sia, elastic heart

 

 

                            para cindy leopoldo

 

 

tem um homem dentro de uma jaula

ele não pode sair de dentro dela

& a criança é como um cão raivoso

prestes sempre a dizer adeus

em algum momento o rosto dele

fica comprimido contra as grades

e ele não pode partir

a jovem rompeu a redoma de vidro

mas o amor são as roupas sujas no

corpo

um encontro de muito tempo

& uma dança à espera da queda

do pai

 

quando você gritar o meu nome de volta

mostrarei a espessura das lâminas

também a senha para esta nossa pele

grossa

como o recado que a violência deixa

uma grade da qual é sempre impossível

(para os animais)

sair.

 

 

 

 

 

 

2016, aquele ano

 

 

vocês viram os sabres se levantando vocês

viram os sabres sendo empunhados vocês

preferiram vir descendo lentamente as armas

vocês esperavam que a cabeça fosse entregue

em alguma bandeja dourada onde os olhos sós

estivessem espelhados vocês se juntaram para

furar o inimigo vocês delinearam uma zona apa

rentemente pacífica de proteção a quem não le

vava as suas e outras cabeças e os olhos sós

quiseram o inimigo retalhado furaram por anos

os órgãos do inimigo prepararam por anos lenta

mente os sacrifícios lustrando diariamente os ca

nos das espingardas ultrapassadas descobertas

da escavação mais importante que nunca foi feita

vocês vieram com outras armas esperando a má

cula incontornável da destruição mas encontraram

uma fúria com voz de mulher que já havia cansado

das fogueiras mas vocês insistiram nas fogueiras e

passaram a atear fogo vagarosamente porque é o

que fazemos, vocês dizem, o que fazemos há

séculos é descrever a prática de nossas torturas

e a poesia há de sucumbir aos rigores de nossa lei

a poesia há de sucumbir aos dissabores desta vez

arrancamos sua cabeça e oferecemos sua cauda

uma velha feiticeira com ratos entre as pernas

nós que assassinamos seus nomes pela ordem

nós assinamos as regras deste novo livro desta

antiga e nova era este compêndio atualizado de

nova vergonha: malleus maleficarum maleficat

 

 

 

 

 

 

perto do coração selvagem

 

 

O sintoma é um cisne que dança pelo corpo

começa sorrateiro aos 13, como num passo

se anuncia lentamente e põe a vida em risco

o animal recebe um golpe e se acalma duro

depois retorna e se instala através de pas-de

-deux

das duas, uma, foi o que li num romance da

eliane brum, aquela escritora, mulher articulista

tudo para chegar naquele verso da ana c. sobre

um filete de sangue nas gengivas (este verso

não é meu)

o sintoma comparece na análise (e no dentista)

tenho medo que me toquem

tenho medo que abram minha boca e coloquem

ferros

tenho medo que mexam nos meus ouvidos e a

larmem mais a escuta

tenho medo

quando sangra

um cisne dançando pode parecer elegante como

números de ballet clássico

mas o sintoma é um banho de sangue na madrugada

o cheiro doce e insuportável de uma presença inde

sejada

e o terreno baldio de uma égua a galope com você

por cima

sem saber

montar

 

 

 

 

 

 

clariceana

 

 

chegar bem no núcleo do coração selvagem

é uma tarefa para os que foram ressuscitados

 

 

 

 

 

 

os móveis que trouxe de amargosa

 

 

dos móveis que trouxe de amargosa

restam

um aparador usado na cozinha

hoje no banheiro

uma cadeira de plástico em que

alguém escreveu o meu nome

abaixo de um adesivo de uma

campanha de dilma

em amargosa conheci uma mulher

com este nome

deitei com ela

ela deitou comigo

não posso dizer que profissão tinha

pois não quero magoá-la com esta

provável exposição

além da cama

nos víamos às quartas-feiras na

praça depois das dezoito horas

sentávamos nos bancos e não

falávamos quase nada sobre

nossas diferenças (escurecia)

