) em anúncio do detergente Limpol, no ano da graça de 1.998.

 

 
 
 
DESCIDA AOS INFERNINHOS
 
 
I
 
eureka — grita o poeta
achei meu estilo, traço rude de fino tino,
quer dizer, daqui detrás dos montes
vai ser ferro na perereca
cuspe seco, pedra cabralina
sinalização de pista de aeroporto
fox-xote caboclo muito louco
paulista neurótico de férias em amaralina
& que se ferrem as fadas
sóis de gelo de falas delicadas
não, vai ser na porrada
verso cortado a facada
bucho de bode, rixa de galo
poesia que bebe a pinga no gargalo
poeta maldito será o benedito
príncipe nefasto das noites de blackout
& assim sendo segue a ladainha
bandeira à meio pau o poeta arreganha a bainha
e sapeca mais uma, assim, digamos
descabela o mico,
enquanto sonha que enraba as ninfas
& bebe o vinho na boca das musas
 
 
II
 
cansado da palavra polida
hímem rompido da beleza clássica
o poeta talha o verso com pedra lascada
primata astuto, ladrão convicto
despedaça pétalas, arrebenta rimas
imola virgens, deflora rosas
segue viagem com um guia cego
desce aos infernos, aos inferninhos
gilete nos dentes, entre travecas e putas
disputa a tapa a taça de cicuta
lambuza os lábios, descobre aos trancos
o mesmo gosto do nobre vinho das festas finas
 
 
III
 
quisera o paraíso, sim, quisera
mas só anjas trapaceiras encontrara
uma tocava harpa, outra cravava os dentes
sacanas amantes dos banqueiros
peles ardentes de sóis tatuados
sóis negros, céus delirantes
sugando esperma em troca de dinheiro
vulgares em suas rimas ricas
musas de luxo na corte das artes
carne a la carte, poesia em postas
máscara bem moldada ao talhe da face
técnicas, sem dúvida
mas sem as dádivas e com eternas dívidas

 
 
OLHOS ELÉTRICOS
 

ponta de pedra aguda
faces rasgadas, bétulas amargas
 
você me diz psiu, violência
no jeito de piscar as pálpebras
 
pássaros tristes entre cães aprisionados
enfim vivemos num cenário
 
onde crianças com olhos elétricos
vasculham os bolsos de lady solidão
 
musas sádicas me acariciam
com unhas de gilete
 
lábios em carne-viva, mil beijos
de medusa — stripers que após a roupa
 
arrancam a própria pele
 
e você vira as costas, arrasta-se
como um mamute pelo corredor
 
arremessando um "boa-noite"
que me acerta em cheio na testa

 

(imagem ©edward munch)

 

 

Ademir Assunção nasceu em 1961. É poeta, jornalista e prosador.

Publicou LSD Nô — poesia (São Paulo, Editora Iluminuras, 1994), A Máquina Peluda — prosa (São Paulo, Ateliê Editorial, 1997), Cinemitologias — prosa poética (independente, 1998), Zona Branca — poesia (São Paulo, Editora Altana, 2001) e Adorável Criatura Frankenstein — prosa (São Paulo, Ateliê Editorial, 2003).

Integrou as antologias Outras Praias/Other Shores — poesia (São Paulo, Editora Iluminuras, 1998), Na Virada do Século — poesia (São Paulo, Editora Landy, 2002), Passagens — poesia (Imprensa Oficial do Paraná, 2002), Geração 90 — os transgressores — prosa (São Paulo, Editora Boitempo, 2003) e Paixão por São Paulo — poesia (São Paulo, Editora Terceiro Nome, 2004).

Participou também das antologias internacionais Pindorama: 30 Poetas de Brasil, (Revista tsé=tsé, nº 7/8, Buenos Aires/Argentina, 2000), New Brazilian & American Poetry, (Revista Rattapallax 9, New York-EUA, 2003) e Perfectos Extraños — Seis Poetas de Brasil (Revista El Poeta y Su Trabajo 15, Cidade do México-México, 2004).

Letrista de música popular, tem parcerias gravadas pelos compositores Itamar Assumpção, Edvaldo Santana e Madan, e pelas cantoras Maricene Costa, Patrícia Amaral e Titane.

Jornalista, trabalhou como repórter e editor de cultura nos jornais Folha de Londrina, Folha de São Paulo, Jornal da Tarde e O Estado de São Paulo e na revista Marie Claire.
 
É um dos editores da revista literária Coyote, junto com os poetas Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak.

Mais no Zona Branca (site pessoal) e no Espelunca (blogue).