©kavan the kid
 
 
 
 
 
 
 

Cartas húngaras

 

 

Sou um jovem poeta húngaro

em 1915.

Meu nome é István Szabó.

Há dois anos saí

de Győr

para viver em Budapeste,

do lado direito do Danúbio.

Estudei medicina

na Universidade Semmelweis,

antes que um fuzil caísse em minhas mãos.

Agora, do outro lado do rio,

há algo úmido e vermelho em minha farda,

há algo errado,

sempre há algo errado,

e não podemos fazer nada.

Sentado em silêncio mortal,

percebo a perda

de todas as cartas.

Sim, digo todas,

e isso é muito claro,

embora a única lacuna que lateja

são as cartas de amor

levadas lentamente pelo Danúbio

à margem intangível do tempo.

 

 

 

 

 

 

O colecionador

 

 

Coleciono chuvas

como quem cuida de orquídeas.

 

Águas de tantas nuvens

alargam-me o peito em quase oceano.

 

Não sei quantas naves

adormeceram no leito submerso

extintas viagens.

 

Qualquer gota

pode acordar os naufrágios.

 

 

 

 

 

 

Poça

 

 

Hora de arrumar a pilha de desculpas

Amassar sem culpa dívidas e projetos adiados

Encurtar a distância entre os polos

Sem temer calotas geleiras icebergs

Dissolvendo-se em poças noturnas

Um pouco abaixo da linha dos morcegos.

 

Quando amanhecem lambendo o sol,

Gosto de olhar as águas impuras desses mínimos oceanos,

Preguiçosas, conformando-se a relevos

Ásperos, imprevistos, estendendo-se amorfas,

Longos losangos, irregulares, místico triângulos, redondas,

Sempre espelhos que guardam no fundo

De cavidades ou abscessos no corpo do asfalto

Tão raso céu sem sombra de divindade.

 

Todos os atos

Todos as ideias

Todos os acontecimentos

Todos os meus poemas cabem numa poça

E durarão até o próximo dia ensolarado.

 

 

 

 

 

 

Mancha sonora

 

 

Ontem ouvi tiros

Fui à janela

Eram disparos distantes

Há horas em que o mundo

Fica entre o espanto e o inalcançável

Muito além da curva do impossível

O café na xícara

Sobre o parapeito da janela do quarto

Dos fundos

Mergulhou no esquecimento

Mergulhei

Nos tiros que vinham de longe

Do Juramento

Talvez mães corressem atrás de filhos

Famílias e bíblias no chão

Mulher alvejada na noite

O mundo está no chão

Os governos

Os povos

Eu estou no chão

Ouvindo tiros em vez de Charles Mingus

 

 

 

 

 

 

Relatório técnico de poema encontrado morto com três tiros no peito

 

 

* porta de entrada com sinais de rimas imperdoáveis e aliterações agressivas

* pedaços de papel seda com rúcula e nervos pendurados no varal

* temas surrados e versões exaustas derramadas em bacias de latão

* acessórios para estados febris / verbos suspeitos / cápsulas da geração 68

* dicionário de palavras com ditongos instáveis e dentes cariados

* enjambements deslocados da cena do crime / versos alexandrinos com sinais de violência

* os tiros foram disparados da direita para a esquerda

* livros concretistas e beats boiando na banheira

* fatias do pão que o diabo amassou na cozinha / farelos de obra-prima no piso

* fotomontagens pornográficas vintage com bilhetes escabrosos

* sardas soltas de rosto desconhecido sobre o sofá verde musgo

* cocaína em folhas arrancadas de livro de poemas de um tal Pasolini

* da cabeça do cadáver escorriam sílabas líquidas enviadas por celular

* membros do morto foram encontrados em todos os cômodos / alguns versos caíram em área do supermercado ao lado onde foram confundidos com tíquetes de estacionamento

* muito vermelho o poema morto / anêmicas todas as cesuras / anomalia: falta de rigor mortis

