I

 

 

mande dizer que estou triste

isto, que estou triste

com uma tristeza comprida

bem no meio das pernas

uma tristeza seca

uma tristeza apertada pela falta de ar

uma tristeza que se desmancha em sonhos

que fazem vergonha à mãe que me acorda

mande dizer que não adianta insistirem

que quero a apenas um homem

apenas a uma mulher

apenas uma única pele preta neste mundo

mande dizer que eu não quis dizer coisa alguma

que eu apenas olhei como quem não queria nada

chorando sem lágrimas nos olhos

mande dizer que eu, quando perguntada

[fiquei em silêncio

que somente botei em cima da mesa

este poema que escrevi

totalmente em branco.

 

 

 

 

 

 

II

 

 

eu imaginei que

no dia que eu chorasse na sua frente

de não poder mais

você me poria no colo

consolaria minha dor

mas não

você se chateou com meu choro

começou a chorar também

a dizer que eu me zangava com tudo

eu te pedi desculpas

disse que ia melhorar meu humor

limpei suas lágrimas com a língua

quando elas tocaram sua boca

o gosto era tão amargo

que mais tarde eu vomitei

é incrível como eu fico invisível quando estou ao seu lado.

 

 

 

 

 

 

III

 

 

amanhã quando eu acordar

já de tarde quase noite

tenho certeza que será

impossível levantar

que haverá algum

peso racial inacreditável

me botando contra a parede

me espremendo

tirando água barrenta de mim

feito pano de chão quando se torce depois de um dia de faxina

me fazendo chorar

como se eu fosse a responsável

por matar a sede

de todas as crianças do mundo

tratar com soro suas doenças

meio salgadas meio doces

pois eu que não choro

não tenho água para dar

não vou chorar

não vou chorar

a água é minha e

eu também tenho sede

não vou chorar.

 

 

 

 

 

 

IV – Homônimo

 

 

estupro não é uma palavra

que eu trate em verso

mas apenas em prosa

 

é esse assunto que exige

o mastigável, liquefeito, processado

papinha de micro-ondas

 

ninguém quer ver estupro

saindo da boca de bebê

nem de idoso

muito menos de boca de pastor

no meio de uma oração

 

não se diz bom dia com estupro

nem boa noite, eu te amo

bom te ver novamente

 

estupro não aparece em música

em performance artística

quadro de parede

 

não aparece estupro, inclusive

em livro de escola, no primário

secundário, universitário, magistrativo

 

estupro não aparece no hino nacional

no à bandeira, menos ainda

em comício nem proclamação

jamais aparecerá, que esteja registrado

 

anteontem era natal

ontem, carnaval; amanhã é páscoa

depois de amanhã é são joão

dia das crianças, não há para quê falar de estupro

 

jesus nasceu, cresceu

ensinou, fez milagre

dividiu o pão, os peixes

o chicote e o perdão

morreu, ressuscitou

e nunca foi estuprado

 

estupro

 

é substantivo, nunca verbo

as irmãs não foram estupradas

as vizinhas também não

nem mesmo as quengas

 

nunca ouviu-se falar

de um homem que conhecesse

um estuprador?

e de um homem que dissesse

eu estuprei uma mãe de santo?

 

o Brasil nasceu do estupro

e eu mesma só não nasci

porque houve aborto legal e gratuito

ainda no século XX

 

(a que pátria pertence o sexo consentido?

a qual o amor?)

 

estupro

palavra que enrola a língua

do pobre e do rico

 

escrevo aqui para que não haja dúvidas

 

eu fui estuprada.

 

 

 

 

 

 

V

 

 

espalhei teu nome no ouvido do povo

 

deixei aqui as veias

à prova do tempo do envelhecer

as palmas de ambas as mãos

escritas desamor

com caneta bic azul

porque eu sou um poço de rancor e tristeza

porque eu sou um poço seco, sem fundo
porque eu sou um poço sem água

 

um poço sem água serve para quê?

