Nuno Ramos, sem título, 1991, vidro, folha de ouro, folha metálica, tecidos, algodão, folhas secas, plásticos, esmalte sintético, óleo de linhaça, terebentina, parafina, vaselina, breu e resina sobre madeira.
 
 
 
 
 
 
 
 

Maricota lendo o jornal (no jornal anda todo o tempo)

            

 

Nove noites e dias cai do céu uma bigorna

E só no décimo atinge a terra —

Nove noites e dias cai da terra uma bigorna

E nem no décimo atinge o país.

 

Não havia nisso desvergonha nenhuma.

 

         (Só nos interessa o que não é nosso

         Hesíodo submerge bárbaro e nosso)

         Fatalidade do primeiro branco aportado:

 

Povo e governo superam a sublevação

É só o general já ir com mão de ferro

Dominando a situação

O movimento subversivo declina,

Mas os estados já estão

Contra

O congresso declara a presidência vaga

No país da cobra grande —

 

Queremos uma garotada

Que comece a não se interessar

Por política

Que comece a aprender coisas que

Possam levar

A quem sabe

Ao espaço

No futuro

 

No futuro

Tão adiado tão baldado tão repetido tão perdido

                                                        Futuro —

                   A riqueza dos bailes das frases feitas.

 

Abra a cortina do passado

Deixe cantar de novo o aedo

A merencória luz da lua

Quem quiser vir

Aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade —

         Agora: o país não pode ficar conhecido como paraíso.

O senhor presidente da república deixou a nação acéfala

Em hora gravíssima.

 

Os filhos

O pai engolia-os

Tão logo cada um do ventre da mãe descia aos joelhos:

                                      A massa quer respeito à família

Estão proibidas as rinhas

De galo

E o uso do biquíni

Nos concursos de miss.

As mulheres

Não se pode deixa-las à rédea solta

Periga quererem governar-nos.

 

(Soldados sob o comando do grande mouro general sozinho com seu cachimbo se

Deslocam para depor o presidente.)

 

Sim, bem primeiro nasceu o pai e com a mão direita

Suja de petróleo

         Disse-nos: o petróleo é nosso

Não poderá o nosso petróleo cair em mãos estrangeiras.

 

                                      País de dores anônimas.

 

O filho com violência e mãos dominando-o

Logo o expulsaria da honra e reinaria entre imortais.

                   É o pau é a pedra é o fim do caminho

                   São cinquenta anos em cinco são cinco anos em cinquenta

E a família com deus pela liberdade

Econômica

De empreender

De concentrar

De repetir

Por fazer singular mercê.

 

Só a antropofagia nos une

Roubamos coisas dos hotéis roubamos o assento salva-vidas do avião

Achamos que saímos de casa e podemos carregar tudo.

Sabemos muita mentira dizer e símeis aos fatos.

 

Pela memória do coronel torturador estuprador — o pavor —

Pelo exército pelo país acima de tudo por deus acima de tudo

Pelos porões acima de tudo

Para preservar de esbulho criminoso o mandato que o povo lhe conferiu

                   É o fim do comunismo no país

                   Do bolchevismo cultural

         Pela conservação do elemento servil

Hoje aspiração aclamada por todas as classes

Com admirável exemplo de comichão por parte dos proprietários —

O exército domina a situação e conclama o povo a manter-se em calma.

É só o capitão já ir com mão de ferro —

                   Não, com mão tão inábil

                            Por isso tão brutal —

                            É só o capitão já ir desmantelando o que há.

 

O que se quer — e já —

É um governo definitivo apartidário e democrata

No casamento a mulher é submissa ao homem — é uma questão de fé —

         Pelo direito à sacrossanta violação

         Por um país sem abortos:

E filhos os mais temíveis

Detestava-os o pai

Tão logo cada um deles nascia a todos ocultava.