* análise das poucas linhas encontradas permite classificá-lo como "anarcoide poético com desvios líricos" / crítico renomado aventa a hipótese de o poema ter morrido de mediocridade por não retomar Mallarmé, Pound e os mesmos de sempre

* não era pacifista nem violento / na verdade, não se sabe qual era a sua serventia

* forte presença de César Vallejo / investigar ligação com o Sendero Luminoso

* foi encontrada mensagem suspeita no computador do poema morto — "a poesia é um atentado celeste" — / forte indício de rede de hackers poéticos dispostos a explodir a ilha de Manhattan

 

 

 

 

 

 

Huidobra espacial

 

 

Caro Huidobro, meu paraquedas de antiversos

me lança longe do abismo.

De que me desfaço

para acertar o alvo?

Chamo todos os ventos a plenos pulmões

mas espalham anarcoversos

só do lado oposto ao de minha queda.

Me empresta aquele telescópio

que funciona como revólver.

Vou derramar estrelas

em tempos mortos.

 

 

 

 

 

 

Mesmiscelânea

 

 

Busco novos form

atos

di

amantes

brutos

nada des

cubro

me des

dobro

em rubros

trajetos

distópicos

bruscos

contro

versos

surtos

ente o mesmo

e seus excessos.

 

 

 

 

 

 

Descontinuidade

 

 

Dizia Coriolano,

cônsul romano,

que morava

"I'th'city of kites and crows"

quando uma águia

acionou o celular:

"Hoje tem samba,

você não vem não?"

 

Como revelar

a quem traiu segredos de estado

que o inimigo

agora é aliado,

e que, à frente da bateria,

nova rainha pagã

apaga com passos de pantera

o campo de palavras falsas

de extinto reinado?

 

 

 

 

 

 

Saudade em expansão cósmica

 

 

Análoga à antimatéria

a antipalavra,

antissílabas na forca

da teoria de cordas

vocais

roucas.

Palavra e antipalavra

anulam o universo

quando teu nome

— big bang na boca —

atravessa o domingo

 

 

 

 

 

 

Balas

 

 

A bala rolou ladeira abaixo.

O menino,

de cujas mãos acabara de despencar,

correu para pegá-la.

"É preciso adoçar vida

tão amarga",

a vó lhe falava.

Não se sabe

de onde partiu

outra bala

exata,

metálica,

capaz de acertá-lo

à altura do peito

entre dedos negros

e nervosos

a abrir o papel colorido

da pequena joia para sempre perdida.

 

 

 

 

 

 

Palavras fora do ponto

 

 

múltiplas

camadas,

rútilas

cebolas,

matrioshkas,

as palavras,

incômodo

retornável

 

congestão

de frases recicláveis

bile

sílabas

mal filtradas

as palavras

cruas

fazem água

fazem água

fazem água

as palavras

quando se desfazem

na boca

 

 

 

 

 

 

A hora extrema

 

 

Quando eu morrer

não quero missa,

anjos

ou velas.

 

Quero apenas

que meus poemas

me levem

aonde não soube

levá-los.

 

 

[Poemas do livro Linha de instabilidade. Urutau, 2018]

 

 

dezembro, 2019

 

 

José Antônio Cavalcanti. Poeta, ficcionista, ensaísta e professor. Autor de Anarquipélago (poemas, Ibis Libris, 2013); Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst (Annablume, 2014); Fora de forma & outros foras (contos, Ibis Libris, 2015); Movimento Suspeito (poemas, Urutau, 2016), e Linha de instabilidade (Urutau, 2018). Participou das antologias 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015) e Casa do desejo (Patuá, 2018). Textos em Mallarmargens — Revista de Poesia e Arte Contemporânea, Revista Zunái, Revista Eutomia, Caderno Ideias do Jornal do Brasil, Periódico de Poesía (MX), Cronópios, entre outras.

 

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