Ah, o sentido de humor… Não há sujeito que não se sinta apoucado
se lhe disserem que veio ao mundo desprovido dele. E a ser exacto
o livro que me caiu há pouco nas mãos, onde se lê que o sentido
de humor é uma variante do senso comum, qualquer coisa, portanto,
que se partilha e apenas faz sentido se partilhado, então deve ser
eminentemente social — dotado embora de certa racionalidade difícil
de discernir —, comunicativo e até amistoso. Parece verdade. Um
jantar de escritores, por exemplo, quando não resvala na maledicência,
corre melhor travestido de sessão de anedotas: de judeus ou alentejanos,
racistas ou homófobas, políticas ou sexuais, com o presidente Bush
ou papagaios, as anedotas unem o povo presente, elevam-no acima
(ou abaixo, passe o contra-senso) da circunstância, e assim o tempo
passa e com ele a precariedade das vaidades, a instabilidade dos
afectos, o veneno das rivalidades… Senso comum, portanto. E portanto
não. Aparece sempre o sensaborão que não acha piada a nada, muitos
protestam que o humor tem limites, e alguns outros, talvez menos,
obstinam-se em impor-lhos. Respeito e gravidade, com coisas sérias
não se brinca, e por aí fora.
.....Tretas, claro. A verdade é que apenas se brinca com coisas sérias,
e por isso mesmo o humor fere, melindra, vulnera, e mais vulgarmente
diz-se que corrói. Por isso mesmo ainda, há humor indefensável, por vezes
funesto, e não apenas uso indefensável do humor — racista, xenófobo,
preconceituoso, agressivo. "Não é o chiste rasa coisa ordinária", escreveu
Guimarães Rosa em texto de título assaz drolático, "Aletria e
Hermenêutica". As pilhérias fazem rir porque interrompem a relação
familiar com o mundo e redescrevem-no com observações clarificadoras: nuns
casos, para depois reinstalar a ordem vigente, e é quando o riso se faz à
custa do(s) outro(s) e agrega o "nós" em homogeneidade familiar e
superior; noutros porém conseguem dizer que as coisas são como são podendo
muito bem ser de outro modo. "A vida é assim, mas eu não concordo", dizia
alguém num livro famoso. Esta insuperável oscilação entre consenso e
dissenso faz do humor um emprego estável. (Um viajante chega de noite à
entrada do bairro judeu e encontra sentado numa pedra um homem magro,
cheio de frio, muito molhado. Pergunta-lhe .o
.que .faz .ali, .e ele
responde: "O meu trabalho".
"E que trabalho é esse que o obriga a apanhar chuva e passar frio?". "Ora
— responde ele —, estou à espera do Messias, para poder avisar os outros
quando ele chegar". O viajante continua curioso: "Deve ser bem pago, esse
trabalho…". O outro: "Não, não me pagam nada". "Então devem ter-lhe
respeito e cobri-lo de honrarias…". "Qual quê, todos acham que sou
maluco!". "Mas, então, porque o faz?". "Ora, é um emprego
estável…".)
.....Outra conseqüência daquela oscilação: a mania de discriminar o
humor "saudável" do nefasto, operação que decorre quase sempre do intuito
de o reprimir indiscriminadamente. Nem sempre porém, e convenhamos que a
distinção revela-se ao cabo indispensável. Não há qualquer razão para
julgar o humor imune ao riso alarve; um carrasco pode ter muita graça, e
ocorrem os polícias motejadores no momento da multa, tão certo é que a
superioridade resguardada produz por vezes razoáveis comediantes. Daria
imenso trabalho destrinçar espécies e categorias: chiste, pilhéria,
facécia, motejo, chufa, galhofa, chalaça, remoque, zombaria, troça, mofa,
escárnio. Camilo, capaz de tirar efeitos pilheriáticos de uma construção
sintáctica, abominava a chalaça, que reputava forma portuguesa: "o estreme
espírito português, por mais que o afiem e agucem, é sempre rombo
e lerdo: não se emancipa da velha escola das farsas: é chalaça".
Ou, noutro local: "Há aí um gargalhar que a ciência denomina 'espasmo
cínico' ou 'de cão', um exibir das arcadas dentárias até aos côndilos. É o
caretear bestial da canalha. É o que os ingleses chamam 'rir de cavalo'
horse laugh. Há também o rir, chamado 'sardónico' — o rir duns
que comeram o fabuloso rainúnculo da Sardenha. Ora entre nós os que desta
arte destampam gargalhadas não comeram rainúnculos: é gente embuchada de
feijão branco e orelha de cevado. Essa hedionda deformidade caracteriza
estupidez quase sempre malévola; corresponde ao espojar-se, se o rir é
meramente bruto, e ao escoucear, quando é bruto e mau.» Logo a seguir, uma
lista dos que "não riram assim": Demócrito, Aristófanes, Esopo, Marcial,
Petrónio, Aretino, Gil Vicente, Erasmo, Sterne, Rabelais, Charron,
Molière, Voltaire, Tolentino, Byron, Heine. (Eça, que tem reputação de
profundo, também escreveu, acho que em 1891, um artigo intitulado "A
Decadência do Riso", no qual lastima o desaparecimento da gargalhada,
substituída pela ocasional casquinada ou cascalhada. Mas, tendo reputação
de profundo, Eça não se perde a distinguir um riso do outro, declara-o
logo todo extinto, e não por efeito de condição portuguesa, mas de outra,
quase universal: a civilização. Quanto mais civilizados, mais tristes,
escreve: "O único homem sobre a Terra que ainda solta a feliz risada
primitiva é o negro, na África. Quanto mais uma sociedade é culta — mais a
sua face é triste". Se calhar, já então aperfeiçoava o Jacinto, que
reaprendeu a rir nas berças. E tem reputação de profundo.)
