©adina vocu

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

©cromaconceptovisual

 

Encaminho a reflexão seguinte em solidariedade ao poeta Luís Arias Manzo, do movimento Poetas del Mundo, que informou aos autores de poesia do planeta a invasão da página universal daquele movimento, que perdeu muitas informações e colaborações acumuladas naquele registro virtual.

O que leva hackers a hackear uma página de poesia? Teria algum poeta — ou vários — posto o dedo na ferida em favor de uma causa relevante que está sendo desdenhada pela ONU ou pela OEA? Seria alguém com imensa ojeriza de poesia? O que levaria um ser humano a ter tamanho ódio da palavra escrita, que via de regra, como nesses movimentos, se presta a solidarizar-se com questões de primeira ordem, como guerras, invasões de países, controles políticos autoritários, violência pela violência, entre outras?

O que leva, no mundo pós-moderno, a poesia a incomodar? Quantos atos de vandalismo virtual há que detonam a poesia e que nem tomamos conhecimento que nos impede de assumir atitudes críticas em função da humanidade? De resto: ainda existe mesmo uma humanidade? Não estaríamos vivenciando o tempo próximo do caos absoluto, de destruição do outro em nós mesmos? De violência degeneralizada, consentida pela inconcebível e absurda impotência de se fazer alguma coisa contra a devassa total da Terra, pior, de sua gente? Da deturpação grandiloquente dos valores perante uma ética que agora pode ser comprada, vilipendiada, anulada por conluios e contratos sociais estabelecidos à revelia do mundo? Do afrontamento agressivo dos segmentos antes marginalizados? Da prostituição da alma? Da irreversível e definitiva quebra do cristal ante a exposição dos dejetos humanos? Das guerras étnico-religiosas em nome de um deus non sense? Da perda da privacidade via tecnoeletrônica imoral?

Os hackers que detonaram a página de Poetas del Mundo estariam conscientizados de que, como escreveu Cesare Pavese, "a literatura é uma defesa contra as ofensas da vida"? De que "escreveu, não leu, o pau comeu", como diz o provérbio? Que Virgílio já havia previsto na "Eneida" que "arma uirumque cano" — as armas e o herói eu canto", como faria Camões depois nOs Lusíadas — "as armas e os barões assinalados"? Aperceberam-se esses ignominiosos que Shakespeare havia dito ser preciso "levantar armas contra esse mar de problemas, que é a vida"?

Teriam os hackers conhecimento de que "é preciso não ter medo de criar. Por que o medo? Medo de conhecer os limites da minha capacidade? Ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar", como admoestou Clarice Lispector?

Aprendeu essa estirpe daninha à vida que "metáforas concentram mais verdades em menos espaço", como assevera Orson Scott Card? Que "é impossível desencorajar os escritores de verdade, [porque] eles não se importam com o que você diz; eles vão escrever de qualquer jeito", como assinalou Sinclair Lewis?

Na escola da depravação humana, os hackers talvez tenham aprendido que a poesia, além de "ensinar e deleitar", como queria Horácio, é "o ato de escrever como o ato de descobrir no que você acredita" (David Hare). Que a literatura é "uma arma pacífica de resistência", como pontuou Rubem Fonseca no conto "Intestino grosso". Que a poesia é uma arma de crítica e denúncia social. Que, como escreveu Marina Tsvetáieva, "enquanto houver palavra todo o país está em chamas". Que palavras são "armas secretas", preconizou Julio Cortázar. Que "a função dos sonhos é a mesma das histórias de ficção: simular na mente como nos sentiríamos se enfrentássemos conflitos que nos assustam e realizássemos nossos desejos mais secretos", disse Diego Schutt.

Ou então seria porque, como escreveu Fernando Pessoa, "a literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta". Que "a literatura é uma inspiração para a realidade" (Romain Gary). Que "palavras, uma vez que são impressas, têm vida própria" (Carol Burnett). Ou para coadunar propósitos e intenções com Augusto Roa Bastos: "Eu escrevo para evitar que o medo da morte se agregue ao medo da vida".

O fato é que é preciso se perguntar: por que os hackers têm o direito de usurpar a poesia? Você aceita passivamente que energúmenos vençam a virtude da vida?