 

Não podemos imaginar que os agitadores e os comunistas

Condescendam em ficar de braços cruzados aguardando que o congresso

Dê as condições para enfrentá-los dominá-los sodomizá-los

        

Abra a cortina do passado

         Há só a promessa

                  

Cessadas as operações militares

A calma volta a reinar no país

         Aceitou o grande capitão de ofuscante fala e curvos feitos

A honrosa missão de governar

Neste período de grandes desafios de enorme esperança

Governar com vocês, elites vegetais, de maneira a esmagar o povo

De maneira a restaurar reerguer nossa pátria

Libertando-a

Definitivamente do jugo da corrupção

Ainda que as prestações de contas

Não reflitam a verdade do que efetivamente

Ocorreu em termos de gastos de recursos

Libertando-a

Definitivamente da criminalidade

Obliterando exterminando trucidando

E depois conspurcando os túmulos dos opositores

Da irresponsabilidade econômica

Prodigalizando milhões aliciando eventuais opositores

Da submissão ideológica

Ensinando o povo a moral da cegonha e a

Valorizar a família a respeitar as nossas religiões e

Nossa tradição conservando nossos valores

 

O país se desvencilhará das amarras ideológicas.

Fabulosa demonstração de repulsa ao comunismo –

 

Sim, bem primeiro nasceu o pai e com a mão esquerda

Com os dedos cinco menos um

Suja de petróleo

Disse-nos: eis o símbolo de nossa soberania.

Filho o mais terrível detestou o florescente pai.

 

País de dores anônimas.

 

Mas não há batalha antiquada

         Nem tampouco disputa pelo ocorrido

                   Nem sequer pelo que há de vir

                            Há só esse momento empoçado

                            Há só a promessa

                                               Da promessa

 

O presidente deseja

Partilhar o poder

Ministro dele ou é armamentista ou fica em silêncio —

As forças armadas destinam-se à defesa da pátria

À garantia dos poderes constitucionais e

Por iniciativa de qualquer destes

Da lei e da ordem.

 

O cidadão de bem merece dispor de meios para se defender.

 

(O grande mouro general sozinho divulga perfil prospectivo de um eventual

Governo só seu

E livre da indolência dos indígenas e da malandragem dos africanos)

 

         Jabuticaba tão nossa         

Bichinhos característicos interesse crocodiliano

Nunca tivemos gramáticas nem coleções de velhos vegetais

E com isto andamos tais e tão rijos e tão nédios

Que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos –

O vigor e os brilhantes membros do príncipe cresciam.

 

Sempre fomos catequizados vivemos através de um direito sonâmbulo.

 

                            Do alto do pé de goiaba o deus anuncia:

 

         Pelo direito de decidir quem vive

         Só a promessa e a promessa da promessa

         Só a maquinaria e o sangue muito

O retrocesso é só aparente

         Porque assim também o avanço —

                   A riqueza das frases feitas —

Somos um povo atroz

Oriundo do estupro e do saque

         Nosso coração de amianto é tão irascível

                                               País de doutores anônimos.

                  

Da tocaia o filho alcançou com a mão

Esquerda

Com a destra pegou a prodigiosa foice

Longa e dentada

E do pai o pênis

Ceifou com ímpeto e lançou-o a esmo

Para trás —

 

O ministério tem um rumo uma direção

Para trás

E quem não concorda, por favor, avise, que será tirado

        

         Esse momento empoçado

                   Ai, que preguiça: ame-o de tal modo

                            Que tenha de amá-lo

Outra vez,

                            Esta é a tarefa.

 

Os unidos estados

Acompanham cuidadosamente e com preocupação

 

Bim bom

É só isso o baião

E não tem mais nada não

 

O resto é repetição

Esse momento empoçado

Ai, que preguiça et caetera per saecula saeculorum

 

Nove noites e dias cai do céu uma bigorna.

 

 

 

 

 

 

RGB (0,0,0) (ou Bandeira nova)

 

O país acima de tudo

Com peso de sangue

                   O ministro recomenda

                   Que se cante o hino

                   Que se espezinhe o

Cadáver do menino –

O país

Não há.