.....É
o diabo, isto do humor: nunca sendo inofensivo, pode ser moralmente
ofensivo e tornar-se literariamente irrelevante. Vá lá um homem saber onde
passa o risco que convém não pisar. Como quer que seja, é sempre mais
fácil desqualificar o chiste do que a tirada séria: cronista que mace os
leitores com o muito que sofreu quando lhe morreu, digamos, o cão, recolhe
aplauso a que nunca poderá aspirar o mais inventivo difusor de pilhérias.
A comparação, aliás, vale para os poetas. Olhem o caso do modernismo
brasileiro. Poucos aqui o sabem, mas produziu assinalável caterva de obras
e eventos droláticos, a começar pela própria Semana de Arte Moderna. Não
há compêndio de história literária que não arrole o humor entre as
principais conquistas (notem o termo: conquistas) alcançadas. Uma dessas
invenções chama-se "poema-piada", com cultores de muita monta: Oswald de
Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, para só referir os
maiores. Eis um deles:
POLÍTICA LITERÁRIA
O poeta municipal
discute com o poeta
estadual
qual deles é capaz de bater o poeta
federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do
nariz.
.....Encontra-se
no primeiro livro de Drummond, Alguma Poesia,
de 1930; pode não ser o melhor exemplo de "poema-piada", mas distingue-se:
no livro aparece dedicado a Manuel Bandeira, o qual, pilheriático,
terá comentado: "Do nariz, tiro o que toda a gente tira". Pois bem,
referindo-se a este livro, uma das testas do movimento, Mário de
Andrade, escreveu esta coisa afrosa: "Mas onde a inteligência prejudicou
o poeta e o deformou enormemente, foi em fazer ele aderir aos poemas
curtos feitos pra gente dar risada, o poema-cocteil, o 'poema-piada',
na expressão feliz de Sérgio Milliet. O poema-piada é um dos maiores
defeitos a que levaram a poesia brasileira contemporânea. Antes
de mais nada, isso é facílimo: há centenas de criadores de anedotas
por aí. Acho mesmo que os poemas-piadas (Manuel Bandeira também
caiu, às vezes, nessa precariedade) são a única restrição de valor
permanente que se possa fazer a Alguma Poesia. Culpa integral
da inteligência. Da inteligência incapaz e fatigada ('vou-me embora
pra Pasárgada!…'). Não é mais humour. Não é ainda sátira.
Não creio que esses poemas possam adiantar qualquer coisa ao poeta.
E por eles será aplaudido nas rodas dos semi-literalizados das academias
e cafés. O que é positivamente uma desgraça".
.....Mário de Andrade não
era de todo sisudo. Pintou a manta muitas vezes, mormente no Macunaíma.
E neste mesmo artigo, antes da passagem que citei, havia outra mencionando
quatro poemas de Drummond que seriam "da melhor poesia de humour"
num livro em que "a todo o instante se topa com notações humorísticas
excelentes". O poema-piada é que não, e a recusa mal se entende,
pois seria o humor concentrado, arriscando tudo na concisão da forma
e na vulnerabilidade do efeito. Ou então tome-se o gesto como discriminação
recriminadora: aqui o bom humor, ali o mau, aqui o que engrandece,
ali o que apequena.
.....Mas culpa integral da inteligência? Não se adequa a observação a
esta outra, também curiosa: as anedotas não prestam porque são facílimas
e há centenas de anedotistas. Ora isto mais bem e depressa se aplicava
aos poemas! Qualquer um faz poesia, vê-se por aí, mas quantos são
capazes de inventar uma anedota ainda medíocre? O mesmo Mário de
Andrade publicou poemas que qualquer "semi-literalizado" faria,
mas quando precisou de anedotas para o Macunaíma teve que
copiá-las de compilações etnográficas! Ademais, as anedotas não
têm autor, nunca se sabe se resultam de centenas de pilheriáticos
ou de um só, que se esfalfa no segredo a produzi-las todas sem glória
nem outro proveito. A invenção da anedota é uma arte difícil, mesmo
impossível, porque ninguém as inventa ou são inventadas por ninguém.
.....Dizia Guimarães Rosa no texto citado acima que a anedota "escancha
os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões
para mágicos novos sistemas de pensamento", e assim denunciam ao
mesmo tempo "a goma-arábica da língua quotidiana ou o círculo-de-giz-de-prender-peru".
Nem mais, ou isto basta. Em conformidade, para droláticos e pilheriáticos,
não há senão reclamar liberdade total. De pouco mais precisam.