 

 

 

©mohamed hassan

 

É mais um dia de perda de sentido,

família, Deus, o mercado — tudo é prensa,

nessa mistura fast-food com bandido,

no corre atrás da vida que não pensa

 

se vale a pena a correria para nada,

em cada rua uma oferta de trouxinha,

a traficante se parece com a fada,

pra comer, a menor tira a calcinha.

 

Hora do rush faz o transe da babel,

em cada esquina um assalto de tocaia:

o caos urbano cheira crack e a xarel,

loura gelada, muito sexo e só gandaia.

 

A maioria se espreme no busão,

e não se livra da gangue à mão armada;

daqui a pouco preso mora em camburão,

a violência é só oferta com porrada.

 

Não há escolha nessa troca de mentira,

a pressa corre e dá de cara com o perigo,

ninguém sabe se o que mata é fome ou o tira,

se o que morre será mesmo o inimigo.

 

Vidro suspenso que lá vem o trombadinha,

na sequencia bando troncho de pivetes,

e o táxi por sequestro sai da linha,

você decide: um balaço ou canivete.

 

Quem vai de carro curte sarro com o estresse,

e como pária foge do engarrafamento,

chuva miúda, óleo na pista, a curva em S,

a tevê mostra os presuntos do momento.

 

Hora de Ângelus quer dizer adrenalina,

o desafio é chegar inteiro em casa,

herói urbano com nervos de gasolina,

que a contramão dessa briga cria asas.

 

Aperte o cinto que a noite é de pega,

a fauna solta vem malhando o arrastão,

o bebum louco liga o farol que cega,

a avenida vira pista de avião.

 

Muita cantada de pneu nessa disputa,

o seu carona pode ser muito doidão,

desfilam drags, pitibichas, muita puta,

e o carro serve de motel e de caixão.

 

Vão do seu lado perueiros e a ambulância,

muita buzina é sinal de coisa preta,

enquanto reza, você pede segurança,

e logo adiante mói a Besta num Cometa.

 

O sinal fecha e passa um raio na retina,

o mauricinho quer mostrar que é potente,

o guarda apita, tudo bem com a propina,

e o menor pratica pra matar mais gente.

 

E viva a vida na vã veloz cidade,

onde escapar é o prêmio que alerta:

pisar mais fundo é sentir a liberdade

e o inferno tem a porta sempre aberta.

 

 

 

©fernanda lemos

 

Quando a falta de alguém que se ama é muita, tanta de doer, música do Wando, do Amado Batista sobrepuja concertos finíssimos de Mozart com as melhores orquestras sinfônicas do mundo. Um mero retrato 3X4 explode na cara com mais força do que a Monalisa de Da Vinci ou uma Marilyn Monroe de Andy Warhol. Um fio de cabelo desfia lembranças mais fortes que a cabeleira de Sansão. Uma peça de roupa surrada, esquecida no varal, explode intimidades de prazeres agora lancinantes e torna o desejo uma insônia que conta ovelhas sem graça e deplora todos os símbolos sexuais que se oferecem nas revistas de mulheres peladas sobre móveis empoeirados do quarto órfão de vida a dois. Pensamento algum se constrói em paz quando se dói de paixão, pois o amor castra o tesão e deixa no ambiente não o clima ferótico da posse desejada, mas o masco adstringente no céu da boca, na língua que não engrena mordeduras lights nos ocos carnais arrepiados.

A ausência se vinga com detalhes. É o castigo para os que ficam entre o orgulho e o arrependimento, a angústia de dar ou não o braço a torcer, a ansiedade incômoda de atender ou não o telefone mais insistente que cobrador de prestação atrasada.

Quando o amor dói por ausência, a memória é um banco de dados em pane: ela confunde datas, troca de nomes, esquece a fórmula do perdão. Pior é quando finge não doer, quando desdenha não fazer falta e põe nos olhos um rio farto em soluções que ninguém precisa ouvir para não envergonhar quem se julga para sempre infeliz, incapaz de enfrentar de novo o Sol do trabalho, os olhares novos transeuntes no circuito da existência perdida e sempre disposta a se perder mais uma vez por capricho, por imaturidade dos sentidos, para recompensar o desamor.

O amor quando se manda aparece no rosto de cada mulher que passa, mas não fica nem em imagem. Faz silente a boca e os ouvidos quando quer ser O Grito, de Munch; se julga o próprio inimigo numa guerra quixotesca, porque um dia Cartola cantou: "Ainda é cedo, amor, a vida é um moinho".