 

O país mudou-se de si

No lugar, a cova;

Ao lado, o monturo:

Alfabeto inane

                   — Os cadáveres autoproclamados

Atiram-se.

O país

Acima de todos

Jamais asilará velhos

                            Salvo se forem muito ricos

Os pretos são normalmente retirados das agências bancárias

         À força

São normalmente estrangulados nos supermercados

         Até à morte

As mulheres limpam a sujeira

E no remanso do lar podem ser

                   Violentadas defloradas espostejadas devoradas

                            Pelo pai onipotente

         Absolutamente.

No país acima de todos

                   Com a boca podre abarrotada

O presidente de joelhos engrandece

                   O vigor do ditador pedófilo vizinho

                   O loiríssimo topete do untuoso generalíssimo do universo

                   Os ratos no cu de quem divirja.

 

                   (Os professores são incinerados na avenida.)

Oceano de sangue

Maremoto de chorume: a insulação do país

Acima de todos e

                                               Fora do tempo.

 

O presidente tem prole como metástase

         Os filhotes supuram pelos poros a mais fétida secreção —

                                                        Chamam-na opinião.

 

O país acima de todos

Pesa

                   Como a mão do deus do dilúvio

         Tanto negócio tanto negociante —

                   Do arquipélago bacante a esbórnia é mais importante.

Tanta gente de bem cativa do vídeo amputado:

O sol raia laranja como lídimo calhambeque entre nuvens de glifosato —

         O cadáver do menino normalmente sempre espezinhado.

 

 

 

 

 

 

MY BOOZE

 

 

Meu tio —

Você o conhece —

         Atende por Mabuse

Rouba a própria mãe

         Escarafuncha o porta-níqueis

                   O cesto de roupa suja

                            Cheira as ceroulas da velha

E lhe vende lavagem

E lhe vende câncer e tripas reviradas

E lhe vergasta o corpo de múmia saqueada.

Meu tio prostitui a própria mãe —

Cinquenta centavos e a velha deposita a dentadura em um copo com água —

 

Meu tio é o judeu do reich de mil anos meu tio

Conta mil anos de vida e ainda não se aposentou e se ressente do prepúcio

Meu tio esbraveja às gentes no mercado:

                   O führer quer apenas agitar as massas

Meu tio choraminga

                   Deseja um papaizinho über alles

Meu tio atende por Mabuse

                   Morreu mil vezes nas câmaras de gás.

 

(A noite tresanda: a memória

É a carniça aberta;

         A luz corre e corre como cocaína

                                               Sarjetas infartadas

A enxurrada desce como um fungo fundo —

         Meu tio dança o bolero de Ravel no risca-faca.)

 

Meu tio pesa mil quilos

                   E aos domingos faz churrasco de si mesmo

Meu tio é o negro bom e atende por Mabuse

                   Morreu mil vezes por portar um guarda-chuva

Meu tio é o melhor engraxate do Rio de Janeiro

Os soldados o procuram e enfiam-lhe os coturnos goela abaixo

Meu tio é o homem de bem

Dedura seus vizinhos negros — mas não negros como ele —

 

Meu tio bate palmas continência punheta

         À foto do presidente presa no espelhinho do banheiro

Meu tio pesa mil quilos e o presidente lhe disse que ele não passa de sete arrobas

Meu tio tem mil filhos e o presidente lhe disse que ele não serve nem para procriador

O presidente disse que gasta mais de um bilhão com o meu tio,

         Mas meu tio tem mil fomes,

                   Mas meu tio anda com um rato no cu,

                            Mas meu tio vende craque às mulheres grávidas —

Meu tio tem mil faces que as retinge na carvoaria.

 

É preciso mil milhões de litros de cachaça para que possamos engolir

O churrasco de domingo.

Meu tio:

Você o conhece — ele esfaqueou a mulher

                   E elegeu o presidente da família.

 

 

 

Pedro Moraleida, A Virgem e Seus Filhotes Verdes, Série Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina, subsérie Germânica. Acrílica sobre papel, 122 x 86 cm.