 

eu pergunto e eu mesma respondo

que um poço sem água serve para contar histórias

da água que lavou seu cimento e seu barro

que encheu de musgo o recipiente

fazendo o olho crer ser planta

o resto e a sujeira amontoados

 

porque eu deixei uma mão a ti estendida

uma mão vazia, decerto

mas com todos os dedos e com unhas saudáveis

e eu não pedia nada, nada

que a escassez era já muito conhecida por mim

já muito aceita por mim

já muito parte da minha vida

e eu não queria nada

ao contrário, tinha muito para dar

 

mãos vazias também escrevem

 

mas, na outra face da mão vazia

vinha esta cor que não quisestes

e, depois de feita a tua derradeira escolha

depois de andanças em corpos vários

corpos que não te amaram, por sinal

fizestes a eleição do previsível

e, no imprevisto, fizestes nascer

minha rejeição

 

depois que tuas palavras mais feias

vieram como flechas envenenadas 

em minha direção

eu não consigo mais olhar alguém

querer alguém

amar alguém

 

não porque o outro seja faltoso em si mesmo

mas porque a falta de água em meu poço

não dá a ninguém de beber

 

o povo tem sede

e não é de verso.

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

amar as mãos e os pés do homem negro

saber quantas de suas canelas

fugiram de polícias milícias

quantas vezes seus ombros caíram

em mãos atrás da cabeça

amar suas impressões digitais

debaixo dos calos de trabalho

e música

amar suas cicatrizes

de skate cerol e bala perdida

amar seu sobrenome

sem pai

amar seu corpo estirado no chão

vivo ou morto (sempre morto)

amar seus traumas suas neuroses

amar suas contradições

amar sua ejaculação precoce

sua ejaculação retardada

sua impotência

diante dos absurdos da vida

amar as canções que ele ama

amar os poemas que ele odeia

escrever sobre sua percepção de mundo

respeitar seu silêncio

exercitar sua paciência

despertar sua delicadeza

perceber a minúcia

atrás da couraça protetora

saber arrancá-lo à força de seu pesadelo

pôr-se à beira do precipício

que é amar um homem negro

ser gentil na queda

esquecer a colisão.

 

 

 

 

 

 

VII – Hija de Yemayá

 

 

tu vem me arrastando como onda brava
achando que o amor é isso, um joelho ralado
uma queda engraçada pra gringo rir

tu vem me arrastando
e nem liga se eu estou conseguindo respirar
se perdi meu biquíni no tombo
se engoli ou não a água suja do mar usado
se terei virose por quinze dias seguidos

tu vem me arrastando
com essa voz de sereia amuada
eu nem quero ir, já lhe disse
que o rio teme o desembocar

mas tu mostra as asas, os dentes, os seios
tu me quer, eu te quero (apesar de não querer)

tu vem me arrastando como quem deseja que me afogue
como quem satisfaz as próprias vontades, irredutível

tu vem me arrastando como a morte no oceano
imensa, linda, límpida, viva e feroz

tu me ama, eu te amo
(ainda sem saber o que é amar).

 

 

 

 

 

 

VIII - 08 de abril

 

 

nasci de um ventre, isto é claro
(ou escuro)

 

morei num porão
quarto-banheiro, úmido
que não era apenas um quarto-banheiro
mas a cama sexual de meus pais
a cozinha da família a sala de estar de brincar
de ouvir falar e ler
(ou não)
de orar, principalmente
um quarto-banheiro de oração
onde expurgávamos demônios menores
no vaso e no chuveiro 
juntamente com os ratos e as baratas
fazendo barulhos entre as panelas

 

vivi presa em minha pele escura
(com certeza escura)
com camadas bastante profundas
de clausura, reclusão, claustrofobia
o ambiente mais árido em que me constituí

 

essa pele foi trocada por armadura
uma casca grossa de revolta e luto
de amargas perdas irreparáveis.
sob esta couraça vivi
como caracol, encerrada em dor 
até que não houvesse cor
em minha memória
até que não houvesse casa
em minha cidade
(apenas frio, enchente, viaduto, albergue)
até que não houvesse ventre na mãe
trucidada aos oitenta tiros
pelo exército genocida brasileiro.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Zainne Lima da Silva é do final de 94, filha de retirantes nordestinos, prosadora, poeta e bonequeira. Autora do livro Pequenas ficções de memória, da Editora Patuá. Possui textos na Antologia Jovem Afro e no Cadernos Negros 41, da Quilombhoje; em Raízes: vinte escritoras negras, da Editora Venas Abiertas; em Coisas que as mulheres escrevem, da Editora Desdêmona; em revistas acadêmicas de Letras, revistas e sites de literatura.