PERNILONGO

 

 

mas não diga o motivo.

ouve bem o estalo dos joelhos

água suja circulando pelo encanamento.

 

escuta

você pode até ser um homem piedoso

só eu não sou piedosa.

 

porque conheci um homem esperto

que se deitava por cima da própria língua

antes de pegar no sono

 

porque a beleza nem sempre consola

ela nem sempre acontece

 

porque esse mesmo homem

não dorme jamais

eu não sou piedosa.

 

 

 

 

 

 

AO HOMEM QUE SE LEVANTA COMIGO

 

 

                            para L.

 

 

espero que as unhas cresçam

só depois solicitações, juras,

os números.

qualquer justificativa.

espero que você não.

por favor.

mantenha a respiração acontecendo

beije sua mãe na testa, peça a bênção a ela.

não olhe a polícia nos olhos

se for preciso esconda-se bem.

 

 

 

 

 

 

OITO NOMES DEPOIS DO SEU

 

 

Oito nomes depois do seu. poeira atrás de poeira.

que se foda.

sim, fiquei aqui.

esperando as autoridades chegarem logo com reforços

alguém que enumerasse as cores

qualquer um

que soubessem o algoritmo de deus

movimentos fáceis, pré-ordenados

em pouco tempo tudo se organizaria

na minha cabeça ou tanto faz.

alguém me tira daqui.

que resolvessem o enigma de uma vez

dedos quase dóceis, as mãos de fada

me visitando todas as faces.

depois, me beijariam na boca.

até que finalmente me fariam esquecer

seu cabelo brigando contra o sol

crespo e invencível

seu casaco de medusa

cheiro de musgo e suor
aquela música que você fez pra mim.

qual matemática, que solução.

se continuo bebendo feito uma raposa,

vivendo com gente que ri de Babel.

oito nomes depois do seu. poeira atrás de poeira.

sono após sono, cruel.

 

 

 

 

 

 

PREPARO PARA A ARENA

 

 

te ensinaria a correr os meus peitos como eles gostam de ser corridos.

me faria didática. abriria uma exceção.

te mostraria como meus cabelos precisam ser agarrados.

seria paciente. desperdiçaria meu tempo.

te guiaria enquanto você se perde sem perceber.

você é um toureiro que vacilou por um segundo.

não escapou.

nós sabemos o que acontece aos distraídos.

agora é aceitar o chifre atravessar a sua mão violentamente.

o que te resta é acolher o gosto metálico na boca.

salivar bem.

a dor te escolheu dessa vez.

lamba o sangue, chupe os dedos.

não me chame de amor.

 

 

 

 

 

 

¨

 

 

vai mostrar os dentes

sagaz

me deitar a mão na buceta

esperar que eu relinche

como se fosse fácil.

4 patas dizendo o chão.

peitos em caixa alta.

focinho molhado.

saber o coice antes do coice dói mais.

é bom.

o tapa vem de baixo.

pasto aberto não corro.

relincho

espero a água.

 

 

 

 

 

 

FELIZ COMO LÁZARO

 

 

se me adoecerem e arrancarem quatro

dos meus melhores dentes.

se martelarem meus joelhos.

mesmo se alinhavarem a minha boca.

se marcarem minhas costas a ferro.

deitarem fogo nas palmas das minhas mãos.

se fuzilarem meu corpo à queima-roupa.

darem fim às minhas digitais.

se me derrubarem e jogarem terra nos meus cabelos.

mesmo se me conduzirem à vala comum.

se me derem por vencida.

se me disserem — é o fim da linha:

fico aqui exatamente onde estou.

se me disserem — mataremos todos os seus mortos.

fico aqui exatamente onde estou.

com os mesmos olhos de mosca varejeira,

ousada como minha avó.

se me disserem — é dia e ele não será seu:

fico aqui exatamente onde estou.

com a mesma fome, herdeira de um deserto

faço questão, passo minha vez.

 

 

 

 

 

 

O AMOR

 

 

daqui já é possível ouvir

pouco antes de atravessar o mar de alborão

buscando o marrocos seu cheiro no marrocos

deixar as cinzas em rabat

 

é o plano.

manter a faca amolada os pés prontos para correr

quando os militares.

 

daí você lambe a ponta

deixa a lâmina te conhecer.

 

 

 

 

 

 

TRINTA E TRÊS

 

 

se colocasse a pedra de ágata

na goela do porco

antes ele gritaria

como não pude gritar.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Natasha Felix (1996) nasceu em Santos/SP. Vive em São Paulo e cursa Letras pela Universidade de São Paulo. É escritora, redatora e educadora. Seu livro de estreia, Use o alicate agora (Macondo, 2018) foi lançado em agosto de 2018 e está em sua terceira reimpressão. A autora tem textos publicados em revistas digitais e físicas. Participou de projetos de performances, como o Black Poetry, Trovadores do Miocárdio e Instrumental Poesia.