apenas

ela me dizia pegando com

discrição algum cacho

é muito lindo o seu cabelo

& no dia em que o caminhão

saiu da cidade com a minha mudança

uma cama, livros, cadeiras, apara-dor

roupas, sapatos, panelas, discos

estivemos depois juntas numa esquina

dilma levou um envelope com o que

ela dizia ser uma lembrança, presente

e quando abri não havia carta ou palavra

talvez fosse um modo de significar a nos

sa mudez

era um pequeno pedaço de seus

cabelos

e nesta época em que eu ainda não

podia amar

coloquei os fios entre as mãos

cheirei

e um vento vindo de brejões

levou embora sua dádiva

não houve lágrima talvez

um segredo trocado um

sussurro

algo como uma voz que

se desfaz no avançado

dos minutos e diz

— talvez não devêssemos mesmo

durar.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

aos quinze a comunhão já estava maculada

o vestido de impureza escandia até os pés

a debutante sem valsa em terraço de bom

sucesso

como terminada a estada naquele subúrbio

a história que conto na regalia deste vídeo

fita basf vhs com adesivos de gérberas

contendo mais ou menos 120 minutos

cinema antigo que data de 1994 cheio

de detalhes em salmão e tule desbotados

sou em pé olhando para o nada entre os

convidados do meu aniversário perdido

almoço vespertino em frente à igreja

para evitar o perigo dos tiros noturnos

a melhor cena do bairro enquanto o dj

esquecia de tocar a canção que eu mais

pedia

talvez fosse 4 non blondes whats up

e até hoje não sei se alguém dançou

naquela festa cujo cardápio eu não havia

escolhido

lembro apenas da demora da escova a

lisando meu cabelo comprido e crespo

um lápis escuro contornando os olhos

alguém me perguntando se eu gostava de

unhas postiças

de modo que preferi ter o rosto equi

valente a uma fronteira porque ninguém

enfim escutou algum tiro

embora no salão a presença representasse

uma passagem até mesmo uma viagem

ao território celebrado e mentiroso das

moças frescas mostradas como virgens

neste dia talvez um sábado quente de

dezembro ou uma espécie de açougue

tive uma farta mesa com meu nome

retrato daquela primeira forma de escrita

um vestido longo que mais me cobria a

forma infamiliar da altura e do crescimento

a cena da fita vhs sou eu abrindo presentes

esboçando amareladamente um sorriso

mas o real é a aniversariante no parapeito

segurando a cabeça com as mãos curvada

contemplando a direção do morro e a ação

pequena do tempo incidindo naquela hora

em que são cantados os anjos nos conventos

o som dos tiros amortecendo a queda da tarde

no meu cabelo alisado naquela hora sou eu

dentro do enquadramento da cena um sol

e o tamanho extragrande da melancolia.

 

 

 

 

 

 

oitivas

 

 

                            (...) aventurosa e precária é a literatura, caso queira

                            manter-se na justa relação com o mistério.

agamben, o fogo e o relato.

 

 

                            para o alberto pucheu

 

 

estes não foram poemas que não

entraram no livro das bombas

porque depois de ler e ouvir

deitada no divã aquilo que mais

corroeu

foi quando disse que há uma

hipótese sobre ser uma mulher-bomba

sendo uma mulher que explode

posso morrer quando decidir bombar

e tive esta ideia enquanto punham

fogo em um ônibus no centro do rio

e eu corria agarrada aos braços de

alguém de uma forma muito calma

nesta hora muito próxima de uma

explosão

lembrei da vista e da noite que pode

ter um lugar recôndito como é o vale

do socavão com seu rio ainda intocado

(molhado de folhas, pólen e mistério)

pela fuligem que voa depois do fogo

enquanto aqui neste fora as coisas e

nós é que seguimos então queimando

e sei que posso agradecer aos amigos

o rastilho de existir na pólvora da

poesia porque os amigos são aqueles

que nos oferecem os relatos os alimentos

e outros rios

a partir dos quais seja possível reaver uma

concentração das mulheres-bombas que

despojadas da natureza ferina dos artefatos

possam se dedicar ao sussurro dos antúrios

enquanto há braços mistério e relatoria

 

aqui então agora é quando o fogo inicial

das manifestações se apaga

 

 

 

 

 

 

*

 

 

                            para piero eyben, depois de ler a galope

 

 