  

 

 

 


Mitomania (Ou A micturição de ouro)

 

 

Mas

Quando o ciclope encheu o grande estômago

                                               Após comer carne humana —

O chão fumegava com sangue —

                                               Bradou brado estrambótico

         E todos puderam sentir desde distâncias

                   O fartum o miasma o bafio

                            O bafo que tresandava a

                            Mais podre bosta:

Caso houvesse cidadão com arma regular

Dentro de escola regular,

Professor servente um policial militar

Aposentado — e nisso gargalhou

Com regougo de mil peidos e bem estouvado —

Ele poderia ter minimizado:

Vamos chorar os mortos — e nesse passo riu mais —

E o fracasso do malfadado

Estatuto

Tão bonitinho

         As criancinhas

                            Todas

Alvejando

         Com os dedinhos tão anafados —

Para enfrentar uns demônios armados desses

Só mesmo com instrumentos assemelhados

Se a legislação permitisse

O cidadão de bem prosseguiria na marcha da morte

E depois exporia

As degolas no museu

                   De antropologia — e aí gorgolhou com voz de mil bueiros

E regozijou com chuva de mil chuveiros

Dourados.

E continuou, o monstro:

         Na mão

De cada cidadão

O varonil revólver o farto bacamarte o robusto trabuco

E está feito o jagunço:

         O Estado que se estropie para lá

         O presidente não há — é mito —

         Não há isto mas há ismos e

         Importados a mancheias

Não há analfabetismo bastante

E faz-se fascismo com tempero

Só nosso

                            O país fac-similar

Pelas musas comecemos a cantar

                   Assim emprestemos ao monstro voz loquaz decifrável

                   Em tudo inverossímil

                   Em favor do canto prestável:

 

Mas quando o ciclope aplicou empalhamento

                            Nos famélicos miseráveis

                                      Reclamou muito grave:

Quero meu lanche sem molho

E se preciso for

Estourar-lhe-ei os miolos

A mulher tem não muito grande importância, mas tem

E está fazendo um trabalho excepcional.

 

         No atual estágio da modernidade

Em que vivemos simples

Ligação telefônica ou mensagem instantânea são

Suficientes para permitir a ocultação

De grandes somas de dinheiro

De grandíssimo presunto prazenteiro ou mesmo

         Para afamar o mítico aurífero

                                               Chuveiro

E mais digo:

O país não é um terreno aberto onde

Pretendemos construir coisas para o povo

A lei é para bobos

                   Estou chocado com a leviandade

                   Quis a vontade de deus

                   Dois milagres:

                   A minha vida e a eleição —

A política de imigração é o muro e não há objeção

Quando estão abertas as fronteiras sem seleção

A todo tipo de refugiado

À maioria dos imigrantes mal-intencionados.

 

A democracia emana dos Unidos Estados

E é deus o realizador da geografia

É bem-vindo o conquistador peralvilho

                   Que pode ajudar a financiar nossas rodovias nossas cotovias

                   Nossos cotovelos nossas virilhas

         Ir atrás de concessões de petróleo e gás

         Nós vamos vender nós vamos rifar

Eu adoro

Coca-cola coca negra disneylândia adoro ratos usualmente:

Ditadores torturadores

Estupradores pedófilos zoófilos anglófilos coprófagos

                                               E deus por cima de todos —

Ele conversa com o presidente e

Se o presidente quiser

Conversa comigo.

 

 

junho, 2019

 

 

Jefferson Dias, autor dos livros de poesia Último festim (Multifoco, 2013) e Silenciosa maneira (Medita, 2015). Tem poemas, contos, traduções e resenhas publicados em periódicos e portais de literatura, tais euOnça (editora Medita), Opiniães (USP), Caliban, Literatura & Fechadura, Ruído Manifesto, Ponto Virgulina, TriploV e Gazeta de Poesia Inédita. Trabalha na tradução do poema "Briggflatts", de Basil Bunting.

 

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