©ileana braga
 

 

 

 
 

 

 

 

atoms at work

para Campos de Carvalho

 

 

A maçã sobre a cadeira.

Uma noite

dentro da maçã.

A criança

sequer vê o vento,

senta-se, trincando a noite

da matéria

(Os cães, sim, latem —

os únicos a escutarem o instante

em que o mundo se torna o mesmo).

 

 

 

Um homem esperando o trem

 

adivinha a criança

 

é mais feliz do que o outro

aguardando a eternidade.

 

 

 

A chuva imóvel contém

nossos possíveis passos.

 

A infância é mesmo indestrutível.

 

 

 

 

 

 

TEMPO, TECIDO DE FRESTAS

nas retinas não há cansaço

nem pedra que o impeça.

O tempo: pássaro comendo o corpo.

Pássaros não regurgitam,

mastigam o espaço com os olhos

e tecem estrelas de areia.

 

E mastigam o espaço com os olhos,

e o tempo desaba para dentro,

tal origami redobrando-se

até que uma absurda concentração

resulta em desaparecimento do papel.

 

 

 

 

 

 

HOMEM, SUAS MORTES

iluminam Deus e os seus restos.

Guardo-me em qualquer silêncio.

Coleciono matérias.

O corpo é um Deus sem nome.

 

 

 

 

 

 

agora nº 3

com Ana na

memória

 

 

Percorrer xícaras e nebulosas,

Ana e o não-lugar que habita os

meus olhos. Percorrer, de pedra

em pedra ou de palavra em

vazio, qualquer desgeologia do

eu. Ou, eu en abyme: corpo.

 

Ser menos eu, Ana, para morrer

menos. Ao menos abrir os

alvéolos da palavra e tecer de

cidade e memória e cancro

que desdobre o crânio em céu

aberto para o encontro com a

língua antissaussuriana

o mesmo que pássaro aberto

para a concentração de inferno

nucleando a memória dessacidade.

 

 

 

 

 

 

desmontagem de

um haicai ainda

inescrito ou

homem pensando

eixos de sua

biografia inervada

nessacidade

 

 

[1.]

 

 

A lógica o objeto o pássaro morto a carne viva

do homem morrendo as estrelas entristecem as paisagens,

iluminam o pó da pele e a matéria das palavras

deixando bocas digitando a curvatura azul

do som da sombra

de qualquer quem se empedra

no movimento ensurdecedor de operar enigmas

e o manejo até mesmo as gramáticas do afeto.

 

 

 

 

[2.]

 

 

A substância angústia

inerva a medula metálica do homem

feliz esperando a morte

a morte sempre mórbida do aparelho perceptivo

do homem inervado pela substância

 

amorodiar o alimento convém ao Deus

também convém ao homem,

a mortalidade torna o homem inamordaçável.

As nervuras da carne jamais se calam,

andarilham infernos, paredes móveis

movendo os vazios de lugar.

 

 

 

 

[3.]

 

 

Não há sequer sofrimento estável.

A angústia:

máquina orgânica logoilógica

despe limitrofias e analogias,

veste nem relógio digital

e sequer o silêncio em que investe.

 

 

 

 

[4.]

 

 

A despeito da montagem

não há imagemnemônica

nem nenhum som radiografado

nem código algum nada

cura da-coisa-anônima-ele o homem.

 

 

 

 

 

 

a vida alitera, e tudo é igual a outra coisa, um ciclo interminável de fins, junturas fraturas murro contra os sonhos. um pedaço do corpo, uma ferida exposta, uma coisa pendurada de lado, uma flor talvez, flor de carne, infeccionada, se lhe extraem essa flor, sem essa infecção ele morre, então ele bebe seu café até esvaziar a xícara e olha a xícara de café vazia

 

enquanto uma mosca pousa.

 

 

[Poemas de O corpo de uma voz despedaçada. Goiânia: Martelo Casa Editorial, 2019.

Ilustrações de Hallina Beltrão]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Wesley Peres (Goiânia/GO,1975). Escritor e psicanalista, com mestrado em Estudos literários (UFG) e doutorado em Psicologia Clínica e Cultura (UnB). seu romance Casa entre Vértebras (Record, 2007) foi finalista do Prêmio São Paulo, vencedor do Prêmio Sesc de Melhor Romance e indicado ao Portugal Telecom. Por sua poesia, recebeu os prêmios Coleção Vertentes 2007 (Editora da UFG, por Palimpsestos); Prêmio Bolsa Cora Coralina 2001 (porÁgua Anônima); e Troféu Goyazes – Eli Brasiliense 2013 (por As pequenas mortes). foi contemplado pelo Projeto Rumos Itaú Cultural (2018) para escrever seu novo romance, Cartografia de um Doente dos Nervos. Desde 2006, vive em Catalão/GO. Livros de poesia: Água anônima (Goiânia: AGEPEL, 2002), Rio Revoando (São Paulo: USP/COM-ARTE, 2003), Palimpsestos (Goiânia: Editora da UFG, 2007). Romances: Casa entre Vértebras (Rio de Janeiro: Record, 2007), As pequenas mortes (Rio de Janeiro: Rocco, 2013). Participação em antologias: Como se não houvesse amanhã (contos, org. Henrique Rodrigues, Rio de Janeiro: Record, 2010), Amar, verbo atemporal (poemas, org. Celina Portocarrero, Rio de Janeiro: Rocco, 2012).