eles eram quatro ou cinco e tinham

os rostos assustados dizendo você

vai ficar internada aqui alguns dias

o lado esquerdo estava mal há muito

tempo e neste dia quase desmaiei

sentada no meio-fio depois da análise

talvez necessite da unidade de terapia

intensiva

vai ficar conosco mas eu não queria

era quase primavera

ela estava do meu lado mas estávamos

juntas há muito pouco tempo

e a primeira coisa que senti foi vergonha

depois pânico depois o gosto de metal

na boca na madrugada em que quase

entrei em choque e ao final daquela

cerimônia pré-fúnebre eles me puseram

deitada com as pernas para cima

aos poucos as pessoas foram morrendo

ao meu lado aos poucos eu mesma fui

morrendo sozinha e lembrava do poema

do hospital e da praia da sophia onde ela

diz que o branco é desolado e sujo

e eu tomei horror ao verde-claro naquela

forma infantil quando não se sabe ainda

o que significa a dor absurda e desmedida

não que a minha poesia não sobreviva

sem um eu

mas é que foram tantos tantas vezes

dissolvidos pela alta concentração dos

remédios das violências dos estupros

que insistentemente gosto agora de dizer

eu

quem sabe em contraposição ao médico

de jaleco verde-claro que me cortou

a subclávia uma veia importante do

tórax

por onde passavam os assassinos da

morte que estava no meu corpo

a dor que sentia parecia ginecológica

de alguém que sabe que não pode ou

não vai ter filhos

e me disseram que não

era intestino mesmo

então uma legião de falares atravessou

para sempre a vaga do meu destino

porque eu sou uma mulher gorda

você está com essa doença porque

comeu muita fritura

você está com essa doença porque

se alimenta de pão francês e queijo

você está com essa doença porque

ingere a semente das coisas

e às vezes quando vou me olhar no

espelho

ouço ainda esta legião de demônios

me proibindo a semente das coisas

me negando o nascimento dos filhos

e as palestras destacadas ou mesmo

algum lugar em famosas rodas de poesia

porque amo mais as mulheres

porque sou uma mulher gorda

porque meu nariz é redondo

e ano passado perdi muito cabelo

o fato é que foram 28 dias andando

com a garrafa de um soro pendurado

recomendação para evitar mais uma

doença trombose venosa profunda

o corpo todo perfurado lá onde era

esta modalidade da colônia penal

foram 28 dias despertando do único

sono possível entre cinco e sete da manhã

com enfermeiras dizendo adeus espero

que você não esteja aqui quando eu voltar

embora eu sempre estivesse lá no turno

seguinte delas com meio sorriso envergo

nhada pela lentidão da minha cura

um ciclo menstrual inteiro enquanto

outras mulheres morriam do meu lado

e do lado de fora alguém invadia meu

recém alugado apartamento

a dor do intestino ameaça tudo

a dor articula através da sua

metalinguagem

oito dias de alquimias erradas

mais vinte com as certas

meu rosto menos quinze quilos

e a felicidade dos outros que me

diziam estar ótima tendo emagrecido

por dentro a única voz era do pânico

dez dias de sede

dez dias de fome

enquanto a mãe oferecia molhar meus

lábios com gelo

os números eram o que mais doía

todos grandes e excessivos parecendo

infinitos

ao meu lado estavam o vento e a água

do alto da boa vista

o nome dela cristiana que se inscrevia

minha mãe e o terço do sagrado coração

de maria & a voz distante da minha analista

o que ninguém sabe é que na saída

estava de braços dados com o meu luto

quando saí e vi a rua conde de bonfim

e as pessoas cariocas caminhando de short

chinelo e camiseta tive uma longa tontura

já num carro pude ter com o vento

outra mediação da primavera

com tudo que ameaçava arrebentar por

dentro

e depois da vasta vertigem

pedi que fôssemos devagar

era o tempo

talvez fosse a claridade do sábado

talvez fosse o vórtice da vida.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

colocávamos os grãos de feijão sobre a mesa

e a escassez dava lugar ao festejo

o cereal amolecendo na panela

o brilho da infância navegava no reflexo

do rosto reconhecido no cozimento

narcísica e nutritiva tarefa

a herança de não querer a conta justa

nem querer saber nunca do punhado

certo

uma outra matemática a minha

queria que sobrasse para todos

embora a poesia tenha sido feita

do acúmulo de tudo que sempre

falta

os feijões e suas pedras, louros,

carnes

soçobraram os retratos harmoniosos

uma inscrição antiga na paleta das

lembranças de aniversário

algo como

pilares, 1988

atrás da foto onde estamos sorrindo

antes

hoje não sobra nada

 

 

 

 

 

 

1999 - 2019

 

 

palco imenso, luz baixa

 

homens lendo

poesia

 

o frame, a performance

um papel

uma lista

 

xenical

lítio

imosec

imipramina

hipofagin

enalapril

desobesi

centella asiática

fluoxetina

sibutramina

tegretol

garcinia cambogia

clonazepan

mazindol

losartana

bupropiona

valium

sertralina

pholia magra

metformina

atenolol

topiramato

 

 

— nasceu,

 é menina.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Tatiana Pequeno nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Tem dois livros de poesia publicados: réplica das urtigas (Oficina Raquel, 2009) e Aceno (Oficina Raquel, 2014). Seu terceiro livro, onde estão as bombas, sairá em julho de 2019 pelas Edições Macondo. Trabalha como professora de literatura na Universidade Federal Fluminense, onde coordena grupo de pesquisa sobre a relação entre corpo, gênero, sexualidades e as literaturas de língua portuguesa.