E aquele batom cor de sangue que deixa no armário do banheiro a trazer molhados os lábios carnudos de Angelina Jollie? A delicadeza do par de chinelos japoneses exalando perfume de folhas de pêssego na primavera da solidão. Os santinhos de Santa Rita, N. S. do Rosário e de S. João Batista na escrivaninha jorrando sem palavra, sem gesto, sem nada além de si mesmos, inertes — a frase letal: — Babaca! Se ela nos pedir arrego sobre sua sacanagem amorosa, iremos embora de sua proteção para sempre. Pior: deixando-o só a sós. Mirando nada pela janela interior.

Você não se merece. E o cheiro do corpo em cio trasladando o desejado inferno para o quarto, a cama, o sexo, o ventre, o desatar frouxo do prazer que arfa e afarfa depois da convicção de que a vida vive e farta.

Quando o amor não ama no cotidiano das delícias & desavenças, ele faz rimas de lágrimas com esgrimas do relógio. Ele pensa em morrer e às vezes até se mata, mas, de outras vezes, por ciúme de não permitir a outrem a posse da alma da mulher amada, ele persegue detetivescamente os prováveis sucessores, afia facas no sereno, arma armadilhas terroristas para os fantasmas dos rivais, contrata assassinos de livros policiais. E aí de duas uma: ou se vangloria na humilhação da parestesia de sua própria solidão, ou se vinga de seus afazeres caprichosos com o silêncio molhado e soluçante.

Pronunciar o nome de quem se ama e está longe, invisível, é materializar um Deus fêmea e de modo sacral dizer: — Fulana, me dê força para me suportar sozinho. E a única resposta ser o dia amanhecendo quente e muito num coração sem vida e nada e só.

 

 

 

©alexander antropov

 

Pode parecer mais uma loucura da guerra fria entre os governos do capitalismo e do comunismo mas é fato latente que o ditador Kim Jong-Un mandou simplesmente obstruir janelas de prédios altos da capital da Coreia do Norte, Pyongyang para evitar que bisbilhoteiros fiquem de olho no trabalho dos funcionários do Partido. O ditador concluiu um boom de arranha-céus para moradia de cientistas nucleares, além de outros grupos de elite. Contudo essa iniciativa não deu certo, porque os moradores da parte do alto dos edifícios podem ver os moradores protegidos por Kim Jon-Un. No entanto, o sentido de proteger a ocultação existe e é também ameaçador.

As medidas protetoras consistem em colocar placas nas janelas a fim de evitar a visão das pessoas e que essas façam fotos de instalações governamentais a partir dos apartamentos dos andares superiores e as mandem para fora da Coreia do Norte, conforme informou o Daily NK, citando fontes norte-coreanas anônimas. Outra fonte de Seul informou que apartamentos de operários que trabalham defronte a sede do Partido foram interditados visualmente, posto que apuradas fotos foram feitas entre agosto e setembro. Um Partido organizado é capaz de fazer qualquer coisa para manter-se no poder.

Em 1954, foi lançado nos Estados Unidos o filme Janelas Indiscretas, um cult de Alfred Hitchcock, um clássico até hoje, recém-exibido na Band. Nele, um fotógrafo com a perna engessada, portanto, impossibilitado de andar, flagra da janela de seu apartamento um assassinato, além de alcovitar, mesmo sem querer, seus vizinhos. Estudo alemão apurou que o lado capitalista tinha 10 mil agentes infiltrados no lado comunista.

Todo mundo tem o seu lado voyeur, e nessa função desempenham como operários a apuração de vulnerabilidades alheias. Ninguém pode, todavia, afirmar que por ser solitário abraçado à sua saudade, um homem é alcoviteiro. Viver, no entanto, é abrir a janela para a vida lá fora. De janela aberta capta-se a vida que se expõe: é um cão que passa, um mendigo que esmola, o desempregado que anseia por comida na mesa de sua família, é a prostituta atrás de um programa que a mantenha ser humano, o vendedor que passa anunciando o que vende, são jovens enamorados, são as dores de uma favela vista de longe, é o silêncio de uma cidade...

Na maior parte do mundo, filosofou Nelson Rodrigues, "a televisão matou a janela". No Brasil pode-se ver o panelaço que de vez em quando é visto e ouvido das janelas descontentes com os políticos. E elas têm a força do olho da rua.

 

 

 

dezembro, 2019

 

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

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